quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho




BACH OU RAP?

1. Voltemos à questão do "cultural". Repare-se que não é exatamente o mesmo que a "cultura". Podemos dizer que no nosso tempo existe uma verdadeira inflação do "cultural". Por outras palavras, assistimos hoje a um culto do "cultural". Isso não significa que se viva num espaço público onde a "cultura" tenha uma verdadeira função. Alguns – como vimos há pouco com José Saramago a propósito da cultura europeia e das capitais europeias de cultura – podem mesmo ter uma visão apocalíptica destas coisas, do estilo "quanto mais cultural menos cultura".
Neste plano, assistimos a dois movimentos mais ou menos complementares. Por um lado, começou-se a dizer que tudo é mais ou menos cultura. A moda, pois claro, também é cultura. O rock, evidentemente, é uma forma de cultura. A banda desenhada tem uma imensa importância cultural. E o rap, claro. Assim como a gastronomia. E há, como se sabe, uma tradição cultural que se desenvolve em torno do vinho – a cultura do vinho, se quiserem. Este processo visava acima de tudo contrariar as acusações de "elitismo" e atrair as camadas mais jovens, que apenas pareciam suscetíveis de reagir a formas mais ou menos massificadas de expressões de vida urbana. Os "graffiti", por exemplo.
O movimento contrário colocou a inevitável questão: entre uma canção rock e uma cantata de Bach não haverá diferenças? Ou então: entre um "video-clip" e um filme de Dreyer? Entre uma peça de "design" de Philip Stark e um quadro de Francis Bacon? Ou entre Guimarães Rosa e a letra de um samba? Intuitivamente, diríamos que sim. Será isto estarmos marcados por uma conceção da Cultura demasiado absoluta que pretende colocar a arte no lugar da religião? Será que a arte é um conhecimento superior a todos os outros? Se, no plano teórico, assistimos hoje a releituras mais ou menos severas dos textos da tradição romântica, se muitos põem em causa a legitimidade do "sublime" kantiano para proporem a visão desdramatizada do prazer e do gosto do século XVIII, se alguns se lançam com entusiasmo numa verdadeira desmitificação do "estético" (que vai de leitores analíticos de Nelson Goodman até marxistas recauchutados como Terry Eagleton), isso significa que se procura pôr em causa todas as perspetivas "elitistas" que preferem Bach ao rap.
2. Um texto recente de Yves Michaud, publicado no número de dezembro da revista "Esprit", e intitulado "Des beaux-arts aux bas arts. La fin des absoluts esthétiques – et pourquoi ce n'est pas plus mal", veio colocar a polémica em termos particularmente vigorosos. A intervenção de Yves Michaud é tanto mais significativa quanto parte de alguém que neste momento dirige a Ecole NationaIe Supérieure de Beaux-Arts em Paris. A questão que lhe tinha sido endereçada – pelo próprio diretor da "Esprit", Olivier Mongin – partia mesmo desse espanto: como é possível ter uma visão tão "desestruturada" da arte e estar à frente de uma instituição "estruturante" como é uma Escola de Belas-Artes?
Mesmo quando estamos longe de seguir Yves Michaud nas suas conclusões, temos toda a vantagem em lermos e analisarmos com atenção algumas das suas teses. Para Michaud – e este é o seu ponto de arranque –, não faz sentido falar-se num corte entre o público em geral e a arte contemporânea. Para ele, "se, com efeito, o grande público está hoje divorciado da arte conceptual ou da pintura simulacionista, consome avidamente jogos vídeo, filmes, discos compactos interativos, televisão e espetáculos coreográficos. Onde está o corte? Pode ser que ele esteja sobretudo na nossa representação do que deveria ser a relação do público com as artes de elite de que as artes visuais terão acabado por constituir no século XX um tardio paradigma".
Todos os raciocínios de Michaud partem de uma espécie da analogia entre o plano social e político e o plano artístico. Em todos estes domínios estaríamos a assistir ao fim dos absolutos: ninguém pode agora falar em nome do universal. Assim, "conhecemos hoje no domínio do gosto exatamente a mesma situação que conhecemos em política e no domínio social. Todos os nossos critérios de universalidade foram abalados e postos em causa, e nenhuma situação está garantida". Se uma sociedade democrática é uma sociedade estruturalmente dividida, devemos reconhecer, segundo Michaud, que "para o melhor ou para o pior, o efeito de democracia opera hoje também na cultura”. Isto coloca Yves Michaud numa interessante posição paradoxal: por um lado, recusa visceralmente todas as posições estilo Fumaroli, porque feitas em nome de uma conceção elitista da arte. Mas, por outro lado, embora seguindo Jack Lang no seu alargamento da noção de "cultural", afasta-se dele quando Lang pretende intervir através de uma política da cultura: em nome de quê?, pergunta Michaud.
3. Assim, "a 'grande' estética está sempre à procura das grandes experiências de rutura e de sublimação. É por isso que se mostra tão fechada às outras artes, e, em particular, às artes populares, é por isso que se mostra tão alheia à imensa gama de comportamentos e experiências estéticas que marcam a nossa vida, tão fechada à estética da experiência quotidiana". Donde, conclui o nosso autor, "devemos identificar as componentes variadas e diversas das experiências artísticas tendo em conta a sua diversidade antropológica assim como a sua universalidade, o seu carácter modesto, que tanto se manifesta nos prazeres banais e contudo requintados que nos dão as práticas populares como nas experiências sofisticadas que nos propõe a Grande Arte ou nas experiências aparentemente desesteticizadas que nos apresenta a arte contemporânea".
4. Deixo um pouco aqui as afirmações de Yves Michaud à laia de provocação para os leitores. Embora me pareça que elas têm debilidades óbvias, colocam problemas extremamente sérios no mundo contemporâneo.
Gostaria no entanto de alinhavar duas ou três observações. A sabedoria popular, que Michaud tanto aprecia, costuma dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. Ao comentar o facto de alguns professores procurarem anexar a Escola aos seus gostos e preferências, facto manifestamente negativo, porque a escola deve ser prioritariamente feita pelos estudantes", Yves Michaud afirma: "Mesmo se tenho pessoalmente os meus gostos artísticos, de que são testemunho os prefácios que tenho escrito, esforço-me como diretor por mostrar uma imparcialidade a toda a prova – o que me valeu paradoxalmente por várias ocasiões a acusação de autoritarismo." Donde, embora não acredite no ponto de vista da universalidade, Michaud esforça-se por ter aquilo que Thomas Nagel chama "the view from nowhere” – algo que não existe, evidentemente, a não ser pelo pelo nosso desejo de que exista. Porque o ponto de vista de parte alguma não é a mesma coisa que a ausência de ponto de vista.
Uma segunda observação poderá ser formulada em termos de analogia. Embora todos nós reconheçamos a diversidade empírica das experiências de tipo erótico, todas elas legítimas, agradáveis e enriquecedoras, seremos no entanto incapazes de distinguir entre um simples "flirt", uma cena de sedução numa noite de festa, uma longa vida afetiva em comum e um amor louco? Por outras palavras, será que as grandes experiências de rutura afetiva e erótica nos afastam "elitistamente" da diversidade infinita das experiências eróticas? Bach e rap terão de ser a mesma coisa? Terá Bach de nos afastar do rap?

“Bach ou rap”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 5 de fevereiro de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 23-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bach-ou-rap-por-eduardo-prado-coelho.html


terça-feira, 22 de outubro de 2019

Emigração e cultura – crónica de Eduardo Prado Coelho



EMIGRAÇÃO E CULTURA

1. Tive recentemente a oportunidade de ver uma emissão do Terça à Noite, na SIC, sobre o tema da "Emigração". Pude, em primeiro lugar, confirmar todas as excelentes referências que tinha ouvido fazer ao programa de Miguel Sousa Tavares. Estamos indiscutivelmente perante um magnífico espaço de debate, que constitui um dos lugares mais vivos e interessantes de confronto de ideias e posições da atual vida política portuguesa. E Miguel Sousa Tavares, embora às vezes pareça confundir o seu papel com o de domador de leões, é alguém que sabe colocar os problemas de um modo extremamente incisivo, com grande inteligência e frontalidade.
Seria apenas levado a colocar algumas objeções de pormenor. Em primeiro lugar, tive por vezes a sensação de que o espetáculo do debate se sobrepunha à própria nobreza do debate. Julgo que, em relação ao voto dos emigrantes, as posições de António Barreto e Pacheco Pereira eram substancialmente próximas – e apenas se diferenciavam por uma espécie de necessidade artificial de se mostrarem diferentes. Em segundo lugar, Miguel Sousa Tavares deixa-nos frequentemente a impressão de que procura impor as suas próprias opiniões sobre os assuntos, sendo incapaz de se manter no papel mais reservado de um moderador. Em terceiro lugar, havia a tendência para tratar "o emigrante" como se fosse uma entidade maciça, e não como uma realidade imensamente complexa e diversificada, não somente no plano geográfico como no plano social e geracional. Concebendo-se "o emigrante" como uma entidade maciça, quando se dava a palavra a um emigrante concreto que estivesse na assistência, convertia-se logo ''um'' emigrante, no caso o sr. X, na voz autorizada de "o" Emigrante – passagem indevida do particular ao genérico. Isto é, sempre que falava "um" emigrante singular, ele tendia a ser apresentado como o porta-voz de "o" Emigrante em geral. Este curto-circuito selvagem provocava consideráveis equívocos.

Terça à Noite (SIC, 1993 - 1995)

2. Uma das inevitáveis questões foi, sobretudo em torno do caso francês, a do ensino da língua portuguesa no estrangeiro. Um número é habitualmente citado: a frequência dos cursos de Português integrados no sistema do ensino elementar francês tem vindo abaixar desde 82, em que atingiu o recorde de 55 mil, até 93, em que ronda apenas os 17.500. É natural que dentro de uns dois anos, prosseguindo a tendência dos últimos dez anos, fiquemos pelos 6 mil. Esta evolução pode parecer impressionante, mas devemos reconhecer que era inteiramente previsível. O fenómeno da emigração criou uma situação artificial do ensino do Português em França que nunca poderia ser duradoura. Esta situação artificial sustentava-se no facto de, para uma geração de portugueses, o Português ser de facto a língua materna. Uma vez que, para uma nova geração de portugueses e luso-descendentes, o Português deixou de ser de facto a língua materna, como o comprovam certos inquéritos, embora com números que devem resultar de instrumentos de análise pouco finos, é perfeitamente natural que os pais tracem novas estratégias escolares para os filhos, em que a concorrência com os franceses no mercado de trabalho favorece a escolha do Inglês como primeira língua estrangeira a aprender.
Para além de deficiências gritantes do próprio sistema de ensino, e do facto de ele se ter vindo a deteriorar sem medidas adequadas para a sua reformulação, costuma-se falar, e muito bem, em problemas de promoção e informação. A explicação é pertinente, mas insuficiente. Ela não permite compreender o fenómeno de recuo, uma vez que o simples êxito em determinado período deveria ser naturalmente promocional, informativo e expansivo. A questão essencial está no facto de que aquilo que em determinada fase aparecia como uma evidência – "ser português deveria levar naturalmente a querer estudar Português" – deixou de o ser. É aqui que surge uma nova problemática: desaparecida a motivação que se supunha "natural", é preciso formular um novo elenco de motivações.
3. Dada a importância das motivações, tornou-se absurdo procurar hoje dar uma prioridade ao ensino da língua ou à cultura. Na nova situação, as duas realidades estão indissoluvelmente ligadas. É o conhecimento da língua que permitirá descobrir melhor a cultura, tal como ela é a cultura que levará ao desejo mais forte de aprender a língua. Isto é, é necessário um entendimento muito amplo do que se entende por cultura portuguesa, não apenas nos seus aspetos literários e artísticos, mas também nos seus aspetos científicos, económicos, sociais ou antropológicos, para que se consiga produzir junto dos franceses e dos portugueses luso-descendentes, um leque de motivações suficientemente rico, diversificado e sedutor. Técnicas de mercado e tecnologia pedagógica são necessidades urgentes.
4. Numa perspetiva profundamente reacionária e retrógrada, há quem pense que poderia existir uma cultura portuguesa para os estrangeiros, e depois, num segundo plano, uma cultura mais "fácil" para a emigração. Ao contrário do que disse Pedro Bicudo em Terça à Noite, a escolha entre Dino Meira e os Madredeus não é apenas uma questão de gosto. Porque os gostos educam-se, e existem níveis de cultura. Não se trata de opor uma cultura erudita a uma cultura popular – as duas podem situar-se ao mais alto nível. Trata-se de opor uma cultura de qualidade a uma cultura de massas mais ou menos degradada e industrializada, que se situa, em termos de níveis culturais, num plano inferior. A verdadeira cultura, popular ou erudita, é aquela que ajuda cada um de nós a tornar-se aquilo que é, e não a que procura fazer que cada um continue a ser aquilo que já era. Donde: o único trabalho possível é aquele que leva a sua exigência a exigir o rigor e a qualidade, o risco e a consequência, tanto à cultura erudita como à cultura popular autêntica. Não se trata de excluir demagogicamente Camões e Pessoa porque faria parte da cultura erudita; trata-se de procurar que um número cada vez maior possa fazer a experiência apaixonante de ler Camões e de ler Pessoa.
Creio que uma política cultural junto das comunidades portuguesas no estrangeiro deve privilegiar dois vetores. Por um lado, é preciso que, em relação aos principais acontecimentos suscitados pela apresentação da cultura portuguesa no estrangeiro se desencadeiem mecanismos de intervenção pedagógica e animação cultural que permitam um melhor acesso a esses acontecimentos. Não faz sentido produzir uma cultura deliberadamente menor; faz sentido criar condições de acesso à única verdadeira cultura. Pedagogia viva e animação cultural competente são aqui palavras de ordem.
Em segundo lugar, é urgente a criação junto das comunidades portuguesas de cursos de formação de jornalistas, profissionais de teatro, profissionais de rádio, intérpretes de dança, fotógrafos, tradutores literários, cenógrafos, etc. Isto é, torna-se necessário criar estruturas de apoio aos jovens criadores e atores de cultura, de forma a dar-lhes condições culturais e técnicas para que eles inventem livremente a cultura em que irão falar do seu lugar e da sua memória, do seu destino e da sua utopia. Porque os franceses poderão querer aprender Português por motivos culturais ou económicos. Os portugueses e os luso-descendentes estarão sempre ligados à língua portuguesa por um nó de motivações afetivas que só a arte e a literatura podem dizer.


“Emigração e cultura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de janeiro de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Emigração e cultura – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 22-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/emigracao-e-cultura-por-eduardo-prado.html


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

“Jogo de Espelhos", de David Mourão-Ferreira

por Eduardo Prado Coelho



A SEDUÇÃO GENERALIZADA
1. Aparentemente, um livro "menor", que até nos provoca logo na contracapa, quando pretende que se trata, nada mais nada menos, do que de dois livros num só. "Menor" para o leitor que esperaria um romance ou novos poemas. Mas uma leitura atenta pode levar-nos a alterar um pouco este modo de ver as coisas. Porque este livro contém o núcleo de múltiplos poemas e a trama invisível de várias narrativas, tudo suspenso de uma referência última que é o canto e a história de uma vida. Cada um dos fragmentos que constituem "Jogo de Espelhos" de David Mourão-Ferreira aparece, assim, como uma pequena prova em que o autor se forçou a si próprio a uma "revelação", "confissão", "alusão velada", "recordação imprevisível", que este exercício, esta disciplina, que passa, como não podia deixar de ser, por uma verdadeira disciplina das palavras, faz que este livro manifestamente "menor" se converta num livro secretamente “maior" – uma espécie de Índice temático desenvolvido de toda a obra do autor.
Dois "livros", portanto. Isto é, duas sequências de textos curtíssimos que se organizam em torno de preocupações supostas diferentes. O primeiro aparece voltado para o exterior, e tem como tema explícito a "sedução". O segundo é o resultado de uma série de nótulas de cariz autobiográfico (menos "biografemas", embora sejam algumas referências a situações pregnantes, do que traços constitutivos de um retrato íntimo). De qualquer modo, a complementaridade é evidente, e o titulo lá está para fazer que cada texto se deixe envolver pelo "jogo de espelhos" que regula o conjunto destes dois conjuntos – não apenas jogo de espelhos entre o exterior e o interior, como jogo ainda entre a imagem do autor e o espelho do feminino: "É num contínuo jogo de espelhos,/ entre as mulheres e si próprio,/ que melhor tem aprendido a conhecer-se."


2. Poderíamos pensar que este livro nos propõe uma "teoria" da sedução. De certo modo, assim é. Mas, nesta como noutras matérias, a teoria é tanto mais teoria quanto é resistência à teoria. Pela razão muito simples de que a sedução pode passar pela ideia de "estratégia" (entendida como metáfora retórica e simultaneamente militar), mas terá sempre de ser uma espécie de estratégia implícita que não pode tornar-se demasiado visível nem para quem a pratica nem para aquele que nela se deixa enredar – se é que esta divisão tem, em última instância, sentido. Porque se alguma coisa define a sedução é a permanente indefinição dos estatutos e dos papéis, através de mecanismos de permutabilidade que anulam a própria diferença entre o espelho e o real. Por isso, "as sedutoras que se ignoram/ são quase sempre as mais temíveis." E por isso também pode o autor escrever: "Segundo pensa, o poeta só pensa/ quando não pensa que pensa;/ ou quando pensa que não pensa./ Daí a sua desconfiança/ perante os que pensam/ que estão sempre a pensar."
O aspeto mais interessante da forma fragmentária que David Mourão-Ferreira escolheu para este livro é o facto de um dispositivo deste tipo exigir que cada unidade textual tenha um "não sei quê" que a torne sedutora em si mesma. Se se tratasse de um mero apontamento de tipo "teórico", bastariam as "ideias" para dar corpo e razão de ser ao texto. No caso de um poema, existem outros mecanismos que permitem que ele vá ao encontro do leitor. Mas num livro de tipo aforístico, o espaço é demasiado exíguo para autorizar os desenvolvimentos de uma coerência conceptual ou textual. Resta uma única solução: em poucas e apertadíssimas linhas, o fragmento tem de nos seduzir por qualquer coisa que nele aconteça e que consiga produzir um efeito de diferença. O risco é enorme de se ficar do lado da banalidade. A prova decisiva consiste em aceitar o risco do banal, deixar que este permaneça como pano de fundo, e tentar o desvio mínimo, a quase impercetível transgressão da linguagem.
Dois exemplos. Na página CVII: "Tenta resistir, o mais que pode,/ à asfixiante sensação de que o Tempo/ já não é o que não era". O leitor apressado poderá ler que o Tempo "já não é o que era". Todas as expectativas o encaminhavam nesse sentido. Mas o leitor atento tropeça num "não" suplementar, que produz um radical efeito retroativo sobre todo o fragmento. Veja-se por exemplo a página XXXI: "O que pode haver de carnal/ nos gestos da sedutora/ tem de ser sempre desmentido/ pelo que há de vegetal nos seus braços". Neste caso, o texto roda em torno da oposição entre carnal/vegetal. Mas enquanto a palavra "carnal" é para ser acolhida literalmente, a palavra "vegetal", induzindo uma série metafórica latente entre "braços/ramos" e "mulher/árvore" (que sustenta outros fragmentos do livro: "As mulheres que mais amo/ tinham todas raízes; e asas"), introduz uma assimetria na balança inicial da oposição esperada: de um lado, o peso do real ("carnal"), do outro o peso de uma metáfora (que é o "ser vegetal" de uma mulher?).
Qualquer destes exemplos ilustra de certo modo a dimensão profundamente retórica da sedução – se tivermos em conta que a retórica é uma forma de sedução generalizada pela linguagem, ou um modo discursivo de gerir a distância entre as pessoas. Mas a sedução tem um estatuto próprio no elenco das figuras. Como escreve David Mourão-Ferreira, “se bem que sensível à metáfora,/ a sedutora pratica mais a metonímia". Embora fosse necessário averiguarmos ainda o valor da alternativa "ser sensível a”/"praticar", o que me importa por agora é verificar que toda a sedução se caracteriza por uma espécie de desequilíbrio entre o salto que se anuncia (fauna convocada: galgos, tigres), e o movimento lateral que se produz, como se houvesse sempre uma reserva, uma velatura, um pudor, uma esquiva, um retraimento essencial, que implica um relançamento do gesto ou da atitude, numa deliberada fruição da expectativa e da infinita tensão que ela provoca. Tal como cada fragmento se recusa a dar o salto para o lado do poema, mesmo quando aceita revestir-se de algumas das suas formas, a sedução está sempre um passo atrás, ou metonimicamente ao lado, em relação ao pathos do desejo ou às figuras demasiado vincadas do sexual. Mas é precisamente esse modo como se retrai e se abriga numa espécie de ilimitada rede metonímica que permite que ela nos surja como uma sedução generalizada. Se se pode dizer, como sugeriram alguns tratadistas, que a metáfora é uma dupla metonímia, talvez nos seja lícito sugerir que a sedução é uma espécie de metonímia que se duplica para nos dar o sentimento de uma metáfora sempre adiada. Ou, se quiserem, é uma metáfora em diagonal. Porque "a palavra 'sexo' raramente se regista/ no dicionário da sedutora. Mas atravessa,/ em diagonal, cada uma das suas páginas."

“A sedução generalizada”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 8 de janeiro de 1994.



CARREIRO, José. “Jogo de Espelhos, de David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 18-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/jogo-de-espelhos-de-david-mourao.html


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

As armas do crítico – Crónica de Eduardo Prado Coelho





AS ARMAS DO CRÍTICO

1. A palavra "crítica" é normalmente detestada. A ela estão associados um certo número de pressupostos (que, em larga medida, podemos considerar como preconceitos):
a) O crítico é alguém que, de uma forma arbitrária e abusiva, vem dizer se o trabalho de um criador é "bom" ou "mau".
b) O crítico é alguém que fala sobre o que os outros inventaram na medida em que ele próprio é incapaz de inventar. Tem necessariamente o estatuto de um parasita.
c) O criador está do lado da vida, enquanto o crítico está do lado da arte enquanto instituição.
d) O crítico julga na cena de um tribunal em que não há nem critérios para julgar nem provas que possam ser definitivamente conclusivas.
Digamos que afirmações deste tipo, ou outras análogas, são parcialmente verdadeiras mas não constituem o essencial daquilo que se faz sob a designação de "trabalho crítico".
2. Gostaria de partir de um ponto de vista bastante diferente. Para mim, atividade crítica é uma atividade essencialmente poética. Em que sentido? No essencial, em dois sentidos.
O crítico exerce uma atividade essencialmente poética na medida em que consegue encontrar as palavras certas para exprimir algo que eu senti de um modo vago e confuso quando li (ou vi, ou ouvi) a obra criticada.
Por conseguinte, podemos falar, nesta aceção, numa atividade de ordem poética (que, no entanto, é sempre "menos" do que a poesia). E é precisamente enquanto ator capaz de exercer uma atividade de tipo poético que o crítico ganha autoridade para formular juízos de gosto. Estes juízos são obviamente discutíveis, contestáveis e problemáticos.
Digamos mais: a partir de um certo nível da discussão, o tipo de juízos de gosto que um crítico formula torna-se até relativamente secundário, tal como são secundários os juízos de gosto dos grandes criadores (ou melhor: são extremamente interessantes mas enquanto juízos de gosto do criador X ou do crítico Y). O mais importante é o modo como, através da manifestação do processo que o conduziu àqueles juízos de gosto, eu como leitor encontro materiais para conduzir o meu próprio processo e chegar ao meu próprio juízo de gosto.
Concluindo de um modo mais ou menos sintético: o processo autoriza o juízo na medida em que faz que ele se torne o juízo de um autor; mas, precisamente na medida em que o torna dependente de um autor, faz que o juízo se torne mais relativo, mais significativo apenas no âmbito de um discurso que o excede.
3. Não poderemos deixar de considerar também alguns aspetos institucionais. Como é óbvio, o crítico ganha também autoridade pelo facto de escrever no lugar em que escreve. Torna-se fácil de compreender que ser crítico de literatura no jornal "Le Monde" não é para o leitor a mesma coisa que publicar textos críticos numa folha episódica de um jornal de colégio de província. Torna-se ainda fácil de compreender que há também urna espécie de determinação geocultural do lugar do crítico no mundo. Um crítico que escreve num jornal de Huelva parecer-me-á menos importante do que um crítico que escreve em Nova Iorque. E este tipo de prevenções funciona de um modo fatalmente inconsciente e não tem em conta a qualidade intrínseca dos textos (que pode ser muito melhor no texto escrito em Huelva).
Existem ainda muitos outros mecanismos de tipo institucional que também funcionam. Assim, um crítico ganha autoridade na medida em que vai sendo reconhecido pelos outros críticos (mais velhos ou da mesma geração). Isto passa por diversos circuitos: quanto maior é a autoridade do crítico, mais ele publica livros, escreve para catálogos, se torna comissário de exposições, organiza coleções para fundações, viaja, participa em colóquios internacionais, etc. Nestas circunstâncias, a autoridade do crítico torna-se poder, e, nessa medida, dá origem a dois tipos de fenómenos mais ou menos simétricos: por um lado, o crítico tem discípulos, que, a troco de contribuírem para reforçar a imagem do crítico, procuram usufruir, por ligação metonímica, de um pouco do prestígio do critico; por outro lado, o crítico ganha inimigos, isto é, vê crescer à sua volta um certo número de personagens, que pensam que se podem autorizar um pouco mais através da contestação da autoridade dos mais autorizados.
4. O que é engraçado é vermos como estas coisas se repetem com uma ritualidade estrutural. Um amigo meu ensinou-me um dia: vais ver pela vida fora que em qualquer lugar que a gente ocupe vamos sempre substituir um incompetente e vamos sempre ser substituídos por um intriguista. O que ele me pretendia dizer é que, sejam quais forem as qualidades ou os defeitos das pessoas, eu sou sempre levado a achar que a pessoa que vim substituir era – "apesar das suas inúmeras qualidades”, que me não cansarei publicamente de apontar – um incompetente e que, ao ser substituído num lugar, isso se deve necessariamente às intrigas desenvolvidas pelo meu sucessor.
Vivemos num curioso período em que a humanidade se parece dividir em duas categorias: por um lado, existem os protagonistas das grandes "performances", que são personagens que o destino escolheu para a prática de feitos notáveis; por outro, existem os seres comuns, que se relacionam com o mundo da cultura segundo a modalidade da distração obsessiva e do horror do tédio. Talvez possamos relacionar este estado de espírito com o processo de aceleração generalizada da vida (de que um Virilio narra algumas etapas essenciais) e com o modelo mental do "zapping" televisivo. Daí o sintomático aparecimento de um novo tipo de "críticos": os que julgam que são tanto mais autorizados quanto mais se aceleram a si próprios em termos de discurso e de recusa do aborrecimento (o que vai criando os seus próprios mecanismos retóricos).
5. O recente Prémio Pessoa – tão justamente atribuído a Fernando Gil – tem, para além de muitos outros méritos, uma grande qualidade: valoriza o esforço, o rigor, a paciência, o tempo lento do trabalho. Ninguém pode ter ilusões: os livros de Fernando Gil são difíceis e exigem um grande esforço de leitura (amplamente compensado, é verdade, pelo prazer da inteligência). Que esta admirável "chateza" tenha tido um prémio de grande prestígio é algo que nos compensa do ritmo de corridinho com que alguns pretendem modelar a cultura em Portugal.

“As armas do crítico”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 11 de dezembro de 1993.



CARREIRO, José. “As armas do crítico – Crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 11-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/as-armas-do-critico.html