EMIGRAÇÃO
E CULTURA
1. Tive
recentemente a oportunidade de ver uma emissão do Terça à Noite, na SIC, sobre
o tema da "Emigração". Pude, em primeiro lugar, confirmar todas as excelentes
referências que tinha ouvido fazer ao programa de Miguel Sousa Tavares. Estamos
indiscutivelmente perante um magnífico espaço de debate, que constitui um dos
lugares mais vivos e interessantes de confronto de ideias e posições da atual vida
política portuguesa. E Miguel Sousa Tavares, embora às vezes pareça confundir o
seu papel com o de domador de leões, é alguém que sabe colocar os problemas de um
modo extremamente incisivo, com grande inteligência e frontalidade.
Seria
apenas levado a colocar algumas objeções de pormenor. Em primeiro lugar, tive por
vezes a sensação de que o espetáculo do debate se sobrepunha à própria nobreza
do debate. Julgo que, em relação ao voto dos emigrantes, as posições de António
Barreto e Pacheco Pereira eram substancialmente próximas – e apenas se diferenciavam
por uma espécie de necessidade artificial de se mostrarem diferentes. Em
segundo lugar, Miguel Sousa Tavares deixa-nos frequentemente a impressão de que
procura impor as suas próprias opiniões sobre os assuntos, sendo incapaz de se
manter no papel mais reservado de um moderador. Em terceiro lugar, havia a tendência
para tratar "o emigrante" como se fosse uma entidade maciça, e não
como uma realidade imensamente complexa e diversificada, não somente no plano geográfico
como no plano social e geracional. Concebendo-se "o emigrante" como
uma entidade maciça, quando se dava a palavra a um emigrante concreto que estivesse
na assistência, convertia-se logo ''um'' emigrante, no caso o sr. X, na voz autorizada
de "o" Emigrante – passagem indevida do particular ao genérico. Isto
é, sempre que falava "um" emigrante singular, ele tendia a ser apresentado
como o porta-voz de "o" Emigrante em geral. Este curto-circuito selvagem
provocava consideráveis equívocos.
Terça à Noite (SIC, 1993 - 1995) |
2. Uma das
inevitáveis questões foi, sobretudo em torno do caso francês, a do ensino da língua
portuguesa no estrangeiro. Um número é habitualmente citado: a frequência dos cursos
de Português integrados no sistema do ensino elementar francês tem vindo
abaixar desde 82, em que atingiu o recorde de 55 mil, até 93, em que ronda apenas
os 17.500. É natural que dentro de uns dois anos, prosseguindo a tendência dos
últimos dez anos, fiquemos pelos 6 mil. Esta evolução pode parecer impressionante,
mas devemos reconhecer que era inteiramente previsível. O fenómeno da emigração
criou uma situação artificial do ensino do Português em França que nunca
poderia ser duradoura. Esta situação artificial sustentava-se no facto de, para
uma geração de portugueses, o Português ser de facto a língua materna. Uma vez que,
para uma nova geração de portugueses e luso-descendentes, o Português deixou de
ser de facto a língua materna, como o comprovam certos inquéritos, embora com
números que devem resultar de instrumentos de análise pouco finos, é perfeitamente
natural que os pais tracem novas estratégias escolares para os filhos, em que a
concorrência com os franceses no mercado de trabalho favorece a escolha do Inglês
como primeira língua estrangeira a aprender.
Para
além de deficiências gritantes do próprio sistema de ensino, e do facto de ele
se ter vindo a deteriorar sem medidas adequadas para a sua reformulação, costuma-se
falar, e muito bem, em problemas de promoção e informação. A explicação é
pertinente, mas insuficiente. Ela não permite compreender o fenómeno de recuo, uma
vez que o simples êxito em determinado período deveria ser naturalmente
promocional, informativo e expansivo. A questão essencial está no facto de que
aquilo que em determinada fase aparecia como uma evidência – "ser português
deveria levar naturalmente a querer estudar Português" – deixou de o ser.
É aqui que surge uma nova problemática: desaparecida a motivação que se supunha
"natural", é preciso formular um novo elenco de motivações.
3. Dada a importância
das motivações, tornou-se absurdo procurar hoje dar uma prioridade ao ensino da
língua ou à cultura. Na nova situação, as duas realidades estão indissoluvelmente
ligadas. É o conhecimento da língua que permitirá descobrir melhor a cultura,
tal como ela é a cultura que levará ao desejo mais forte de aprender a língua.
Isto é, é necessário um entendimento muito amplo do que se entende por cultura
portuguesa, não apenas nos seus aspetos literários e artísticos, mas também nos
seus aspetos científicos, económicos, sociais ou antropológicos, para que se
consiga produzir junto dos franceses e dos portugueses luso-descendentes, um
leque de motivações suficientemente rico, diversificado e sedutor. Técnicas de
mercado e tecnologia pedagógica são necessidades urgentes.
4. Numa
perspetiva profundamente reacionária e retrógrada, há quem pense que poderia existir
uma cultura portuguesa para os estrangeiros, e depois, num segundo plano, uma
cultura mais "fácil" para a emigração. Ao contrário do que disse
Pedro Bicudo em Terça à Noite, a escolha entre Dino Meira e os Madredeus não é
apenas uma questão de gosto. Porque os gostos educam-se, e existem níveis de
cultura. Não se trata de opor uma cultura erudita a uma cultura popular – as duas
podem situar-se ao mais alto nível. Trata-se de opor uma cultura de qualidade a
uma cultura de massas mais ou menos degradada e industrializada, que se situa,
em termos de níveis culturais, num plano inferior. A verdadeira cultura,
popular ou erudita, é aquela que ajuda cada um de nós a tornar-se aquilo que é,
e não a que procura fazer que cada um continue a ser aquilo que já era. Donde:
o único trabalho possível é aquele que leva a sua exigência a exigir o rigor e
a qualidade, o risco e a consequência, tanto à cultura erudita como à cultura
popular autêntica. Não se trata de excluir demagogicamente Camões e Pessoa
porque faria parte da cultura erudita; trata-se de procurar que um número cada
vez maior possa fazer a experiência apaixonante de ler Camões e de ler Pessoa.
Creio
que uma política cultural junto das comunidades portuguesas no estrangeiro deve
privilegiar dois vetores. Por um lado, é preciso que, em relação aos principais
acontecimentos suscitados pela apresentação da cultura portuguesa no estrangeiro
se desencadeiem mecanismos de intervenção pedagógica e animação cultural que
permitam um melhor acesso a esses acontecimentos. Não faz sentido produzir uma cultura
deliberadamente menor; faz sentido criar condições de acesso à única verdadeira
cultura. Pedagogia viva e animação cultural competente são aqui palavras de
ordem.
Em
segundo lugar, é urgente a criação junto das comunidades portuguesas de cursos
de formação de jornalistas, profissionais de teatro, profissionais de rádio,
intérpretes de dança, fotógrafos, tradutores literários, cenógrafos, etc. Isto
é, torna-se necessário criar estruturas de apoio aos jovens criadores e atores
de cultura, de forma a dar-lhes condições culturais e técnicas para que eles
inventem livremente a cultura em que irão falar do seu lugar e da sua memória,
do seu destino e da sua utopia. Porque os franceses poderão querer aprender
Português por motivos culturais ou económicos. Os portugueses e os
luso-descendentes estarão sempre ligados à língua portuguesa por um nó de
motivações afetivas que só a arte e a literatura podem dizer.
“Emigração e
cultura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de
janeiro de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “Emigração e cultura – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 22-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/emigracao-e-cultura-por-eduardo-prado.html
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