por Eduardo Prado
Coelho
A
SEDUÇÃO GENERALIZADA
1. Aparentemente,
um livro "menor", que até nos provoca logo na contracapa, quando
pretende que se trata, nada mais nada menos, do que de dois livros num só.
"Menor" para o leitor que esperaria um romance ou novos poemas. Mas
uma leitura atenta pode levar-nos a alterar um pouco este modo de ver as
coisas. Porque este livro contém o núcleo de múltiplos poemas e a trama
invisível de várias narrativas, tudo suspenso de uma referência última que é o canto
e a história de uma vida. Cada um dos fragmentos que constituem "Jogo de
Espelhos" de David Mourão-Ferreira aparece, assim, como uma pequena prova
em que o autor se forçou a si próprio a uma "revelação",
"confissão", "alusão velada", "recordação imprevisível",
que este exercício, esta disciplina, que passa, como não podia deixar de ser,
por uma verdadeira disciplina das palavras, faz que este livro manifestamente
"menor" se converta num livro secretamente “maior" – uma espécie
de Índice temático desenvolvido de toda a obra do autor.
Dois
"livros", portanto. Isto é, duas sequências de textos curtíssimos que
se organizam em torno de preocupações supostas diferentes. O primeiro aparece
voltado para o exterior, e tem como tema explícito a "sedução". O
segundo é o resultado de uma série de nótulas de cariz autobiográfico (menos
"biografemas", embora sejam algumas referências a situações
pregnantes, do que traços constitutivos de um retrato íntimo). De qualquer modo,
a complementaridade é evidente, e o titulo lá está para fazer que cada texto se
deixe envolver pelo "jogo de espelhos" que regula o conjunto destes
dois conjuntos – não apenas jogo de espelhos entre o exterior e o interior,
como jogo ainda entre a imagem do autor e o espelho do feminino: "É num
contínuo jogo de espelhos,/ entre as mulheres e si próprio,/ que melhor tem
aprendido a conhecer-se."
2. Poderíamos
pensar que este livro nos propõe uma "teoria" da sedução. De certo
modo, assim é. Mas, nesta como noutras matérias, a teoria é tanto mais teoria
quanto é resistência à teoria. Pela razão muito simples de que a sedução pode
passar pela ideia de "estratégia" (entendida como metáfora retórica e
simultaneamente militar), mas terá sempre de ser uma espécie de estratégia
implícita que não pode tornar-se demasiado visível nem para quem a pratica nem
para aquele que nela se deixa enredar – se é que esta divisão tem, em última
instância, sentido. Porque se alguma coisa define a sedução é a permanente indefinição
dos estatutos e dos papéis, através de mecanismos de permutabilidade que anulam
a própria diferença entre o espelho e o real. Por isso, "as sedutoras que
se ignoram/ são quase sempre as mais temíveis." E por isso também pode o
autor escrever: "Segundo pensa, o poeta só pensa/ quando não pensa que
pensa;/ ou quando pensa que não pensa./ Daí a sua desconfiança/ perante os que
pensam/ que estão sempre a pensar."
O
aspeto mais interessante da forma fragmentária que David Mourão-Ferreira
escolheu para este livro é o facto de um dispositivo deste tipo exigir que cada
unidade textual tenha um "não sei quê" que a torne sedutora em si
mesma. Se se tratasse de um mero apontamento de tipo "teórico",
bastariam as "ideias" para dar corpo e razão de ser ao texto. No caso
de um poema, existem outros mecanismos que permitem que ele vá ao encontro do
leitor. Mas num livro de tipo aforístico, o espaço é demasiado exíguo para
autorizar os desenvolvimentos de uma coerência conceptual ou textual. Resta uma
única solução: em poucas e apertadíssimas linhas, o fragmento tem de nos
seduzir por qualquer coisa que nele aconteça e que consiga produzir um efeito
de diferença. O risco é enorme de se ficar do lado da banalidade. A prova
decisiva consiste em aceitar o risco do banal, deixar que este permaneça como
pano de fundo, e tentar o desvio mínimo, a quase impercetível transgressão da
linguagem.
Dois
exemplos. Na página CVII: "Tenta resistir, o mais que pode,/ à asfixiante sensação
de que o Tempo/ já não é o que não era". O leitor apressado poderá ler que
o Tempo "já não é o que era". Todas as expectativas o encaminhavam nesse
sentido. Mas o leitor atento tropeça num "não" suplementar, que
produz um radical efeito retroativo sobre todo o fragmento. Veja-se por exemplo
a página XXXI: "O que pode haver de carnal/ nos gestos da sedutora/ tem de
ser sempre desmentido/ pelo que há de vegetal nos seus braços". Neste
caso, o texto roda em torno da oposição entre carnal/vegetal. Mas enquanto a
palavra "carnal" é para ser acolhida literalmente, a palavra "vegetal",
induzindo uma série metafórica latente entre "braços/ramos" e
"mulher/árvore" (que sustenta outros fragmentos do livro: "As
mulheres que mais amo/ tinham todas raízes; e asas"), introduz uma
assimetria na balança inicial da oposição esperada: de um lado, o peso do real
("carnal"), do outro o peso de uma metáfora (que é o "ser vegetal"
de uma mulher?).
Qualquer
destes exemplos ilustra de certo modo a dimensão profundamente retórica da sedução
– se tivermos em conta que a retórica é uma forma de sedução generalizada pela linguagem,
ou um modo discursivo de gerir a distância entre as pessoas. Mas a sedução tem
um estatuto próprio no elenco das figuras. Como escreve David Mourão-Ferreira, “se
bem que sensível à metáfora,/ a sedutora pratica mais a metonímia". Embora
fosse necessário averiguarmos ainda o valor da alternativa "ser sensível a”/"praticar",
o que me importa por agora é verificar que toda a sedução se caracteriza por
uma espécie de desequilíbrio entre o salto que se anuncia (fauna convocada:
galgos, tigres), e o movimento lateral que se produz, como se houvesse sempre uma
reserva, uma velatura, um pudor, uma esquiva, um retraimento essencial, que
implica um relançamento do gesto ou da atitude, numa deliberada fruição da
expectativa e da infinita tensão que ela provoca. Tal como cada fragmento se
recusa a dar o salto para o lado do poema, mesmo quando aceita revestir-se de
algumas das suas formas, a sedução está sempre um passo atrás, ou
metonimicamente ao lado, em relação ao pathos do desejo ou às figuras demasiado
vincadas do sexual. Mas é precisamente esse modo como se retrai e se abriga
numa espécie de ilimitada rede metonímica que permite que ela nos surja como
uma sedução generalizada. Se se pode dizer, como sugeriram alguns tratadistas,
que a metáfora é uma dupla metonímia, talvez nos seja lícito sugerir que a
sedução é uma espécie de metonímia que se duplica para nos dar o sentimento de
uma metáfora sempre adiada. Ou, se quiserem, é uma metáfora em diagonal. Porque
"a palavra 'sexo' raramente se regista/ no dicionário da sedutora. Mas
atravessa,/ em diagonal, cada uma das suas páginas."
“A sedução generalizada”, crónica de
Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 8 de janeiro de 1994.
CARREIRO, José. “Jogo de Espelhos, de David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 18-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/jogo-de-espelhos-de-david-mourao.html
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