BACH
OU RAP?
1.
Voltemos à questão do "cultural". Repare-se que não é exatamente o
mesmo que a "cultura". Podemos dizer que no nosso tempo existe uma
verdadeira inflação do "cultural". Por outras palavras, assistimos
hoje a um culto do "cultural". Isso não significa que se viva num espaço
público onde a "cultura" tenha uma verdadeira função. Alguns – como vimos
há pouco com José Saramago a propósito da cultura europeia e das capitais
europeias de cultura – podem mesmo ter uma visão apocalíptica destas coisas, do
estilo "quanto mais cultural menos cultura".
Neste
plano, assistimos a dois movimentos mais ou menos complementares. Por um lado, começou-se
a dizer que tudo é mais ou menos cultura. A moda, pois claro, também é cultura.
O rock, evidentemente, é uma forma de cultura. A banda desenhada tem uma imensa
importância cultural. E o rap, claro. Assim como a gastronomia. E há, como se
sabe, uma tradição cultural que se desenvolve em torno do vinho – a cultura do
vinho, se quiserem. Este processo visava acima de tudo contrariar as acusações de
"elitismo" e atrair as camadas mais jovens, que apenas pareciam
suscetíveis de reagir a formas mais ou menos massificadas de expressões de vida
urbana. Os "graffiti", por exemplo.
O
movimento contrário colocou a inevitável questão: entre uma canção rock e uma
cantata de Bach não haverá diferenças? Ou então: entre um
"video-clip" e um filme de Dreyer? Entre uma peça de
"design" de Philip Stark e um quadro de Francis Bacon? Ou entre
Guimarães Rosa e a letra de um samba? Intuitivamente, diríamos que sim. Será
isto estarmos marcados por uma conceção da Cultura demasiado absoluta que
pretende colocar a arte no lugar da religião? Será que a arte é um conhecimento
superior a todos os outros? Se, no plano teórico, assistimos hoje a releituras
mais ou menos severas dos textos da tradição romântica, se muitos põem em causa
a legitimidade do "sublime" kantiano para proporem a visão
desdramatizada do prazer e do gosto do século XVIII, se alguns se lançam com entusiasmo
numa verdadeira desmitificação do "estético" (que vai de leitores analíticos
de Nelson Goodman até marxistas recauchutados como Terry Eagleton), isso
significa que se procura pôr em causa todas as perspetivas
"elitistas" que preferem Bach ao rap.
2.
Um texto recente de Yves Michaud, publicado no número de dezembro da revista
"Esprit", e intitulado "Des beaux-arts aux bas arts. La fin des absoluts
esthétiques – et pourquoi ce n'est pas plus mal", veio colocar a polémica
em termos particularmente vigorosos. A intervenção de Yves Michaud é tanto mais
significativa quanto parte de alguém que neste momento dirige a Ecole NationaIe
Supérieure de Beaux-Arts em Paris. A questão que lhe tinha sido endereçada – pelo
próprio diretor da "Esprit", Olivier Mongin – partia mesmo desse
espanto: como é possível ter uma visão tão "desestruturada" da arte e
estar à frente de uma instituição "estruturante" como é uma Escola de
Belas-Artes?
Mesmo
quando estamos longe de seguir Yves Michaud nas suas conclusões, temos toda a
vantagem em lermos e analisarmos com atenção algumas das suas teses. Para
Michaud – e este é o seu ponto de arranque –, não faz sentido falar-se num corte
entre o público em geral e a arte contemporânea. Para ele, "se, com
efeito, o grande público está hoje divorciado da arte conceptual ou da pintura
simulacionista, consome avidamente jogos vídeo, filmes, discos compactos interativos,
televisão e espetáculos coreográficos. Onde está o corte? Pode ser que ele
esteja sobretudo na nossa representação do que deveria ser a relação do público
com as artes de elite de que as artes visuais terão acabado por constituir no
século XX um tardio paradigma".
Todos
os raciocínios de Michaud partem de uma espécie da analogia entre o plano
social e político e o plano artístico. Em todos estes domínios estaríamos a
assistir ao fim dos absolutos: ninguém pode agora falar em nome do universal.
Assim, "conhecemos hoje no domínio do gosto exatamente a mesma situação que
conhecemos em política e no domínio social. Todos os nossos critérios de universalidade
foram abalados e postos em causa, e nenhuma situação está garantida". Se
uma sociedade democrática é uma sociedade estruturalmente dividida, devemos
reconhecer, segundo Michaud, que "para o melhor ou para o pior, o efeito
de democracia opera hoje também na cultura”. Isto coloca Yves Michaud numa
interessante posição paradoxal: por um lado, recusa visceralmente todas as
posições estilo Fumaroli, porque feitas em nome de uma conceção elitista da
arte. Mas, por outro lado, embora seguindo Jack Lang no seu alargamento da
noção de "cultural", afasta-se dele quando Lang pretende intervir através
de uma política da cultura: em nome de quê?, pergunta Michaud.
3.
Assim, "a 'grande' estética está sempre à procura das grandes experiências
de rutura e de sublimação. É por isso que se mostra tão fechada às outras
artes, e, em particular, às artes populares, é por isso que se mostra tão
alheia à imensa gama de comportamentos e experiências estéticas que marcam a
nossa vida, tão fechada à estética da experiência quotidiana". Donde,
conclui o nosso autor, "devemos identificar as componentes variadas e diversas
das experiências artísticas tendo em conta a sua diversidade antropológica
assim como a sua universalidade, o seu carácter modesto, que tanto se manifesta
nos prazeres banais e contudo requintados que nos dão as práticas populares como
nas experiências sofisticadas que nos propõe a Grande Arte ou nas experiências
aparentemente desesteticizadas que nos apresenta a arte contemporânea".
4.
Deixo um pouco aqui as afirmações de Yves Michaud à laia de provocação para os
leitores. Embora me pareça que elas têm debilidades óbvias, colocam problemas
extremamente sérios no mundo contemporâneo.
Gostaria
no entanto de alinhavar duas ou três observações. A sabedoria popular, que Michaud
tanto aprecia, costuma dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um
coxo. Ao comentar o facto de alguns professores procurarem anexar a Escola aos
seus gostos e preferências, facto manifestamente negativo, porque a escola deve
ser prioritariamente feita pelos estudantes", Yves Michaud afirma:
"Mesmo se tenho pessoalmente os meus gostos artísticos, de que são
testemunho os prefácios que tenho escrito, esforço-me como diretor por mostrar
uma imparcialidade a toda a prova – o que me valeu paradoxalmente por várias
ocasiões a acusação de autoritarismo." Donde, embora não acredite no ponto
de vista da universalidade, Michaud esforça-se por ter aquilo que Thomas Nagel
chama "the view from nowhere” – algo que não existe, evidentemente, a não
ser pelo pelo nosso desejo de que exista. Porque o ponto de vista de parte alguma
não é a mesma coisa que a ausência de ponto de vista.
Uma
segunda observação poderá ser formulada em termos de analogia. Embora todos nós
reconheçamos a diversidade empírica das experiências de tipo erótico, todas
elas legítimas, agradáveis e enriquecedoras, seremos no entanto incapazes de distinguir
entre um simples "flirt", uma cena de sedução numa noite de festa,
uma longa vida afetiva em comum e um amor louco? Por outras palavras, será que
as grandes experiências de rutura afetiva e erótica nos afastam "elitistamente"
da diversidade infinita das experiências eróticas? Bach e rap terão de ser a
mesma coisa? Terá Bach de nos afastar do rap?
“Bach ou rap”,
crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 5 de fevereiro de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 23-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bach-ou-rap-por-eduardo-prado-coelho.html
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