domingo, 27 de novembro de 2022

Manhãs brumosas, Cesário Verde

Vladimir Volegov, Beginning of purple summer, 2014


Manhãs brumosas

(versos de um inglês)

 





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Aquela, cujo amor me causa tanta pena[1],
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica[2], morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que línguas fala? A ouvir-lhe as inflexões[3] inglesas,
– Na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! –
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas[4];
E o meu desejo nada em época de banhos,
E, ave de arribação[5], ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandesas têm soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentidões ufanas[6],
Alta, escorrida, abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas são marítimas, serranas[7],
Sugere-me o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um "rural boy"[8]! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos[9],
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela, cujo amor me causa tanta pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Cesário Verde

Foz do Tejo, 1877

Porto, Renascença, 1879, p. 155

_________

[1] Na edição de O Livro de Cesário Verde (1887), elaborada por Silva Pinto, o verso é: E aquela, cujo amor me causa alguma pena.

[2] Campestre; simples.

[3] Mudanças no tom de voz.

[4] Rudezas.

[5] ave que vem por pouco tempo a uma região; indivíduo que demora pouco tempo no lugar onde foi colocado.

[6] Altivas.

[7] da serra ou a ela relativo; montesino.

[8] Rapaz do campo.

[9] Ravinas; precipícios.



 


Faça uma leitura atenta do poema “Manhãs brumosas”, de Cesário Verde, e responda, com precisão e clareza, aos questionários que se seguem.

 

QUESTIONÁRIO I

1. O poeta procura fixar a “impressão” que a realidade lhe deixa na sensibilidade.

1.1. Refira o elemento real que lhe provoca essa “impressão”.

1.2. Interprete a transfiguração do real operada pelo sujeito poético.

1.3. Registe as formas verbais que marcam essa transfiguração.

2. Atente nos dois últimos versos da 4.ª estrofe. Neles são utilizadas duas figuras de estilo caracterizadoras de determinados sentimentos.

2.1. Identifique essas figuras de estilo.

2.2. Comente a sua utilização tendo em conta os sentimentos expressos e o espaço evocado.

3. "Pinto quadros, por letras. por sinais" é uma afirmação de Cesário, facilmente identificada nos seus poemas.

Não ultrapassando as oito linhas, explicite os elementos que tornam evidente essa opção na obra poética de Cesário.

 

Sugestões para a correção:

1.1. O elemento real que lhe provoca a impressão é "Aquela" que "Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda", "Ela".

1.2. O sujeito poético deixa de "ver" o que observava para se evadir no espaço e no tempo. Esse real transfigura-se e surge então: "Uma pastora audaz da religiosa Irlanda".

1.3. As formas verbais que marcam o momento da transfiguração são: "Lembra-me"; "Sugere-me"; "Parece".

2.1. 5.° verso - metáfora

6.° verso - comparação.

2.2. As duas figuras de estilo remetem para a interpretação do elemento humano (sentimento amoroso - "mágoas" e "desdéns") com a natureza.

3. - O real exterior apreendido pelo mundo interior que o interpreta e recria (através de letras e sinais - a escrita);

     - A pintura de imagens típicas de modo a dar uma dimensão realista do mundo concreto que o rodeia;

     - A subversão da realidade através da arte poética:

• A cidade torna-se campo;

• Os frutos tomam-se seres.

     O referente estático pré-existente dá lugar à vida através da escrita o que marca a subjetividade lírica na escrita de Cesário.

NOTA: Os alunos poderão lambem referir-se a alguns dos poemas analisados para exemplificar que pretendem demonstrar, sem que esse facto altere, no entanto, a cotação a atribuir, visto tal não ser exigido na questão apresentada.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, Prova modelo de 1996

 

Vladimir Volegov, 2019-06

QUESTIONÁRIO II

1. Caracterize o espaço representado no texto.

2. Trace o retrato, físico e psicológico, da figura feminina.

3. Explicite a importância das referências temporais presentes no poema.

4. Refira o sentido produzido pela quase repetição da primeira sextilha na última estrofe.

5. Analise os sentimentos que «ela» desperta no sujeito poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O espaço representado é:

- simultaneamente marítimo e rural;

- constituído por praias, uma zona de falésia («estas asperezas»), uma paisagem acidentada predominantemente campestre («país de prados e barrancos»);

- evocativo das paisagens da Irlanda.

 

2. A figura feminina surge retratada, no plano físico, do seguinte modo:

- é «morena», com olhos pequenos e vivos («olhos de perdiz»), «redondos e castanhos», alta e magra («altos pés», «Alta, escorrida»), mas robusta («grossos tornozelos»); tem um tom de voz firme («forte»), simultaneamente melódico («cantada») e impositivo («com que ordena»), marcado por «inflexões inglesas» e fazendo lembrar uma irlandesa (cf. v. 6);

- tem um aspeto prático, quase masculino e rural, usando «o chapéu ao lado», «o cabelo à banda», «Sem brincos nas orelhas» - «Parece um 'rural boy'!». A sua feminilidade transparece, apenas, nas referências ao seu «vestido claro» e justo;

- …

 

Emergem ainda, do texto, certas características psicológicas. Assim, trata-se de uma mulher:

- determinada e audaciosa;

- simples, prática e descontraída;

- distante e desdenhosa perante o sentimento amoroso do sujeito poético;

- …

 

3. As formas verbais no presente do indicativo definem o presente como o tempo representado no poema. O título «Manhãs Brumosas», os elementos do texto «de manhã» (w. 4 e 28), «névoa azul» (v. 8) e «época de banhos» (v. 10), situam esse presente em repetidas manhãs enevoadas de Verão. A referência à época estival e a imagem «Manhãs Brumosas» concorrem para acentuar, no poema, o erotismo do desejo do «eu» e sua irrealização.

 

4. A primeira e a última estrofes do poema são praticamente idênticas, registando-se, apenas, pequenas modificações do sentido inicial, resultantes da inclusão da conjunção coordenativa «E» e da substituição da palavra «bucólica» (lª estrofe) por «católica» (5ª estrofe). Confere-se, assim, ao poema uma estrutura circular que, pela quase repetição do princípio no final, reitera e enfatiza certos aspetos temáticos. Nomeadamente:

- o sentimento de frustração amorosa;

- a atração pelo tipo feminino da mulher irlandesa e o fascínio pelo país que evoca - a Irlanda;

- …

 

5. Os sentimentos que «ela» desperta no «eu» - um «inglês» -, definidos globalmente no primeiro verso como um amor que é causa de intensa mágoa, evoluem do seguinte modo ao longo do poema:

- atração e fascínio;

- desejo intenso;

- encantamento pelo imaginário da cultura irlandesa por «ela» convocado;

- mágoa resignada face ao desdém que «ela» manifesta - mágoa que o reiterar da expressão «tanta pena», na última estrofe, sublinha e intensifica.

 

(Fonte: Português B: questões de exame do 12.º ano: 1998-2003. Volume 1. Lisboa, GAVE, 2004)

 

Vladimir Volegov, Detail of “Light breeze at dunes”, 2016

 

TEXTO DE APOIO

Os Pontos e as Brumas de um Cesário-Seurat

Este artigo tem por objetivo estabelecer relações entre a poesia e a pintura impressionistas a partir de Manhãs Brumosas de Joaquim José Cesário Verde (1855-1886) (3), mostrando uma construção verbal que traz semelhanças com procedimentos pictóricos.

O poema acima transcrito é composto de cinco sextetos e foi escrito na Foz do Tejo, em 1877, e publicado no Porto, em Renascença, em 1879 (Serrão 1992: 138). Trata-se de um retrato impressionista de mulher, cuja descrição que se constrói através de imagens pictóricas: é "identificada com o campo e com o mar - espaços simbólicos da mesma liberdade" e "recorda ao poeta 'uma pastora audaz da religiosa Irlanda' (Macedo 1986:127)".

Juntamente com o subtítulo - (versos dum inglês) - , o poema se parece com uma pintura: o gesto da mulher (Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda) provoca no eu poético uma impressão: lembra-me uma pastora audaz da religiosa Irlanda. Esse mesmo subtítulo também "lança uma luz inesperada sobre essa associação: para um inglês, a Irlanda rural tinha um valor semântico equivalente ao do campo para o lisboeta do 'Setentrional' (idem: ibidem)".

A voz da mulher provoca sensações meio disparatadas e sinestésicas: na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! - como que procurando um caminho semelhante aos altos pés que representam asperezas na busca da expressão e na confusão de impressões que a presença feminina traz.

Cinco sextetos com versos altamente musicais, de certa forma equilibrados por um ritmo e uma métrica impecáveis. Um título bem elaborado. Um poema-pintura, mas também um poema-música. Além da análise de Helder Macedo (1986: 126-128), somente uma referência sobre essa poesia (Figueiredo 1986: 141). Quase um poema que passa esquecido, pois está inserto entre Em Petiz e O Sentimento dum Ocidental no livro organizado por Joel Serrão.

É uma poesia-pintura realista impressionista. As cores percorrem o poema como se ele fosse uma pintura, enquanto a descritividade nos traz elementos da realidade, o retrato da mulher que lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Poderia ser uma canção, de tom romântico, se não fosse a descrição entrecortada, o fragmento que altera a visão ideal da paisagem e da mulher.

A musicalidade do poema, em versos de doze sílabas, nos remete a um ouvir o que lemos ou falamos (e às vezes nos deixa sem entender o sentido dos versos):

Aquela, cujo amor me causa tanta pena,

Não é só a expressão brumosas que dá o tom impressionista a este poema, nem tão-somente o fato de ser um retrato de mulher, tema também da pintura. Há toda uma construção verbal por meio de fragmentos metonímicos que se metaforizam. Ao ler o poema, vem-nos à mente uma tela de Georges Seurat ou de Paul Signac, em que tudo se constrói com pontos-cores ou pontos-palavras. Independentemente da temática, as telas A ponte em Courbevoie, de Seurat, o Rio Sena em Asnières, de Paul Signac, trazem os procedimentos composicionais de Manhãs Brumosas.

As frases entrecortadas produzem uma construção por pontos-palavras: aquela (v1e1) põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda (v2e1) e com a forte voz cantada que ordena (v3e1); ou então: por entre o campo e o mar, bucólica, morena, (v5e1) e lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda (v6e1).

A presença de brumas na manhã acompanha o poema e a mulher que é descrita pelo olhar, pelas sensações que ela provoca e pelas nuances do seu retrato físico e psicológico. É aquela mulher cujo amor causa pena, mas que tem voz cantada forte que ordena e lembra uma pastora audaz da religiosa Irlanda. Uma espécie de mulher, deusa, mãe, protetora - essas são as impressões que as palavras-pinceladas apresentam.

Há toda uma linguagem poética que se constrói através do processo pictórico, por meios de pinceladas rápidas, ou de manchas, ou de pontos coloridos: a mulher põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda, traz um vestido claro, botões a tiracolo e aplicações vermelhas.

Na estrofe 1, manhã define a claridade do chapéu ao lado e do cabelo à banda e até determina o som (claro, feliz) da forte voz cantada com que ordena e faz o eu-poético lembrar (imaginar, associar, mostrar impressões) a pastora da Irlanda.

A descritividade é construída por umas poucas palavras reais, se usarmos a denominação de Manuel Rodrigues Lapa: aquela - amor - chapéu - cabelo - voz - pastora - Irlanda. Inúmeros versos do poeta são formados apenas de substantivos, o que demonstra uma preocupação com a síntese, como é o caso do segundo verso da estrofe três: E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Na estrofe 2, versos 1 a 3, a construção pontilhista se faz evidente e deixa entrever uma construção poético-pictórica:

Que línguas fala? Ao ouvir as inflexões inglesas,

- Na névoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos! –

Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas.

O verso dois intercala imagens e cores: azul (névoa), marrom (caça e rebanho).

Se a irlandesa agrada o eu-poético, há uma atitude que vê, independentemente da idealização. Isso é uma constante na poesia de Cesário sobre ou para as mulheres: elas têm qualidades e defeitos.

Interessante notar a construção de um diálogo metafórico a partir de Que línguas fala?, que se faz por um processo impressionista: há inflexões inglesas cujo sentido se constrói por imagens apresentadas por substantivos - névoa azul, caça, pescas, rebanhos, altos pés, aves de arribação, olhos de perdiz - que condicionam a um olhar feito por analogias com a vida rural.

A terceira estrofe se constrói de forma semelhante: a mulher que ele vê se assemelha a uma irlandesa e tem também desmazelos, como o fato de descobrir os grossos tornozelos. Ver os tornozelos dessa mulher alta, escorrida, abstrata, sugere-lhe outras sensações que se condensam em substantivos: naufrágio, músicas, gelos, redes, manteiga, queijos, choupanas. Toda a construção verbal se efetiva através de imagens do cotidiano rural, como se o poeta pintasse muitas cenas que vão passando pela sua mente e formam movimento, através de uma sequência de imagens-palavras, como fotogramas de um filme.

Na quarta estrofe, há uma tentativa de síntese: a irlandesa se assemelha a um rural boy, "maria-rapaz, tão confortavelmente ao gosto do inglês" (idem: ibidem). A descrição também "pinta" a mulher: sem brincos, vestido claro, botões a tiracolo, aplicações vermelhas. Da visão particular da mulher, há um plano geral ou segundo plano que descreve: país de prados e barrancos. A essa imagem o eu-poético justapõe e contrapõe mágoas = mansíssimas ovelhas X desdéns = vitelos brancos, para indicar cores e seres do mundo rural.

A quinta estrofe é quase a repetição da primeira, exceto quanto a substituição de bucólica por católica (quinto verso). Funciona como refrão, o que nos faz supor uma cantiga, até pela grande musicalidade do poema.

A cinco estrofes formam um retrato de mulher com base numa descrição composta por frases nominais e parataxes, na maioria dos versos. Traz alguma semelhança com alguns perfis femininos de Camões (Um mover de olhos, brando e piedoso) e de Filinto Elísio (Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados), guardadas as devidas proporções. Enquanto que há uma descrição física e psicológica, e também idealizada, em Camões, enquanto Filinto Elísio se mantém numa descrição física que enaltece a beleza também idealizada da sua Márcia, Cesário Verde é capaz de descrever o que vê e separar isso do que sente, o que deixa claro com verbos como lembra-me, sugere-me, ou em versos que indicam uma metáfora, uma situação onírica, como: O meu desejo nada em época de banhos, Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas, Correm os seus desdém, como vitelos brancos.

Ler Manhãs Brumosas é semelhante a ver um retrato de mulher cujo pano de fundo é uma paisagem rural. Mulher construída por pontos-palavras ou manchas-palavras numa espécie de brumas em que, verso a verso, Cesário nos revela o que ele vê e o que ele sente. Parece-nos tão cheio de observações e, ao mesmo tempo, tão imbuído do espírito da síntese, que o sentido se constrói pelas palavras "como representação do mundo e do pensamento, como instrumento de comunicação, como forma de ação e interação. É um descobrir uma espécie de pressa em dizer tudo com poucas palavras, o que leva o poeta a uma construção por imagens-palavras.

Não foi à toa que Fernando Pessoa o considerou um dos três mestres da Modernidade, ao lado de Antero de Quental e Camilo Pessanha, com os quais Cesário Verde mostra algumas semelhanças. Nessa construção sintética, e nesse apoio nas artes plásticas, é que parece residir o aspeto inovador e prenunciador da poesia modernista portuguesa, razão por que até hoje Cesário Verde é lembrado, citado, seguido, e lido.

 

BIBLIOGRAFIA

FIGUEIREDO, João Pinto de.

1981 - Cesário Verde: a obra e o homem. Lisboa, Arcádia.

1986 - A vida de Cesário Verde. 2.ed., Lisboa, Editorial Presença.

LAPA, Manuel Rodrigues (1998). Estilística da língua portuguesa. SP, Martins Fontes.

MACEDO, Helder.

1986a - Nós: uma leitura de Cesário Verde. 3ª ed. Lisboa, Dom Quixote.

1986b - "Cesário Verde: o bucolista do realismo", em David Mourão-Ferreira (dir.), Colóquio/Letras, revista, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, nº 93, p. 20-28.

PESSOA, Fernando.

1974 - Fernando Pessoa: obras em prosa. 1.ed. RJ, Aguillar, p.116,129,384,385,419-420.

1980 - Ficções de interlúdio/1: poemas completos de Alberto Caeiro. 6.ed. RJ, Nova Fronteira, p.28,36,140.

1983 - Ficções de interlúdio/4: poesias de Álvaro de Campos. 3.ed. RJ, Nova Fronteira, p.33-37.

1986 - O livro do desassossego por Bernardo Soares. SP, Brasiliense, p.81-82,121.

SARAIVA, António José (1994). Iniciação na Literatura Portuguesa. 1.ed., Lisboa, Gradiva, p.133-138.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar (1989). História da literatura portuguesa. 15.ed., Porto, Porto Ed., p. 654, 728, 831, 963, 966, 985, 989-992, 997-999, 1030-1031, 1072, 1126, 1147.

SERRÃO, Joel (org.) (1992). Obra completa de Cesário Verde. 6.ed. Lisboa, Livros Horizonte.

 

Jorge Luiz Antonio, “Os Pontos e as Brumas de um Cesário-Seurat”, in Ciberkiosk. Lisboa, 2001. Disponível em http://www.ciberkiosk.pt/ensaios/jluizantonio.html (consultado em 2002-12-14)

  

 

Poderá também gostar de:

 



CARREIRO, José. “Manhãs brumosas, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 27-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/manhas-brumosas-cesario-verde.html



sábado, 26 de novembro de 2022

Arrojos, Cesário Verde


 

FANTASIAS DO IMPOSSÍVEL

ARROJOS1

 






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Se a minha amada um longo olhar me desse 
Dos seus olhos que ferem como espadas, 
Eu domaria o mar que se enfurece 
E escalaria as nuvens rendilhadas. 

Se ela deixasse, extático2 e suspenso 
Tomar-lhe as mãos mignonnes3 e aquecê-las, 
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso 
Apagaria o lume das estrelas. 

Se aquela que amo mais que a luz do dia, 
Me aniquilasse os males taciturnos4,
O brilho dos meus olhos venceria 
O clarão dos relâmpagos nocturnos. 

Se ela quisesse amar, no azul do espaço, 
Casando as suas penas com as minhas, 
Eu desfaria o Sol como desfaço 
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura5 dos meus loucos desvarios 
Fosse menos soberba6 e menos fria, 
Eu pararia o curso aos grandes rios 
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos 
Me concedesse apenas dois abraços, 
Eu subiria aos róseos7 paraísos 
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos 
E os lamentos das cítaras8 estranhas, 
Eu ergueria os vales mais profundos 
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia 
Me estreitasse ao peito alvo como arminho9,
Eu nunca, nunca mais me sentaria 
Às mesas espelhentas do Martinho10.

Cesário Verde

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de março de 1874

Obra Completa (org. Joel Serrão), Lisboa, Livros Horizonte, 1988

 

___________

[1] extático: em êxtase; maravilhado.

[2] mignonnes (palavra francesa): delicadas; graciosas; pequenas.

[3] taciturnos: calados; tristes.

[4] Laura: a mulher celebrada pelo poeta italiano Petrarca, apresentada como amada inacessível.

[5] soberba: altiva; arrogante.

[6] róseos: da cor das rosas; rosados.

[7] cítaras: instrumentos musicais de cordas.

[8] arminho: animal das regiões polares, de pêlo macio e, no Inverno, muito branco.

[9] Martinho: café lisboeta.

 



 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema “Arrojos”, de Cesário Verde.

1. «Arrojos» foi publicado em conjunto com dois outros poemas de Cesário sob o antetítulo comum «Fantasias do Impossível».

Explicite as relações de sentido que este antetítulo estabelece com o texto.

2. Identifique quatro dos traços que caracterizam a figura feminina, documentando-os com elementos do texto.

3. Indique um dos efeitos de sentido da hipérbole presente nos versos: «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas» (vv. 7-8).

4. Refira a importância dos dois últimos versos para a interpretação do poema.

5. Analise a relação do «eu» com a «amada», tal como é expressa no discurso poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Através dos dois primeiros versos de cada uma das quadras do poema, vai-se tecendo a fantasia de uma paixão feliz (ele fantasia aquilo que faria com a amada se esta o permitisse): as sucessivas orações condicionais assinalam o carácter hipotético, não real, dessa felicidade. Assim se sugere uma série de «Fantasias do Impossível», anunciadas no antetítulo e depois desenvolvidas nos dois últimos versos de cada quadra, em que se projetam as ações sobre-humanas com que o «eu» celebraria a plenitude de tal paixão (se ela fosse real).

2. Afigura feminina apresenta os seguintes traços caracterizadores:

- sedutora, olhar cortante (glacial): «olhos que ferem como espadas» (v. 2);

- delicada, mãos pequenas e graciosas: «mãos mignonnes» (v. 6);

- amada inacessível: «a Laura» (v. 17);

- influência perversa sobre o «eu»: «a Laura dos meus loucos desvarios» (v. 17);

- arrogância e vaidade: «soberba» (v. 18);

- insensibilidade e indiferença: «fria» (v. 18);

- distância e irrealidade: «aquela visão da fantasia» (v. 29);

- pele muito branca (e macia): «peito alvo como arminho» (v. 30);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de quatro traços caracterizadores.

3. A hipérbole, presente nos versos «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas», produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- exprime a intensidade da paixão;

- representa a força da paixão feliz, capaz de conferir os poderes sobre-humanos que permitem ao sujeito dominar as forças da Natureza;

- sugere, pelo desmesurado excesso da expressão (que se mantém, ao longo do poema, pelo menos até à penúltima estrofe), a presença de auto-ironia na atitude do «eu»;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de um dos efeitos de sentido.

4. Os dois versos finais têm um marcado cunho irónico, porque apresentam como a mais ousada das audácias (dos «Arrojes») do «eu», apaixonado e feliz, aquela que não passa do corte com um hábito, próprio do quotidiano citadino: ir a um determinado café. Desta forma, estes versos evidenciam o carácter lúdico e irónico da composição (já enunciado ou sugerido pelo empolamento da linguagem hiperbólica presente ao longo do poema).

5. A relação do «eu» com a «amada» é marcada pelo desequilíbrio: à paixão do «eu» («aquela que amo mais que a luz do dia» - v. 9) correspondem a distância e a inacessibilidade do seu objeto, só transponíveis pela fantasia, pelos «Arrojos» da imaginação.

O poema é a expressão dessa fantasia. Nessa relação sonhada, o «eu», formulando de diferentes modos o desejo de que a «amada» corresponda aos seus votos de amor, representa-se expectante e suspenso, manifestando, por um lado, a consciência da impossibilidade da realização dos seus desejos e sugerindo, por outro lado, a atitude do «eu» enlevado na sua própria fantasia (que, a realizar-se, o transfiguraria em sujeito de ações sobre-humanas).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, 1.ª fase, 2.ª chamada

 

Poderá também gostar de:

 

  • Comentário do poema “Arrojos”, de Cesário Verde, por Maria Figueiredo e Maria Belo, em Comentar um texto literário. Lisboa, Editorial Presença, 1999 (6.ª ed.), pp. 76.85

 


sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Esplêndida, Cesário Verde


 

ESPLÊNDIDA






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Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico1 Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol2
     Em sedas multicores.

Deita-se com languor3 no azul celeste
Do seu landau4 forrado de cetim;
E os seus negros corcéis5 que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
     Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas6
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bom-tom
     Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marechala,
E as mãos, que o Jock Club embalsemou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
     Um amante, em Bengala.

É ducalmente7 esplêndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
     Atrai, como a voragem!

Os lacaios8, vão firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com roseta, e nas librés9
     De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir10, como um doido, em convulsões,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejando o lugar dos seus truões11,
     Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
     Teu pobre trintanário12.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando galões13 de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
     Formosa aristocrata!

 

Cesário Verde

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de março de 1874

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983

____________

[1] Sensual; luxurioso.

[2] Cor de fogo que às vezes o horizonte toma ao nascer e ao pôr do Sol; arrebique, artifício, adorno.

[3] Langor: estado de lânguido; definhamento; moleza; doçura; desfalecimento.

[4] Antiga carruagem de tração animal, de quatro rodas, com dois bancos frente a frente.

[5] Cavalos velozes.

[6] Incensar: Defumar com incenso; (fig.) adular, enganar.

[7] De duque ou a ele referente.

[8] Criados que acompanhavam o amo nos seus passeios ou viagens.

[9] Espécie de uniformes de lacaios e cocheiros de casa rica.

[10] Passeio (de rua).

[11] Truão: bobo; palhaço; saltimbanco.

[12] Lacaio que se senta ao lado do cocheiro, na almofada da carruagem.

[13] Marca; distintivo; emblema; tira, fita, linha, faixa.

 

 

I - Das hipóteses apresentadas (A, B, C e D), sobre o poema "Esplêndida", assinala a correta.

1 - De que movimento literário está Cesário Verde mais próximo?

A) Do Romantismo.

B) Do Neoclassicismo.

C) Do Parnasianismo.

D) Do Ultrarromantismo.

 

2 - A modernidade na poesia começa com Cesário. Porquê?

A) Porque valoriza os sentimentos.

B) Porque endeusa a Razão.

C) Porque o eu dá lugar aos outros.

D) Porque rejeita a rima.

 

3 - Na obra poética deste autor, qual o binómio que ressalta?

A) Terra/Céu.

B) Sentimento/Razão.

C) Corpo/Alma.

D) Cidade/Campo.

 

4 - No poema transcrito, que atitude manifesta o sujeito lírico em relação ao tu?

A) Reconhecimento.

B) Desprezo.

C) Aceitação.

D) Fascínio.

 

5 - Do ponto de vista psicológico, como poderemos caracterizar o tu?

A) Sedutor.

B) Frágil.

C) Sentimental.

D) Racional.

 

6 - "Ei-la!" A interjeição a itálico o que traduz?

A) Receio.

B) Inquietação.

C) Admiração.

D) Dúvida.

 

7 - Qual o processo de formação presente na palavra Rei-Sol?

A) Conversão (ou derivação imprópria).

B) Composição morfológica (ou composição por radicais).

C) Composição morfossintática (ou composição por palavras).

D) Derivação não-afixal.

 

8 - O que significa a palavra arrebol?

A) Estrela.

B) Pedra preciosa.

C) Diamante.

D) Nascer do sol.

 

9 - A caracterização da velocidade do landau é dada através de que recurso de estilo?

A) Hipérbole.

B) Perífrase.

C) Comparação.

D) Personificação.

 

10 - Na 3.ª estrofe, o movimento da carruagem é traduzido pela expressão verbal vai subindo. A que tipo de conjugação pertence essa expressão verbal?

A) Conjugação passiva.

B) Conjugação ativa.

C) Conjugação simples.

D) Conjugação perifrástica.

 

11 - A mulher retratada torna-se, na 3.ª estrofe, ainda mais distante. Porquê?

A) Porque é ducalmente esplêndida.

B) Porque se distingue no brilhantismo da equipagem.

C) Porque vai de olhos cerrados a cismar.

D) Porque atrai como a voragem.

 

12 - Qual o recurso de estilo presente no 2.º verso da 4.ª estrofe?

A) Hipérbole.

B) Sinestesia.

C) Perífrase.

D) Personificação.

 

13 - Na 5.ª estrofe, o sujeito poético exprime de forma patética os seus sentimentos. Porquê?

A) Porque se enaltece.

B) Porque se arrepende.

C) Porque se desespera.

D) Porque implora.

 

14 - "E eu vou acompanhando-a ..." Indique a função sintática da forma pronominal sublinhada.

A) Sujeito.

B) Complemento indireto.

C) Modificador.

D) Complemento direto.

 

15 - "Para ser, ó princesa sem sorrir,". Que função sintática exerce a expressão sublinhada?

A) Sujeito.

B) Vocativo.

C) Modificador.

D) Complemento direto.

 

16 - Que processo de formação está presente na palavra sorrir? (Ver, p.f., expressão sublinhada na questão anterior).

A) Conversão (ou derivação imprópria).

B) Neologismo.

C) Afixação.

D) Derivação não-afixal.

 

17 - Na penúltima estrofe, o sujeito poético reforça o seu desejo de dependência em relação ao tu através de que recurso de estilo?

A) Metáfora.

B) Apóstrofe.

C) Sinédoque.

D) Anáfora.

 

18 - O que é um trintanário?

A) Namorado.

B) Pretendente.

C) Amo.

D) Lacaio.

 

19 - A referência aos galões de velha prata que poderá querer significar?

A) A superioridade do eu.

B) A sua riqueza.

C) O seu passado ilustre.

D) A sua tentativa de aproximação.

 

20 - Que sentido expressa a exclamação final?

A) Cansaço.

B) Desapontamento.

C) Desespero.

D) Admiração.

 

Chave de correção: 1-C; 2-C; 3-D; 4-D; 5-A; 6-C; 7-C; 8-D; 9-C; 10-D; 11-C; 12-B; 13-C; 14-D; 15-B; 16-A; 17-D; 18-D; 19-D; 20-D.

Questionário com itens de seleção adaptado de: http://www.profareal.pt/testes/doc.asp?tema_id=775 (consultado em 2006-05-10).

***




 

II – Questionário sobre as estrofes 1-2 e 5-9 do poema “Esplêndida”, de Cesário Verde:

1. «Esplêndida» é como que um monólogo dramático, no qual o eu lírico manifesta uma certa atitude perante uma figura feminina.

1.1. Faça o levantamento de expressões que revelam a artificialidade deste tipo citadino de mulher.

1.2. Enuncie as características gerais da figura feminina descrita no poema.

1.3. Analise a imagem que o sujeito poético dá de si próprio, fundamentando com expressões do texto.

1.4. Caracterize a relação que se estabelece entre o sujeito poético e a «esplêndida».

2. Proceda ao levantamento dos recursos estilísticos mais sugestivos do poema.

(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 537. Cursos Complementares Noturnos - Liceal e Técnicos. Prova Escrita de Português (Índole Científica). Portugal, 1997, 2.ª fase)

 ***



 

III - Elabore um comentário do poema, integrando o tratamento dos seguintes tópicos:

- tema e seu desenvolvimento;

- imagem da figura feminina;

- imagem do sujeito poético;

- relação entre o sujeito poético e a «esplêndida»;

- linguagem e recursos estéticos que servem a mensagem poética.

 

Explicitação de cenários de resposta:

INTRODUÇÃO:

ENQUADRAMENTO DO POEMA NA OBRA E ÉPOCA A QUE PERTENCE

  • Trata-se de um poema da primeira fase (1873-74) de Cesário verde (1855-1886) caracterizada por um idealismo romântico (com o tema da mulher e do amor) moderado, senão anulado, pela ironia. 
  • Na sua obra encontram-se não só elementos característicos do realismo e parnasianismo, como também do impressionismo.

A ESTRUTURA EXTERNA:

  • 7 quintilhas. 
  • Os 4 primeiros versos de cada estrofe são decassílabos e o último é hexassílabo. 
  • Esquema rimático: ababa – rima cruzada.

 

TRATAMENTO DOS TÓPICOS DE ANÁLISE

O TEMA

  • A humilhação sentimental do sujeito poético tentando aproximar-se da figura feminina.

DESENVOLVIMENTO DO TEMA / ESTRUTURA INTERNA

Há dois momentos no poema:

  • 1.º momento - vv. 1-20: parece haver um desdém no modo como se pinta o «langor» e altivez com que a mulher se reclina no seu «landau», a lentidão solene da carruagem e os lacaios vestidos a rigor. Assim, a temática da humilhação do sujeito (poeta solitário) perante a «formosa aristocrata» determina que, nesta 1ª parte, se procure acentuar os elementos caracterizadores da mulher «esplêndida» que serão factor de opressão. 
  • 2.º momento - vv. 21-35: o sujeito está disposto a renunciar à sua «independência» e ao seu «porvir» para conseguir aproximar-se da «formosa aristocrata». Humilhação do sujeito face ao esplendor daquela deusa distante e altiva. 

A IMAGEM DA FIGURA FEMININA

  • Trata-se da caracterização da mulher fatal da época, citadina, autêntica personagem plana artificial.
  • Expressões que revelam a artificialidade deste tipo citadino de mulher: «os esplendores do lúbrico Versailles do rei-Sol», «retoques sedutores», «ducalmente esplêndida», «refulgir dum arrebol / em sedas multicolores», «altivez magnética e bom tom», «clara como os pés à marechala» (IV)
  • Características gerais da figura feminina: bela, sedutora, esplêndida, atraente, formosa, aristocrática.

A IMAGEM DO SUJEITO POÉTICO

  • Sinistro e mal trajado, solitário (VIII), corcovado, doido, febril, de colarinho amarrotado. Desejo de ser, pobre trintanário, seu criado de mesa – auto-humilhação, sente-se inferiorizado.

A RELAÇÃO ENTRE O SUJEITO POÉTICO E A «ESPLÊNDIDA»

  • Não há relação social entre ambos; tudo se passa na mente do sujeito que chega ao ponto de querer ser criado de mesa, mas «de costas viradas para ti» – desprezo pela sua aristocracia. O sujeito encara a «esplêndida» de forma violentamente irónica.

A LINGUAGEM E OS RECURSOS ESTÉTICOS QUE SERVEM A MENSAGEM POÉTICA

  • Marcas de narratividade: espaço – rua do Alecrim; personagens…
  • Função expressiva da linguagem: o sujeito traduz a sua admiração pela interjeição «eis», pelas frases do tipo exclamativo, pelas formas verbais de 1.ª pessoa e pela caracterização do Eu com expressivos adjetivos.

1.ª parte:

  • A 1ª estrofe abre com 2 exclamações («Ei-la! Como vai bela!»), que imediatamente nos dão conta da postura extasiada do sujeito. 
  • Hipérbole encomiástica  em que se salientam as referências à luz e cor e, sobretudo, as sugestões de sensualidade («altivez magnética», «lúbrico Versailles», « retoques sedutores», «sedas multicores»).
  • Sinestesia: «sedas multicores».
  • Adjetivação expressiva: «sedutores», «esplêndida». 
  • Comparação: «É como o refulgir dum arrebol», «velozes como a peste» (o poeta vale-se do fenómeno da peste que progride vertiginosamente no meio das pessoas, manifestando assim a velocidade dos corcéis), «atrai como a voragem». 
  • Uso expressivo do advérbio: «ducalmente esplêndida» 
  • Anáfora: vv. 13-14: «Ela» 
  • Sinestesia: «a doce brisa».

2.ª Parte:

  • Valor expressivo do Vocativo («a princesa sem sorrir», «formosa aristocrata») respeitante a uma atitude que implica ainda desmesurado enaltecimento da mulher. 
  • Adjetivação cuidada de conotação negativa: «corcovado», «febril», «amarrotado», «sinistro e mal trajado», «contente e voluntário», «solitário», «pobre» -
  • Comparação: «como um doido».
  • Anáfora: vv. 28-29: «Para ser» .
  • A exclamação da última estrofe serve para criar o clima de sofisticação mundana que atrai o sujeito.

CONCLUSÃO

Atração, humilhação e repulsa que a mulher fatal, aristocrática e citadina provoca no sujeito poético.

 ***



IV – Texto expositivo

Leia atentamente a afirmação seguinte: 

Na história da poesia da cidade os poemas típicos de Cesário Verde são algo inteiramente novo, pelo amor juvenil e constante à realidade concreta, vista com olhos de artista plástico, transposta em séries de instantâneos claros, exatos, flagrantes. Em «Cristalizações», «Num Bairro Moderno», «O Sentimento dum Ocidental» descobrimos a figura integral de Lisboa.

Jacinto do Prado Coelho, Problemática da História Literária. Lisboa, Ed. Ática, 1961

 

Elabore um texto expositivo-argumentativo em que aborde de forma fundamentada as afirmações sobre a poesia de Cesário Verde acima transcritas.

 

Tópicos de correção:

  • Em «Num Bairro Moderno», «Cristalizações» e «O Sentimento dum Ocidental» há o gosto pelo exterior, nomeadamente pela cidade, por Lisboa, em que o Eu poético deambula.

  • Nestes poemas há o aprofundamento da oposição entre a cidade e o campo, sendo este um contraste idealizado daquela.

  • O flagrante realismo incorporando nos poemas:

- realidade concreta: cenas de exterior, quadros e figuras citadinos;

- prosaísmo poético.


  • Há uma obsessão pelas sensações físicas e psíquicas que Lisboa provoca transmitidas através de uma visão plástica – visão do real de modo impressionista e, por vezes, quase surrealista (fuga ao realismo):

- a recriação poética com grande nitidez, numa atitude de captação do real pelos sentidos, com predominância dos dados da visão (a cor, a luz, o recorte, o movimento);

- os processos estilísticos utilizados, como a sinestesia e a harmonia imitativa, que tornam a palavra matéria plástica da transposição poética do real concreto.


  • O poema «Num Bairro Moderno» dramatiza a invasão simbólica da cidade pelo campo, através de uma vendedeira de frutas e legumes. A transfiguração surrealística dos frutos e legumes num «ser humano» vem emprestar ao campo, que representam, uma maior profundidade.

  • O narrador observa incomodado o «conchego e vida fácil» do «bairro moderno», em contrates com a luz e o calor da «larga rua macadamizada» e a azáfama da vendedeira de hortaliça que tenta sobreviver.


  • Linguagem nova de raiz burguesa e popular, rica em termos concretos a sugerir mistura de sensações, impressões físicas e anímicas. Linguagem impressionista e fantasista.

 

  • No poema «Cristalizações» o sujeito é um burguês que se move na cidade e tudo encontra «alegremente exato» até que a tomada de consciência da dureza da vida dos calceteiros e dos trabalhadores de um modo geral o surpreende e fere, a ponto de denunciar a injustiça de que são vítimas. E a sua vida dura, a sua crucifixão diária ao serviço da cidade, merecem a simpatia do sujeito: o campo seria a vítima da exploração da cidade.


  • Poema prosaico pelo uso de termos concretos. O poeta visiona a realidade nua e crua, mas visioná-la é vê-la à sua maneira, é elevá-la ao campo da fantasia, é criar relações mentais entre essas realidades.

 

  • No poema «O Sentimento dum Ocidental» há a revolta perante as desigualdades sociais e um desencanto para com a cidade-prisão. A cidade, neste poema, é um pretexto para se fugir dela. Tudo se apresenta nitidamente nestas imagens: as ruas, a iluminação a gás, os quartéis, as tipoias, os militares, as peixeiras, os padeiros e os dentistas

 



 V - Texto de apoio

[Receção do poema “Esplêndida” pelos coetâneos de Cesário Verde]

Ao publicar o poema “Esplêndida”, em 22 de março de 1874, no Diário de Notícias, de Lisboa, Cesário talvez não tenha (ou tenha?) se dado conta de que o seu estado agônico e experiência trágica naquele momento se iniciavam. A incompreensão de seus pares evidencia-se na crítica de Ramalho Ortigão, que acusa o poeta de imitar Baudelaire naquilo que ele tem de satânico, também na de Teófilo Braga15, ao não compreender a irónica  sensualidade do poema, e por isso o censura com severas reprimendas, quando diz “que um homem para captar as simpatias de uma mulher desça ao lugar dos lacaios: um poeta amante e moderno devia ser trabalhador, forte e digno, e não se devia rebaixar assim” (Apud Helder Macedo, em O Romântico e o Feroz, 1988, p. 16).

A publicação de “Esplêndida”, em verdade, instaura conflito entre o Poeta e seus contemporâneos, talvez porque apresenta o novo que incomoda, rompe e desconstrói. O poema dá a lume uma nova representação da mulher citadina, agora com características de “mulher fatal”, que o sujeito encara de forma veementemente irônica. Trata-se de retrato de mulher “ducalmente esplêndida” que esmaga e fascina o sujeito, e que também carrega consigo toda a artificialidade e violência da vida urbana, podendo conduzi-lo à alienação e à perda da identidade de cidadão. É percetível, nos versos que se seguem, o conflito entre Mulher (“Esplêndida”) e Homem (“poeta solitário”), numa clara demonstração a partir do binómio Opressão-Humilhação:

E eu vou acompanhando-a, corcovado,

No trottoir, como um doido, em convulsões,

Febril, de colarinho amarrotado,

Desejando o lugar dos seus truões,

Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,

A minha independência e o meu porvir,

Para ser, eu poeta solitário,

Para ser, ó princesa sem sorrir,

Teu pobre trintanário

A temática da humilhação do sujeito ou de sua humilhação sentimental (“poeta solitário”) ganha relevo em “Esplêndida”, na medida em que apresenta dois polos que se contradizem, e por isso mesmo provocam, nesse “poeta solitário”, a agonia trágica, i.e., um conflito decorrente da opressão: de um lado, a existência de um clima de sofisticação mundana que atrai o sujeito; de outro, a humilhação que o faz passar como seu “pobre trintanário”. Janet E. Carter (1989, p. 151), ao empreender análise do poema sob a ótica da variação pessoal entre o “Eu” e sua relação diádica com a figura feminina, tece o seguinte comentário: «Em contraste com o esplendor do retrato de “ela”, o retrato do “eu” é um de miséria e abatimento, visível até fisicamente, pois ele vai “corcovado”. Esta posição indica homenagem perante a dama que o excita e perturba de tal maneira que ela fica exaltada, tal “como um doido, em convulsões, / Febril”».

Valci Santos, Tragicidade nas poéticas de Cesário Verde e Cruz e Sousa. Niterói – RJ, UFF, 2013

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15 De acordo com informação de Joel Serrão (1999, p. 201), Cesário teria mostrado estranheza pelo comentário de Teófilo: “Que diabo!, logo o Teófilo e o Ramalho que tanto considerava...” E pede ao seu mais dileto amigo, que também o é de Teófilo, que lhe explique este paradoxo: esperava aplauso dos revolucionários e, afinal, pedradas é que recebe...


Vogue britânica de janeiro de 1927


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CARREIRO, José. “Esplêndida, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 25-11-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/esplendida-cesario-verde.html