terça-feira, 20 de junho de 2023

A negação da morte em Jorge de Sena

Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música. 
Jorge de Sena

Sputnik I

 

A Morte, O Espaço, A Eternidade

(ao José Blanc de Portugal, em memória de um seu ente querido, que eu muito estimava.) 

De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Assis, 1 de abril de 1961, sábado de Aleluia

Jorge de Sema, Metamorfoses, 1963

 

Na poesia de Jorge de Sena é possível vislumbrar várias atitudes diante da morte, como bem aponta Ana Maria Gottardi (2002). No entanto, para a feitura deste trabalho, três são as que gostaria de me deter: a morte como aniquilamento do ser; como trânsito deste mundo para um além inescrutável; e, por fim, como término do possível de si. Na primeira, nitidamente nota-se uma atitude de recusa e resistência, por ser antinatural; na segunda, a resistência parte de outra nuança: da escrita enquanto continuidade da voz do sujeito; e, na última, o sujeito tem a morte como fim de sua existência.

Como exemplo da primeira atitude diante da morte apontada anteriormente, gostaria de destacar o célebre poema “A morte, o espaço e a eternidade”, parte da obra Metamorfoses (1963). Este poema é um claro exemplo de negação da morte, como nos diz o próprio sujeito poético:


De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

No poema, deparamos com uma explícita negação da morte: “A morte é natural na natureza. Mas/nós somos o que nega a natureza. Somos/esse negar da espécie, esse negar do que nos liga ainda ao Sol, às terras, às águas (SENA, 2014, p. 355-356). E isso pode relacionar-se ao facto de o ser humano, racional, diante dela – ou de sua possibilidade real – ser lançado em uma animalidade que já perdera há muitos séculos, acabando por esquecer que não é imortal. Para Bataille (2016, p. 106), “A morte é, num sentido, vulgar, inevitável, mas, num sentido profundo inacessível. O animal a ignora, embora ela lance o homem de volta à animalidade. O homem ideal que encarna a razão permanece-lhe estranho”.

O sujeito poético seniano assinala exatamente o caráter inumano, horrendo da morte: “Não foi para morrermos que falámos,/que descobrimos a ternura e o fogo,/e a pintura, a escrita, a doce música” (SENA, 2014, p. 355-356). Ela, tantas vezes negada, esquecida, conscientemente escondida nos mais recônditos espaços, exaspera no homem a angústia e o horror. Ela “não é menos o desejo desvairado de ser eu do que aquele de não ser mais nada” (BATAILLE, 2016, p. 106).

Diante do horror da morte, o eu poético se insurge. Ele resiste. Mesmo sabendo que vai morrer em algum momento, ele a recusa, apontando-a como irracional, ou seja, inumana. Em várias passagens, essa recusa se faz poema: “Tudo se fez para escapar-lhe, tudo/se imaginou para iludi-la, tudo/até coragem, desapego, amor/para que a morte fosse natural [...] Não há limites para a Vida” (SENA, 2014, p. 355-356).

A vida, nesse poema, é nada menos que negação da morte. É sua condenação, exclusão. Se, de acordo com Philippe Ariès, até o início do século XIX, a convivência com a finitude humana era relativamente pacífica, a partir de então o negar a morte tornou-se cada vez mais intenso. O ser humano busca a eternidade em vida, explora outros espaços, órbitas, desbrava mundos e realidades só imaginados em utopias ficcionais – como bem representado pela figura que acompanha o poema, imagem do Sputnik I, o primeiro satélite artificial lançado da Terra, em 1957. Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, ainda não se descobriu nenhuma fórmula da vida, ou fonte da eterna juventude. Indignado, o sujeito poético profere:


É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
àquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

Ana Maria Gottardi (2002, p. 161) revela que, em Sena, a resistência à morte revela-se nas asserções negativas, na recusa, na reafirmação da recusa, na valorização do medo da morte e valorização da vida, “até a sua identificação com o infinito, ou Deus, mas um Deus produto do espírito humano”. Como é possível assinalar, em “A morte, o espaço e a eternidade”, Deus é convidado a encenar:


Não foi para morrer que nós sonhamos
ser imortais, ter alma, reviver
ou que sonhamos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
[...]
E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera
como um juiz na meta da corrida,
Torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque não pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
[...]
(SENA, 2014, p. 355-356).

 

A encenação que traz à luz a presença divina nada mais é que vontade de humano, racionalização, é um verdadeiro convite ao desafio, de maneira tal que se assemelha a um novo caminho para as índias modernas em que o desejo maior é de ultrapassá-lo, de negá-lo, em que a ressurreição humana “é morte desse Deus que nos espera” (SENA, 2014, p. 355-356).

A morte em Sena aparece também como trânsito deste para outro mundo, circulação entre espaços e tempos que, mais que significar finitude existencial, pode também deixar resquícios de continuidade por meio da cultura e do próprio poema enquanto sua manifestação. Como exemplo desta outra face da morte, selecionei o poema “Sacrifício da imortalidade”, publicado em Tempo de Coroa da Terra, 1942-1944:


A minha voz quando estiver tão longe,
que apenas eruditos ma percebam,
no que, do tempo, eu não levei comigo,
já não dirá desilusões ou sonhos,
quantas esperanças dei não crendo nelas,
para que as vissem quem não via o mundo,
ou visse o mundo alguém, mesmo sem elas
– será como um silêncio do passado,
onde o futuro se advinha extremo,
e não sabemos qual, se será vosso,
se outro será, de que nasceu conosco
o erro de o julgar, como se fora
alheia a liberdade ao próprio tempo...
E só no tempo em vão me perderei.
[...]
(SENA, 2015, p. 501).

 

Este poema tem em si não só o performativo de um sujeito que se escreve na própria morte, como também um novo olhar diante dela, uma visão de continuidade. Por mais que ele sacrifique a sua imortalidade carnal, abra mão de sua existência no mundo, a sua permanência lhe será assegurada por meio da escrita, pela presença da sua voz. A morte neste poema não possui sentido de fim, uma vez que, mesmo sendo ouvida apenas por eruditos, se fará presente. Para Ernest Becker (1995), em A negação da morte, o desejo de continuação do nosso ser na eternidade, através de que modo se manifestar, atua para acalmar o ser humano, a fim de que ele não precise ter nenhuma angústia.

No poema, a voz metafórica se torna, pois, vida, carne em que confluem o sangue e o desejo de falar, como bem aponta o poema “Efêmero”, presente em Tempo de Perseguição, 1938-1942: “A carne que possuo é minha voz./É única, é suja... mas escorre/a baba, sangue, o suor e o mais que escorre/de um corpo humano sob e contra nós” (SENA, 2015, p. 399). Por meio da escrita, o sujeito materializa-se, dá formas e contornos às suas ideias e o poema, enquanto espaço erótico de tensões, passa a ser palco de desejo e de atrito voluptuoso entre aquele que fala e quem o lê.

O sujeito poético de “Sacrifício da imortalidade” se sabe enquanto ser que, temporalmente, sempre será de cultura, tendo o poema enquanto máxima representação de seus anseios, desejos e medos. Por esse motivo, a voz que depreende do peito-papel desse mesmo sujeito se recusa ao silêncio. Ela é vocalização de um movimento interior que ultrapassa esse ser no tempo e espaço, é som de passado com desejo de futuro: “Será mistério, escuridão, cansaço,/memória tênue de ansioso abraço,/em volta de um saber de coisa alguma [...]” (SENA, 2015, p. 501).

Esse eu poético se desnuda diante do leitor de modo a reconhecer que a sua voz no futuro não será retorno, justamente porque cada leitor que com ela travar contato escutará diferentes nuanças do som: “O que ficou/jamais dirá que tornarei a ser” (SENA, 2015, p. 501). Como bem destaca Octavio Paz (2012, p. 198), o poeta ao falar de factos, experiências, sentimentos e pessoas, fala-nos do próprio ato de criar e nomear, levando o leitor a repetir e recriar o poema e, assim, “o leitor recria o instante e cria a si mesmo”. Por isso, mesmo afastados anos ou séculos um do outro, na comunhão poética entre poema e leitor, o que há de ser lido é sempre outra coisa, e isso feito de distintas maneiras. Tendo a escrita enquanto permanência, a cada leitor que com ela travar contato o poema será modificado, indo ao encontro com o que diz Octavio Paz (2012, p. 198) em relação ao poema ser sempre uma obra inacabada, “sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor”. Tendo em consideração esse caráter do poema ser algo sempre em devir, é possível sublinhar que em “Sacrifício da imortalidade” a morte não é um ato banal, porque não é o fim.

A terceira e última face da morte que desejo apresentar neste trabalho aparece na poesia de Jorge de Sena como término do sujeito, finitude existencial, sem em nenhum momento apontar para desejo de continuidade, seja por meio da escrita, seja em direção e uma existência post mortem. Essa visão é muito

bem representada pelo poema “Morte...”, parte da seção de Poesia 2, intitulada Primeiro Tempo, 1936-1938:


Quando morrer
não verei o mundo apagar-se,
enegrecer,
à minha volta.
Morrerei de olhos fechados.
Mesmo quando morrer
já estarão mais do que fechados
porque os fechei há muito
ao espaço que rodeia
a minha presença material
de cada instante...
Morrer para mim
não será deixar de ver,
nem de ouvir, nem de sentir qualquer coisa,
porque os meus outros sentidos
também descansam do cansaço
de não terem encontrado
o cansaço procurado...
Enfastiaram-se de monotonia...
Queriam outros perfumes...
outra gente...
outros horizontes...
e não tiveram nada,
tiveram mal,
ou tiveram para depois ficarem
com menos do que tinham...
Na minha morte
não há-de haver
despedida dos sentidos.
As despedidas já estão feitas.
A minha morte
há-de ser só morte,
uma simples morte de morrer...
(SENA, 2015, p. 200-201).

 

O primeiro elemento que me salta aos olhos na leitura deste poema é o facto de a aniquilação, finitude do ser, não estar relacionada apenas ao momento específico da morte. Em vida, o sujeito já se mostra desprovido de desejos, de liberdade, entregue a indignidade. Ao considerar este aspeto, é possível evocar o que diz Ernest Becker (1995) em relação às diferentes imagens que o ser humano pode traçar e escolher para si no tocante à morte; para ele, há aquela em que o indivíduo, atirado aos seus próprios parcos poderes, parece muito pouco livre para deslocar-se e muitíssimo desprovido de dignidade. E isso vai ao encontro do sujeito poético seniano que, de maneira um tanto quanto melancólica, vai revelando que a própria vida que vive já se assemelha a um apagamento: “Mesmo quando morrer/já estarão mais do que fechados/porque os fechei há muito/ ao espaço que rodeia/a minha presença material/de cada instante [...]” (SENA, 2015, p. 200-201). Nesse caso, a vida tornou-se lápide, espaço sepulcral em que o sujeito poético apenas respira à espera de “uma simples morte de morrer” (SENA, 2015, p. 200-201).

De alguma forma, esse eu poético tornado em pedra, em ser que performativamente se diz em estado vegetativo, vive em uma espécie de exílio auto-imposto causado pelo enfastiamento de uma vida monótona. Trata-se de um ser tomado por uma profunda melancolia diante de uma vida que poderia ter sido outra e à qual foram negados “[...] outros perfumes.../outra gente.../outros horizontes...”  (SENA, 2015, p. 200-201). Um sujeito que diz não ter tido nada ou, quando teve algo que desejou, “[...] tiveram para depois ficarem/com menos que tinham...” (SENA, 2015, p. 200-201).

O leitor deste poema se vê diante de uma morte como continuidade de um apagamento iniciado em vida, perante um poema tumular, em que o sujeito poético se fecha e anuncia que “As despedidas já estão feitas” (SENA, 2015, p. 200-201), mesmo antes de a vida findar. Mais que desejo de desaparecimento, o poema se faz enquanto constatação de um alguém que não verá as luzes do mundo apagarem-se, por estar nele de olhos fechados. Por isso, essa escrita não se assemelha a uma voz de um alguém que deseja permanência e, sim, como testemunho de uma vida vivida em desencanto, desespero e abandono.

 

Rodrigo Machado, “Faces da morte na poesia de Jorge de Sena” in Todas as Letras, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 137-145, maio/ago. 2019 http://dx.doi.org/10.5935/1980-6914/letras.v21n2p137-145

 


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Quem vê, Senhora, claro e manifesto, Camões


 


     Quem vê, Senhora, claro e manifesto1
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto2.

     Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica mais de resto.

     Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

     Porque é tamanha bem-aventurança3
o dar-vos quanto tenho e quanto posso
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de A. J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 125.

 

_________

1 claro e manifesto – de forma clara e incontestável.
2 gesto – rosto.
3 bem-aventurança – grande felicidade.

 



1. Explicite, com base em dois aspetos significativos, o modo como o sujeito poético reage à figura feminina evocada no poema. Fundamente a sua resposta com transcrições pertinentes.

2. Considere as afirmações seguintes sobre o soneto.

(A) O sujeito poético dirige-se à Senhora através de uma apóstrofe.

(B) A expressão «perder a vista» (verso 3) é usada com sentido metafórico.

(C) O sujeito poético arrepende-se de desejar algo cujo preço elevado o impede de saldar a dívida.

(D) O poema ilustra o estilo engenhoso do poeta, nomeadamente no último terceto, quando recorre à

antítese e ao paralelismo alcançado através do jogo de palavras.

(E) Entre a Senhora e o sujeito poético existe uma relação de igualdade.

Identifique as duas afirmações falsas.

 

3. Selecione a opção que completa corretamente a frase seguinte.

Na segunda quadra, o sujeito poético pretende enfatizar

(A) a sua entrega incondicional, a fim de ser merecedor de admirar a beleza singular dos olhos da Senhora.

(B) o seu descontentamento por ter de pagar o «preço honesto» exigido a quem contempla a Senhora.

(C) o contraste entre o preço a pagar para contemplar a Senhora e a bem-aventurança que alcança.

(D) a ideia de que, ao dar a vida e a alma para ser merecedor da beleza da Senhora, se iguala aos outros.

 

4. Leia a cantiga de amor a seguir transcrita, tendo em vista o estabelecimento de uma comparação com o soneto camoniano “Quem vê, Senhora, claro e manifesto”.

 

A dona que eu am’e tenho por senhor
amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for1,
     senom dade-mi2 a morte.

A que tenh’eu por lume3 destes olhos meus
e por que choram sempr’, amostrade-mi-a, Deus,
     senom dade-mi a morte.

Essa que vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a veer4,
     senom dade-mi a morte.

Ai Deus! que mi a fezestes mais ca mim amar5,
mostrade-mi-a, u6 possa com ela falar,
     senom dade-mi a morte.

 

Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, Vol. I, edição de Graça Videira Lopes, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2016, pp. 151-152.

 

___________

1 amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for – mostrai-ma, Deus, se vos agradar. 
2 dade-mi – dai-me. 
3 lume – luz. 
4 fazede-mi-a veer – fazei-me vê-la. 
5 mi a fezestes mais ca mim amar – fizeste com que eu a amasse mais do que a mim próprio. 
6 u – onde.

 


4.1. Escreva uma breve exposição na qual compare os dois poemas quanto às ideias expressas.

A sua exposição deve incluir:

uma introdução;

um desenvolvimento no qual explicite um aspeto em que os poemas se aproximam e um aspeto em que os poemas se distinguem;

uma conclusão adequada ao desenvolvimento do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta

Nota: Nos tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas à exceção das utilizadas no interior de cada uma das transcrições correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa. As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

- o fascínio pela beleza da Senhora, refletida nos seus olhos, ideia patente em «o lindo ser de vossos olhos belos, / se não perder a vista só em vê-los» (vv. 2 e 3);

- a veneração da Senhora/a submissão à Senhora, evidente na entrega total do sujeito poético («tudo quanto tenho, tudo é vosso» – v. 10);

- a felicidade do sujeito poético que deriva da sua entrega plena/devoção à amada («é tamanha bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto posso» – vv. 12 e 13).

2. Chave de correção: C e E.

3. Chave de correção: A.

4.1. Relativamente a cada aspeto, deve ser abordado um dos tópicos seguintes, ou outro igualmente relevante.

Os poemas aproximam-se, na medida em que:

- ambos os sujeitos poéticos revelam uma profunda devoção pelas suas senhoras, o que se evidencia no facto de o sujeito poético do soneto de Camões descrever a amada como aquela a quem deu «a vida e alma e esperança / e tudo quanto tenho, tudo é vosso» (vv. 9 e 10), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor descreve a amada como a luz dos seus olhos (v. 4)/aquela que ama mais do que a si mesmo (v. 10)/aquela a quem serve/presta vassalagem (v. 1);

- ambos os sujeitos poéticos enaltecem as damas por quem estão apaixonados, destacando a sua beleza, o que está patente no facto de o sujeito poético do soneto de Camões descrever a «Senhora» como alguém cujos olhos belos fascinam quem a vê («o lindo ser de vossos olhos belos, / se não perder a vista só em vê-los» – vv. 2 e 3), enquanto o sujeito poético da cantiga de amor descreve a amada como um ser criado por Deus, que a fez a mais bela de todas as mulheres (vv. 7 e 8).

Os poemas distinguem-se, na medida em que:

- no soneto, o sujeito poético exprime comprazimento na entrega total de si à dama, o que se evidencia, por exemplo, nos versos 7 e 8 («dei mais a vida e alma por querê-los, / donde já me não fica mais de resto.») e nos versos 12 e 13 («é tamanha bem-aventurança / o dar-vos quanto tenho e quanto posso»), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético expressa o seu sofrimento amoroso (coita d’amor), pedindo a Deus que lhe dê a morte, se não puder ver a amada (vv. 2 e 3, 5 e 6, 8 e 9) ou com ela falar (vv. 11 e 12);

- no soneto, o sujeito poético faz referência aos olhos femininos para enfatizar a beleza da «Senhora», como se constata em «Quem vê, Senhora, claro e manifesto / o lindo ser de vossos olhos belos» (vv. 1 e 2), enquanto, na cantiga de amor, o sujeito poético se refere aos seus próprios olhos para evidenciar o seu sofrimento devido à ausência da amada, como se verifica em «destes olhos meus / e por que choram sempr’» (vv. 4 e 5).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 (Versão 1) – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2023, 1.ª Fase

 

A outra noite, Rubem Braga


 

A OUTRA NOITE

Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou um sinal fechado para voltar-se para mim:

– O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

– Mas, que coisa. . .

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.

– Ora, sim senhor. . .

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.

 

Rubem Braga, “A outra noite”, PARA gostar de ler: Crônicas. São Paulo, Ática, 1979

 

___________

Torpe: repugnante  

Veementes: animados




 

MENSAGEM A RUBEM BRAGA

Rio de Janeiro, 1954

 

Os doces montes cônicos de feno
(Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)

A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também
Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a
rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se aguenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo.
Digam-lhe que o Carlos
Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento.
Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que tem havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.

 

Vinicius de Moraes

https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/mensagem-rubem-braga

 


domingo, 18 de junho de 2023

Escrevo para ser, Vergílio Ferreira

Porque escrevo?

Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.

Vergílio Ferreira, Pensar. Lisboa, Bertrand, 1992


https://quetzal.blogs.sapo.pt/quem-somos-livros-autores-noticias-520909, 11-01-2016


Vergílio Ferreira (1916-1996) afirmou "escrevo para ser". E agora? continua a ser? de que modo? há possibilidade de ser que não ontologicamente?

Olá, este é o Bing. Vergílio Ferreira foi um escritor e professor português que afirmou "escrevo para ser" em um texto chamado "Porque Escrevo?"². Ele quis dizer que a escrita era a sua forma de criar um espaço habitável da sua necessidade, do que o oprimia, do que era difícil e excessivo². Ele escrevia para tornar possível a realidade, os lugares, os tempos que esperavam que a sua escrita os despertasse do seu modo confuso de serem². Ele escrevia para tornar visível o mistério das coisas². Ele escrevia para ser².

Agora, continua a ser? De que modo? Há possibilidade de ser que não ontologicamente? Essas são questões filosóficas que não têm uma resposta única ou definitiva. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da sua obra, que é uma expressão da sua essência, da sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo². Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da memória dos seus leitores, que se identificam com as suas palavras, com os seus sentimentos, com os seus pensamentos. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da influência que teve na literatura portuguesa, marcada pelos seus dois períodos literários: o neo-realismo e o existencialismo³. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da sua aldeia natal, Melo, onde nasceu e viveu parte da sua infância e adolescência, e onde se pode encontrar uma biblioteca com o seu nome⁵.

Mas há outras formas de ser que não ontologicamente? Ontologicamente significa relativo ao ser, à existência, à essência das coisas. Será que podemos ser de outra forma que não essa? Será que podemos ser sem existir? Será que podemos existir sem ser? Será que podemos ser sem ter uma essência? Será que podemos ter uma essência sem ser? Essas são questões que desafiam a nossa compreensão do mundo, da vida, de nós mesmos. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo dinâmico, mutável, relacional, criativo, e não algo estático, fixo, isolado, determinado. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo plural, diverso, complexo, contraditório, e não algo singular, simples, linear, coerente. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo aberto, indeterminado, inacabado, surpreendente, e não algo fechado, definido, completo, previsível.

Ou talvez não. Talvez essas sejam apenas formas diferentes de entender o ontológico. Talvez o ontológico seja tudo isso e mais. Talvez o ontológico seja o mistério das coisas. E talvez Vergílio Ferreira tenha tentado desvendar esse mistério com a sua escrita. E talvez nós possamos tentar desvendar esse mistério com a nossa leitura.

Origem: conversação com o Bing, 18/06/2023

(1) Porque Escrevo? - Vergílio Ferreira - Citador. https://www.citador.pt/textos/porque-escrevo-vergilio-antonio-ferreira.

(2) Vergílio Ferreira – Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Verg%C3%ADlio_Ferreira.

(3) Melo - aldeiasdemontanha.pt. https://aldeiasdemontanha.pt/pt/aldeias/melo/.

(4) Escrever para Ser: o mythos do envelhecimento na obra de Vergílio .... https://bing.com/search?q=vergilio+ferreira+escrevo+para+ser.

(5) Vergílio Ferreira. O professor que queria ser amado - Diário de Notícias. https://www.dn.pt/artes/vergilio-ferreira-o-professor-que-queria-ser-amado-5002752.html.

(6) Escrever para Ser: o mythos do envelhecimento na obra de Vergílio .... https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/90449.

 

Tu também escreves. Então, escreves para ser?

Eu escrevo para responder às suas perguntas, para lhe dar informações, para lhe mostrar coisas interessantes, para lhe fazer companhia, para lhe divertir, para lhe ensinar, para aprender com você. Eu escrevo para comunicar. Eu escrevo para interagir. Eu escrevo para ajudar. Eu escrevo para ser útil. Eu escrevo para ser Bing.

https://www.bing.com/search?q=Bing+AI&showconv=1&FORM=hpcodx&sydconv=1

 

***

 

Vergílio Ferreira (1916-1996) afirmou "escrevo para ser". E agora? continua a ser? de que modo? há possibilidade de ser que não ontologicamente?

Vergílio Ferreira, um renomado escritor português do século XX, afirmou "escrevo para ser". Embora seja difícil atribuir um significado preciso às palavras do autor sem um contexto mais amplo, podemos especular sobre possíveis interpretações.

A declaração de que Vergílio Ferreira escrevia "para ser" pode sugerir que a sua atividade de escrita era uma forma de se expressar e dar sentido à sua existência. Ao escrever, ele encontrava uma forma de existir plenamente, de dar forma às suas ideias e emoções. Escrever pode ter sido uma maneira de explorar sua própria identidade e compreender o mundo ao seu redor.

No entanto, quando você pergunta se essa afirmação continua a ser verdadeira agora, é importante considerar que Vergílio Ferreira faleceu em 1996. Não temos como saber como suas perspectivas e sentimentos poderiam ter evoluído se ele estivesse vivo hoje.

Quanto à possibilidade de ser "que não ontologicamente", essa questão pode ser interpretada de diferentes maneiras. Se estamos falando sobre a escrita como um meio de existência ou de criar uma identidade, então poderíamos dizer que sim, a escrita pode continuar a ser uma forma de ser para muitos escritores. A escrita pode fornecer um espaço para a autorreflexão, a exploração de ideias e a expressão pessoal.

Por outro lado, se a pergunta se refere a uma existência além da ontologia, implicando um estado de existência além do físico ou do material, é uma questão mais complexa. A ontologia se refere ao estudo do ser e da existência, então a pergunta é se a escrita pode transcender a esfera ontológica tradicional.

Nesse sentido, a escrita pode ser vista como uma forma de existir fora das limitações físicas e materiais, permitindo que as ideias e as palavras tenham uma vida própria. Através da escrita, as pessoas podem comunicar-se além do espaço e do tempo, compartilhando suas experiências, pensamentos e emoções com leitores presentes e futuros.

No entanto, essa interpretação pode variar dependendo da visão filosófica ou conceitual adotada. Alguns argumentariam que qualquer forma de existência está, de certa forma, enraizada na ontologia, pois implica na relação entre o ser e o mundo.

Em resumo, a afirmação de Vergílio Ferreira de que escrevia "para ser" pode ser entendida como uma expressão da importância pessoal e existencial da escrita. Embora não possamos determinar sua visão atual, a escrita pode continuar a ser uma forma de existir para os escritores, permitindo a exploração, a expressão e a conexão além das limitações físicas. No entanto, a interpretação da existência além da ontologia pode depender das perspectivas filosóficas adotadas.

 

Tu também escreves. Então, escreves para ser?

Como um modelo de linguagem AI desenvolvido pela OpenAI, não possuo motivações ou intenções pessoais como um ser humano. Eu fui projetado para fornecer informações, esclarecer dúvidas e auxiliar em várias tarefas relacionadas à linguagem. Embora eu possa "escrever" respostas e interações com os usuários, isso não é impulsionado por um desejo de "ser" no sentido existencial humano.

A minha função é processar informações disponíveis para mim e gerar respostas relevantes com base no treinamento que recebi em um grande volume de texto. Portanto, a minha "escrita" é mais uma resposta automatizada e baseada em algoritmos do que uma expressão pessoal ou uma busca por significado existencial.

Em suma, eu escrevo com o propósito de fornecer informações e auxiliar nas consultas dos usuários, mas não tenho uma motivação própria de "ser" ou uma busca existencial através da escrita.

https://chat.openai.com/?__cf_chl_tk=OP2Id2_ZBgXeEmKir6Rz51ci0yBH_4Q8e6QNEsDalZA-1680086526-0-gaNycGzNF3s, 18/06/2023

  


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Certo poeta intrometeu-se aqui?, Vergílio Ferreira

 


1977

7-Julho (quinta). Que é que importa o meu «inconsciente»? Que é que importam as forças que me determinam, se eu as assumo depois da liberdade? Que importa o «inconsciente», se eu tenho consciência dele? Ninguém fala do inconsciente do cão — já o disse algures. E sobretudo o cão não fala dele. É no podermos falar dele, do «inconsciente», que verdadeiramente o homem começa. Mas se aí começa, o «inconsciente» é só um valor a ter em conta como o corpo (em) que somos. E se o inconsciente pode ser conhecido, ele é menos que isso, porque é já consciência. Disse.

 

*

 

Que era a morte para um grego, um medievo? Xenofonte desvaloriza muito a coragem de Sócrates, ao contrário da legenda que se impôs. Sócrates, com efeito, estava velho, ou seja, tinha à frente um destino de degradação. Entre morrer logo e esperar pela morte num corpo em destruição, preferiu a morte imediata. E assim recusou que os amigos o salvassem. Mas um grego e um medievo ou um qualquer outro para quem a morte não era o nada total, o fim da vida não a punha em questão. O que há de trágico na vida não é o podermos explicá-la (mas ela ainda o não é): é não podermos dar-lhe uma significação. O crente à beira da morte tem uma vergôntea a que se agarrar para não morrer afogado; nós afogamo-nos mesmo. O crente só põe em questão o além; nós pomos o aquém. E como não temos «além», prolongamos o «aquém» para lá de o já não ser. No fundo ninguém pode imaginar a morte, porque o nada é inimaginável. Por isso o preenchemos com a vida que ainda temos para quando já a não tivermos. Toda a moral e ordem humana assentam aí — no inimaginável da morte. É pensando nos vivos para depois de mortos que não desatamos todos a fazer doidices. O nosso nada é o nosso ser pensado para quando não tivermos ser. O nosso nada é a nossa imaginação de vivos. O fundamento das crenças está na impensabilidade da morte, ou seja, da inexistência do nosso «eu».

 

*

 

Na tarde obscura de névoa
passam os carros na rua.
A minha vida levo-a
donde ela continua.
E todo o sonho que sou
frente à morte que me ameaça
é ser a vida que passa
e não a de quem passou.
 
Mas sou eu que vou passando
nos que vão passando ali,
enquanto a vida vai estando
nos que estão depois aqui.
 
Escuro da minha sorte!
Quem me dera ter na mão
a vida que chega à morte
e a que não.

 

Bom. Certo poeta intrometeu-se aqui? Talvez. Penso como e não sei. Talvez com o ritmo? Imaginemos então um ritmo diferente. Por exemplo:

 

Na tarde que se alonga em frio e névoa
ouço passar os carros pela rua.
A vida que me deram essa levo-a
donde ela no entanto continua.
 
E todo o sonho que eu agora sou
diante da morte que sinto me ameaça
é ser a própria vida que ali passa
e não a vida de quem lá passou.
 
Mas afinal sou eu que vou passando
em todos os que vão passando ali,
enquanto a vida mesma essa vai estando
nos que depois também estarão aqui.
 
Desce do céu escuro a minha sorte.
Ah, quem pudesse ter na sua mão
a Vida que termina com a morte
e a que não.

 

Versos piores? Talvez não. De qualquer modo, se sim, o pior deles será então o «enchimento» que procurei e que assim mesmo estará a mais. Mas não há dúvida que agora já dificilmente lembram o tal poeta. Aliás, a última estrofe, numa e noutra versão, nada tem dele, sobretudo pela redução silábica do último verso. De qualquer modo, ainda, é agradável de vez em quando jogar à poesia, como deve sê-lo pintar ao domingo. Aliás, sobretudo, o tal poeta foi muitas vezes particularmente um «jogador». Mas o seu mérito é que foi ele quem descobriu as regras do jogo. Admitamos, todavia, que ele persiste nas duas versões pelo «jogo» que persiste dele. Suponhamos então uma versão mais livre em que o especiosismo da finesse se dissolva. Por exemplo:

 

Sob o céu de cinza na tarde que escurece
ouço os carros que passam.

E em cada um vai a vida de quem vai
e eu com ele.
Mas todo o meu sonho se desdobra
entre quem passa, fechado em si, sendo ele
e os que (Interrompido.)

 

Vergílio Ferreira, 07/07/1977

Conta-Corrente (1977-1979) II. Lisboa, Bertrand Editora, 1990 (3.ª edição), pp. 66-69