quarta-feira, 29 de julho de 2015

Alguns aspetos da poesia contemporânea (António Guerreiro)

RELÂMPAGO N.º 12.  4|2003
Director deste Número: Fernando Pinto do Amaral.
Conselho Editorial: Carlos Mendes de Sousa, Gastão Cruz, Paulo Teixeira.



Alguns aspetos da poesia contemporânea*
António Guerreiro


Faute d'aura, au moins éparpillons nos effluves
Henri Michaux

De maneira mais ou menos informal e quase sempre tendo em vista esboçar, no campo literário, uma imagem de época, começaram a aparecer, nos últimos tempos, referências a um conjunto de novos poetas (que começaram a publicar há menos de uma década), responsáveis pela figura de uma "nova poesia" portuguesa. Evidentemente que nos movemos aqui num terreno vago e cheio de armadilhas. Antes de mais, porque esta noção de época surge desprovida do rigor de uma categoria historiográfica e não corresponde senão a um modo de temporalização da história imposto por uma noção jornalística de atualidade; em segundo lugar, porque fazer corresponder imediatamente a "nova poesia" aos poetas que começaram a publicar nos últimos anos (a década é a medida convencional de que geralmente nos servimos para este tipo de balanços) não é um critério que sirva para pensar qualquer espécie de historicidade da poesia: "nova" é também a poesia de alguns autores que, vindos de um tempo anterior, não se limitam a prolongar a obra; em terceiro lugar, porque este exercício acaba por resultar em listas de nomes que só conseguimos reunir usando critérios arbitrários e quase sempre "ad hoc". E, no entanto, mesmo conscientes de que assim é, habituámo-nos a conjeturar desta maneira, a trabalhar com estas hipóteses, dando forma, muitas vezes, ao que ainda não existe. Falando à maneira de Heidegger (e encorajados pelo facto de que, em Portugal, em termos genéricos, os poetas têm sido sismógrafos muito mais apurados do que os romancistas), procuramos detetar na poesia que se vai escrevendo e publicando uma "Stimmung", uma tonalidade, uma atmosfera epocal, mesmo sabendo que ela se revelará niveladora e monocromática.
Exercício diferente é aquele que consiste na verificação, mais ou menos contabilística, de novos nomes e novos livros. Aí, estamos num plano meramente quantitativo, ao qual só damos um significado estatístico. Falar da "nova poesia" significa que houve um momento em que se começou (digamos que a entidade que começou talvez não seja assim tão indefinida, mas também não é obra de um só indivíduo) a compor uma figura representável a partir de certos poetas e certos livros. Três antologias vieram propor visões de conjunto e dar alguma ordem ao que se apresentava ainda muito disperso: a Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1997), de Pedro Mexia, Anos 90 e Agora (2001), de Jorge Reis-Sá e Poetas sem Qualidades (2002) de Manuel de Freitas. Se as duas primeiras têm um alcance mais ou menos panorâmico, cumprindo a função tradicional de facultarem uma representação abreviada de um universo alargado e diversificado, já a terceira adota uma visão marcadamente crítica, parcial e parcelar, procurando dar uma configuração muito precisa ao conjunto de nove poetas selecionados: são os "poetas sem qualidades", designação que o autor da antologia legitima, no prefácio, dando-lhe a consistência de uma quase-categoria crítica.
A ideia que entretanto se foi impondo (este número da Relâmpago é uma prova disso) de que um vasto conjunto de poetas tem vindo, nos últimos anos, a alterar o traçado do anterior mapa da poesia portuguesa, tal como ele tinha sido desenhado a partir do início dos anos 70 até quase meados dos anos 90, não surgiu, de um momento para o outro, como uma evidência. Pelo contrário, muitos destes novos poetas, tirando raros casos, tiveram uma receção muito discreta e só recentemente, quando se começaram a elaborar visões de conjunto (não apenas as que tiveram tradução nas antologias publicadas; também aquelas, informais, que fazem facilmente o seu percurso num universo tão minoritário como é o dos leitores de poesia), começaram a ser objeto de mais atenção, nos jornais e publicações que têm páginas de crítica literária. Há aqui algumas razões extraliterárias a ter em conta: as revistas mais ou menos especializadas são escassas e, nos jornais, o espaço dedicado à crítica é cada vez menor e impõe o modelo da recensão curta que pouco mais é do que uma notícia da saída do livro. Este modelo privilegia evidentemente a divulgação em detrimento da crítica e, por consequência, privilegia os livros que não existem senão para serem divulgados, em detrimento dos livros que não existem senão para serem objeto de leitura crítica. Um poeta, hoje, sabe que dificilmente pode romper este círculo, e aquilo a que temos vindo a assistir, enquanto fenómeno também novo, é a uma reconfiguração dos meios e dos modos de circulação da poesia. E o que é um facto é que se continua a editar muita poesia em Portugal, e ela continua a ter um grande peso na instituição literária (ao contrário do que se passa noutros países da Europa, onde se tornou um domínio quase esotérico).
Mas, para percebermos o que se passou com a receção da maior parte destes poetas, e para encontrarmos uma explicação plausível para que o efeito de conjunto tenha levado algum tempo a ganhar forma, precisamos também de ter em conta razões eminentemente intraliterárias. Antes de mais, há hoje um grande ecletismo, coexistem experiências que seguem tradições completamente diferentes, e a lógica geracional deixou, em grande parte, de servir como critério de ordenação: o contemporâneo segue vários caminhos paralelos, mostrando, aliás, de maneira eloquente, que a historicidade específica das obras literárias não se compadece com os métodos da clássica história literária, mas requer, como pretendia Benjamin, uma interpretação intemporal. E há, depois, uma outra razão: aquilo de que estamos sempre à espera e reconhecemos com facilidade é o poeta que se anuncia - ou é anunciado - como grande poeta, como uma irrupção triunfante. Por isso é que a metáfora da "revelação" tem servido para designar esta espécie de epifania. Ora, sendo muito embora impossível arranjar categorias unificadoras que funcionem como princípio de descrição da poesia mais recente, é no entanto possível dizer que há um "ethos" predominante: a modéstia como princípio constitutivo da autoconsciência do poema, a ausência de pretensões quanto ao que pode a poesia. Estamos aqui sob os auspícios de uma musa pobre, nos antípodas daquela que propiciava o "grande estilo". Esta inclinação para um tom voluntariamente menor prescinde das elevações que tornam a poesia mais facilmente audível.
Neste ponto, cruzamo-nos com a categoria dos "poetas sem qualidades", forjada por Manuel de Freitas. Se lhe quisermos dar um sentido meramente descritivo, retirando-lhe a dimensão programática - e, portanto, ao serviço da afirmação de um juízo de valor - que o autor da antologia lhe atribui, ela torna-se apta a designar muito mais do que os nove poetas antologiados. Mas sobre o que é que incide, verdadeiramente, uma tão genérica designação como esta, dos "poetas sem qualidades"? O prefácio é bastante esclarecedor, desde a primeira frase: trata-se de estabelecer uma relação de compromisso dos poetas com o seu próprio tempo, de dar à poesia a função de captar a contemporaneidade, assumindo assim uma historicidade sem complexos. Esta atitude implica, evidentemente, a rejeição dos vários puritanismos formais (sejam eles o formalismo esteticista ou o formalismo da reflexividade da poesia), assim como uma enorme desconfiança em relação a muito do lirismo da expressão subjetiva, visto como exercício inócuo, fascinado pelos seus consabidos efeitos. Prossegue-se, assim, uma das linhas da tradição moderna, aquela que segue as vias do anti-lirismo e do prosaísmo.
O que é que significa esta pretensa relação da poesia com o seu tempo? A questão, sabemo-lo muito bem, está longe de ser evidente, como nos mostra o facto de poetas tão diferentes uns dos outros terem reivindicado essa relação. A estética negativa de Adorno, com todo o seu arsenal dialético, defendendo a autonomia da arte e, por conseguinte, valorizando as obras que mais resistem ao processo de "reificação" social, não fez senão tornar as coisas bastante mais complexas do que o senso comum pode imaginar. Começamos a perceber melhor o que está em causa na questão da temporalidade a que surgem ligados os "poetas sem qualidades" quando lemos numa passagem do prefácio uma alusão a um pequeno texto em prosa, de Baudelaire, intitulado "La perte d'auréole". Conta-se, nele, a história de um poeta que perde a sua auréola no meio do tráfego do "boulevard" e recusa-se a voltar atrás para apanhá-la. Conhecemos a interpretação que Walter Benjamin fez desta parábola baudelairiana: ao perder a auréola, o poeta converte essa perda em ganho e desce do seu pedestal imaginário para vir ocupar um lugar no meio da multidão. Este poeta que, ao perder a auréola, passa a ser um poeta da prosa e deixa de ser uma paródia da figura trágica do poeta "buveur de quintessence", faz uma corajosa imersão na sua época, como quem dá um salto mortal. Trata-se verdadeiramente de uma experiência crítica: porque é uma relação conflituosa com a época que assim se inicia; porque este acontecimento expõe-no a si mesmo, sem "auréola", e expõe a poesia, retirando-lhe toda a base cultual, confrontando-a com o radical prosaísmo da época. Retirada ao culto que constituía o Ideal, a poesia desidealiza-se e perde aquilo a que Benjamin chama "aura". A conceção benjaminiana da aura supõe que nunca a arte chega ao estado de completa desauratização porque o processo artístico é sempre um processo de recomposição aurática, como mostram, de maneira eloquente, as "iluminações profanas" do surrealismo. Mas, na sua fidelidade a uma poética baudelairiana da imersão na contingência e na existência, subtraída a toda a posição cultual, sem idealização possível, Manuel de Freitas corre o risco da posição normativa que o deixa desarmado perante certas situações. É assim que, evocando a "intemporalidade" da poesia de Herberto Helder como um contraexemplo ou uma refutação daquilo que torna exemplares os nove poetas selecionados, o antologia dor, de maneira irónica (e mostrando-se consciente de algumas falácias do seu discurso), acrescenta: "Mas a um génio tudo se perdoa" (o «poeta-génio», recordemos, é precisamente a figura que Benjamin opõe ao poeta baudelairiano que perde a auréola).
Esta injunção obriga-nos a pensar que a contemporaneidade do poeta em relação ao seu próprio tempo é um problema complexo, e não estaremos à altura dele se não percebermos duas coisas fundamentais; 1) que o índice temporal de um poema faz apelo a um nível que não é só o que se manifesta à superfície; 2) que a poesia não se pode limitar a querer estar em ligação direta com a sua época; pelo contrário, se ela não quiser sucumbir à mera estetização, ao poetismo despotencializado, tem de afirmar uma não adesão crítica ao contemporâneo. Baudelaire fez-nos perceber isto muito bem, ao introduzir uma diferença radical entre "moderno" e "contemporâneo"; e, para Mallarmé, o moderno não é o que é atual, mas antes uma forma de virtualidade do tempo: um "presente" ausente porque está constantemente a furtar-se.
Os "poetas sem qualidades", não apenas aqueles que Manuel de Freitas inclui na sua antologia, mas também alguns outros que, sem esforço, tal categoria abrange, inserem-se numa tradição moderna que tem em Baudelaire a sua figura tutelar. O imperativo baudelairiano assim formulado: "Vous n'avez pas le droit de mépriser le présent", encontra uma reactualização que implica, ao mesmo tempo, a recusa de uma consideração puramente formal da poesia. Por outro lado, a poesia que reconhecemos neste modelo é radicalmente urbana, qualquer que seja o seu objeto. Encontramos aqui algumas características suscetíveis de provocar fortes resistências: a constante aliança com a prosa (o que significa também uma especial atenção ao prosaísmo da época), a passagem da lírica à discursividade, a ausência de compromisso com aquele "rigor" formal de que falava Valéry, a atenção à língua do quotidiano e à própria dimensão social da vida quotidiana. Lendo os novos poetas que podemos situar no interior deste quadro, percebemos facilmente que dele resulta boa e má poesia, que as coisas, felizmente, são complicadas e que, em última instância, é sempre a experiência da linguagem que define a poesia. Por isso é que um discurso de legitimação como o de Manuel de Freitas, no citado prefácio, comporta este risco: na medida em que constrói uma "poética" a partir de experiências singulares que não aspiravam, à partida, a uma tal elaboração programática (individual ou coletiva), ele introduz um mecanismo de valorização que incide especialmente sobre algo abstrato, sobre a tendência e o diferencial estilístico. Dito de outro modo: a ideia de uma "poesia sem qualidades" pode tornar-se bastante mais interessante do que alguma da dita poesia. E, nesse caso, estamos perante um discurso de legitimação passível (e digo "passível" porque se nos ativermos estritamente à referida antologia não é o que acontece, de facto) de ser posto ao serviço de um filisteísmo poético que só presta atenção ao elemento pragmático do poema.
Do lado oposto, quem acusa este tipo de poesia de não se afastar suficientemente do imediato, de se moldar pela banalidade da vida quotidiana, esquece-se muitas vezes que, neste caso, o golpe da magia poética, quando é conseguido, consiste precisamente em interromper aquilo que está diante dos nossos olhos, em provocar um ato de estranhamento que faz com que apareça como uma forma de experiência aquilo que estava escondido na repetição banal. Esta interrupção, que é um estado de exceção na regra da quotidianidade, revela as asperezas  que o hábito tinha alisado. Este quotidiano reclama a descoberta, a invenção, a construção. Desvelar-lhe o rosto é sempre mais difícil do que parece e significa descobrir o significado trágico do presente que não temos o direito de desprezar. Movemo-nos aqui num terreno onde, ao contrário do que alguns pensam, nem todos os gatos são pardos, onde continuam a ser facilmente reconhecíveis as mais fortes produções da poesia. Não esqueçamos que foi também no seio da realidade mais trivial que Baudelaire produziu um novo «heroísmo», ligado a uma radicalidade crítica perante o presente. Se tivéssemos de remeter estes novos poetas portugueses para uma disciplina do saber, diríamos que grande parte deles estão mais do lado da sociologia do que da linguística ou da filosofia.
Deste ponto de vista, a poesia surge completamente exposta, liberta de todos os resquícios idealizantes, ostentando as suas fraquezas até quase à negação de si própria, nos exemplos extremos. Como é fácil perceber, há aqui uma relação de continuidade com alguns nós fortes da modernidade. Por outro lado, nalgumas das suas características, esta poesia mais recente parece dar continuidade a uma poética surgida nos anos 70 (a qual teve desenvolvimentos diferentes, como sabemos) e que os textos teóricos de Joaquim Manuel Magalhães consolidaram quase como programa e também como reação à abstração formalista de alguma poesia anterior. Porém, questões que aí se tornaram importantes, como aquelas que decorriam de um «regresso ao real», fazem hoje pouco sentido. Agora, o real está aí, como uma presença inescapável, é dele que se parte e não a ele que se regressa.

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* Este texto, por contingências várias, foi escrito à distância de toda a bibliografia, primária ou secundária. Na ausência dos livros, seria recomendável não escrever uma linha. A não ser que aceitássemos essa distância como condição do nosso discurso e seguíssemos um caminho que não requer a presença dos textos e que tenta elaborar a memória que temos deles. Tentámos, assim, enunciar uma série de princípios gerais que fornecem o quadro para uma leitura de uma parte, que julgamos significativa, da poesia portuguesa mais recente. Nestas condições, preferimos não nomear poetas, a não ser aqueles que são responsáveis pelas antologias a que fazemos referência (e que, portanto, só surgem enquanto antologiadores).







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