As Minhas Horas (T. Pascoaes) e Hora Absurda (F. Pessoa)
Teixeira de Pascoaes
AS
MINHAS HORAS
I
Horas
de dúvida cruel e de tortura,
Que
se abraçam a mim, geladas, a tremer...
E
levam no seu peito, impressa a tinta escura,
A
efígie dolorosa e humana do meu ser.
Horas
em que o Passado, o ermo, o solitário,
Nos
visita e nos fala em voz de cinza e poeira...
Ei-lo
surgindo, além, mais alvo que um sudário,
E,
como Hamlet, traz, nas mãos, uma caveira.
Horas
em que nos pesa a velha e doida herança,
O
remorso velhinho em luta contra nós.
E
somos pequenina e lívida criança,
Entre
espectros hostis de trágicos avós!
Momentos
de saudade eterna, quando tudo
Volve
para o meu rosto um vago rosto ausente...
Quando,
em alma despida e coração desnudo,
Eu
ando ao vento frio e choro intimamente.
E
logo me disperso em formas espectrais.
Sou
aparência vã da Dor que me consome.
Sou
alguém que a si mesmo exclama: nunca mais!
E,
súbito, se vê fantástico e sem nome.
Dias
mortos de Inverno os céus escurecendo...
Erma
terra ao luar, cadáver insepulto.
Negra
noite molhada e lúgubre, gemendo,
Que
em nosso coração parece tomar vulto.
Horas
de indiferença e inerte calmaria,
Isentas
de prazer, de angústias, fome e sede,
Em
que sou, de mim próprio, a máscara vazia,
Meu
retrato pintado a sombra, na parede.
Horas
falsas de cor em pardos tons de mágoa,
Em
que de tudo, tudo, assim nos desprendemos,
Como
a água a deixar em névoa a própria água...
E
a dor de não sofrer, a dor maior, sofremos!
Horas
em que abandono as regiões divinas...
Triste,
desencantado, exposto às tempestades,
Sob
a treva a chover dum céu, todo em ruínas,
Onde
pairam — que horror! — defuntas Divindades!
Sou
a lástima eterna! A humana voz sangrando,
Sem
um eco de amor que, ao longe, a repercuta!
Voz,
num deserto imenso e negro, suplicando!
Sempiterna
oração que nenhum Deus escuta!
Momentos
de aventura, ímpetos sobre-humanos...
Ó
viagens no mar! Ó praias do Nascente!
E
gostavam de olhar meus olhos lusitanos
Água
e céu, água e céu, indefinidamente!
Desejei
afrontar os grandes temporais!
Num
relâmpago ver o teu perfil, ó Morte!
Ver
as ondas bailar em loucas saturnais,
Ter
por único amparo a frágil mão da Sorte!
Horas
em que sonhei, nas ruínas, meditar;
Nesses
templos de pedra e sombra, à luz da Lua,
Onde
algum velho Deus, pobre fantasma a errar,
Pára,
junto de nós, e é fria estátua nua...
E
sonhei vaguear, saudoso e solitário,
Sob
um luar nascido em montes da Judeia...
Ver,
em sombra espectral, o drama do Calvário
E
a representação fantástica da Ceia!
Ver
Marta, Salomé, nas trevas da Paixão!
E,
aos pés da cruz, tombado, o corpo de Maria.
Ver,
à nublosa luz de íntima invocação,
O
que viu Madalena, à clara luz do dia...
Ser
nómada! Viver errante! Que aventura
Nesses
desertos da Ásia! Eu vejo, dentro em mim,
Planícies
de aridez extensas de brancura;
Ermos
que a Sede alonga em areais sem fim!
E
desejei perder-me entre as florestas virgens!
Ser
homem primitivo, em luta contra as feras!
E
cercado, a tremer, de pálidas vertigens,
Meus
olhos sepultar na boca das crateras!
O
negro e doido encanto, em nós, a rir, a rir!
Dir-se-á
que nos deslumbra ardente labareda!
Que
prazer não seria, ó meus irmãos, sentir
Num
abismo sem fundo uma perpétua queda!
Momentos
de delírio e de desvairamento,
De
grandes sensações que se apagavam logo!
Momentos
em que fui mais louco do que o vento.
Fazendo,
à minha vida, o que ele faz ao fogo.
O
trágico destino! Horror! Fatalidade!
Almas
que andam, de dia e noite, embriagadas.
Sensíveis
para além da Sensibilidade
E
vivas para além das cousas animadas!
Ai
de nós! Ai de nós! Vede que estranha sorte!
Cair,
cair, cair, sem descansar jamais...
E
esse espaço que vai do nascimento à morte
É
a hora em que o profundo Abismo contemplais!
II
Horas
em que eu medito, absorto e comovido,
Na
branca solidão da noite misteriosa,
Sob
a Lua a emanar etéreo mármor' fluido,
Que
é um sepulcro evolado em sombra luminosa.
Momentos
em que anima os pobres versos meus
A
luz espiritual, que, em névoas, resplandece,
Quando,
de joelhos, rezo e a tarde me entristece
E
o meu ansioso olhar quase descobre Deus.
Momentos
em que vivo o sonho, oculto e mudo,
Sonhado
em cada cousa humilde, que se esconde;
Quando
vejo crescer, crescer, diante de tudo,
Essa
interrogação a que ninguém responde!
Momentos
em que sou o incompreendido, o eleito,
Sentindo-me
afogar na torva escuridade...
E
toco a Imperfeição, a fim de ser perfeito,
Porque
entender a treva é ser a claridade.
E
posso contemplar o Abismo; ver-lhe o fundo!
E
trémulo de medo, ébrio de horror e encanto,
Oferto
a Deus, à Dor e aos astros o meu canto,
Ao
percorrer sozinho a noite deste mundo.
E
vou cantando o amor e a terra abençoada,
Quando
a Esperança inflora os arvoredos nus,
E
o sorriso dum Anjo, além, é madrugada,
E
todo o espaço vibra em comoções de luz!
E
sou nuvem de sonho, ao vento que perpassa.
A
divina Pureza, a Infância original,
A
essência da Alegria, o espírito da Graça
E
a presença da Dor, sombria, já carnal...
Horas
em que me exalto e elevo intimamente.
Nos
meus olhos, um astro acorda: uma oração,
Uma
lágrima pura, à luz do sol, tremente,
Uma
gota de orvalho, em brasa, na amplidão...
Horas
em que me enleva o marulhar das fontes.
A
dor da água aflora, em mimos de verdura.
Manhãs
de Abril, doirando os pobrezinhos montes,
Esboçam
o perfil sagrado da Ternura.
Horas
em que meu ser, subindo além da Vida,
Mostra
a sua figura, ao longe, esplendorosa;
Aqui,
na terra obscura, é feia e dolorosa,
E
lá, cristal aceso e pérola incendida!
Horas
em que a Verdade às almas se revela...
Horas
de Eternidade e graça repentina,
Quando
ouço murmurar a mais longínqua estrela
E
o silêncio em que desce, ao mundo, a voz divina.
Horas
em que uma fonte, humilde, que chorava,
Deu
formas de harmonia ao meu primeiro canto...
Dos
meus lábios nascido, em pleno céu, pairava,
Caótico
de sombra e de nocturno espanto!
Horas
em que, sofrendo, a Divindade imploro;
E
sinto, no meu peito, o coração aflito!
E
há Serafins bailando, ao som da Lira de ouro
Que
a gente vê brilhar, à noite, no Infinito...
Horas
vivas de luz, de amor e de esperança
Que
infloram, ao passar, as bordas dos caminhos...
E
fico extasiado a ouvir, como em criança,
A
alegria do sol cantar nos passarinhos!
Horas
de oiro em que sou igreja alumiada.
Íntima
aleluia etérea me deslumbra...
Surge,
d'além da serra, a Deusa da alvorada,
E
o seu perfil, lá fora, alveja na penumbra.
Horas
que são irmãs da Hora derradeira.
Em
que a terra nos abre o seio todo em flor.
E
alcançamos, enfim, presença verdadeira
E
somos nós, enfim, diante do Senhor.
Teixeira de Pascoaes, Terra
Proibida, Coimbra, Tip. França Amado, 1899 [1900] (1.ª ed.).
Lírico,
Teixeira de Pascoaes canta «ingenuamente» impressões, estados de alma, coisas
imaginárias: os «lugares santos» da infância, a montanha, a fonte (...) a névoa
que sobe do rio (...) o amor que se estende à Natureza inteira. Dissolve o
mundo em alma e melodia (...) Por temperamento ou vocação, Pascoaes é muito
mais um solitário que um homem convivente. Individualista estreme, exigente de autenticidade
(...) repudia a personagem social que os outros nos levam a representar, a
máscara em que nos anquilosamos; (...) dá-se à contemplação, olha para dentro
de si. Mas que descobre dentro de si? Além de imagens vácuas, algo de
impalpável, que não consegue apreender.
Todavia,
o lado cristão, e até franciscano, da sua delicada sensibilidade leva-o a
interessar-se pelas dores e injustiças do mundo. Se virmos bem, há uma
constante social na sua obra (...) uma simpatia universal, um amor que se
estende, fraterno, a todas as criaturas, abraçando os pobres e os tristes do
mesmo modo que as árvores, as pedras humildes e as estrelas. Amor de natureza
religiosa, radicado num profundo respeito pelo mistério de todas as almas.
Longamente,
obsidiantemente, até ao último alento, Pascoaes há-de reelaborar os seus temas,
aprofundar (...) a sua «filosofia» ou concepção intuitiva do Universo (...)
Todas as «verdades» que Pascoaes proclama, em prosa e verso, com a segurança
dum iluminado, não passam, afinal, de momentos dum processo dialéctico sem fim.
Se as
suas visões são quiméricas, Pascoaes professou toda a vida a Quimera com uma
fidelidade assombrosa, marca duma excepcional qualidade humana (...) Não veio
trazer-nos «soluções», mas «inquietação».
Do Prefácio de Jacinto do
Prado Coelho
Obras Completas de
Teixeira de Pascoaes. Poesia. Volume I – Belo; À
Minha Alma; Sempre; Terra Proibida. Introdução e aparato
crítico por Jacinto do Prado Coelho. Amadora, Livraria Bertrand, [1965].
Se o eu é uma espera, a
saudade pode ser morada?
por: Roberta A. P. de
F. Ferraz
Passamos agora à leitura do segundo poema
de Pascoaes, “As Minhas Horas”, do livro Terra Proibida, de 1899. O
próprio título já desencadeia uma sequencia de possibilidades de começo de
leitura: trata-se das ‘horas que são minhas’? ‘Horas que eu guardo, conservo,
que eu saúdo, possuindo-as’? ‘Horas em que sou? Que possuo a mim
mesmo?
O longo poema, em seus
vórtices de claro-e-escuro, é também um exemplo interessante da poética
pascoaesiana, em todo seu estilo ‘vocacionado’ ao drama epifânico, em suas
exclamações e torrentes, nas imagens paradigmáticas da totalidade e da relação
entre poema (voz/canto) e mundo intensamente projetada na ‘imensidão íntima’ do
sujeito lírico. Com métrica regular, explora o verso alexandrino, em sua versão
já mais livre, próxima à maneira como vinha sendo trabalhada pelos simbolistas;
com rimas alternadas ABAB/CDCD ao longo dele todo, o poema nos embala numa toada
de ‘barco ébrio’, em tom grandiloquente e efusivo. O poema, dividido em duas
partes, começa assim:
I
Horas
de dúvida cruel e de tortura,
Que
se abraçam a mim, geladas a tremer...
E
levam no seu peito, impressa a tinta escura,
A
efígie dolorosa e humana do meu ser.
Horas
em que o Passado, o ermo, o solitário,
Nos
visita e nos fala em voz de cinza e poeira...
Há todo um universo escuro, noturno,
doloroso, que assalta o sujeito num abraço frio, revelando-o a si mesmo, em “efígie
dolorosa”, por meio de um contato com o ‘coração destas horas’, seu centro,
feito de “tinta escura”. A hora, portanto, abre-se à escrita escura de
si própria, iniciada pela tessitura de uma efígie, que pode ser compreendida
como medalha ilustre com que se lembra de alguém (de si próprio, no caso) ou,
mais radicalmente, apenas como um ‘retrato’, uma ‘imagem’, representação. O
sujeito em espera, na fruição de suas horas, reflete sobre as coisas que
o refletem em retorno, um retorno, em primeiro momento, bastante perturbador.
Estas horas são as horas em que o passado ‘fala’, vem em ‘visita’, perante o
qual, imerso nele, o sujeito se sente mínimo, como uma criança pálida “e somos
pequenina e lívida criança, / entre espectros hostis e trágicos de avós!”.
É neste ‘terror-maravilhoso’ que mora o eixo dramático da ambiguidade da
saudade, pois é nesta situação, que o sujeito saúda o que cantar. São estes os
“Momentos de saudade eterna, quando tudo / Volve para o meu rosto um vago
rosto ausente”.
O presente em si, fora da visitação do
assombro, é apenas tempo de espera, humano em demasia. Espera não da morte, mas
da compreensão das origens e dos fins, e mais: espera dessas horas, em que o
presente submerge no assombro de um tempo outro, mais que passado, um fóssil do
passado; e se mistura com tudo, perdendo a sua especificidade carnal de nula
espera. A Saudade é esta ponte afetiva, o sentimento visionado, revelado, do
além, que a tudo contagia e dissolve. Mas muito mais que biográfico ou
familiar, muito mais que até humano, esse ‘além’ busca a fagulha, a centelha, o
princípio total da criação. Para corresponder a uma organicidade, uma
‘naturalidade’, o poema se faz com um sentido rítmico processual, de
desenrolar sequenciado, em que as coisas, ao se tocarem, se consubstanciem, em
eterna mutação. Ainda na parte I do poema lemos:
Horas
de indiferença e inerte calmaria,
Isentas
de prazer, de angústias, fome e sede,
Em
que sou, de mim próprio, a máscara vazia,
Meu
retrato pintado a sombra, na parede.
Horas
falsas de cor em pardos tons de mágoa,
Em
que de tudo, tudo, assim nos desprendemos,
Como
a água a deixar em névoa a própria água...
E
a dor de não sofrer, a dor maior, sofremos!
Horas
em que abandono as regiões divinas...
Aqui podemos, tirando o tom grandioso e
autopenitente, ouvir quiçá um eco de Pessoa, quando diz que são horas “Em
que sou, de mim próprio, a máscara vazia, / Meu retrato pintado a sombra, na parede”.
Novamente a efígie, o retrato, volta à cena, a reafirmar a imagem “dolorosa
e humana do meu ser”. Depois de levado a cabo esse processo de alheamento
pela saudade, essa perda do sensível e de si, abre-se, num painel, como
numa visão ou um cinema transcendental, o real aventuroso (ainda parte I):
Momentos
de aventura, ímpetos sobre-humanos...
Ó
viagens no mar! Ó praias do Nascente!
E gostavam de olhar meus olhos lusitanos
Água
e céu, água e céu, indefinidamente!
Desejei
afrontar os grandes temporais!
Num
relâmpago ver o teu perfil, ó Morte!
Ver
as ondas bailar em loucas saturnais,
Ter
por único amparo a frágil mão da Sorte!
Horas
em que sonhei, nas ruínas, meditar;
(...)
E
sonhei vaguear, saudoso e solitário,
Sob
um luar nascido em montes da Judeia...
Ver,
em sombra espectral, o drama do Calvário
E
a representação fantástica da Ceia!
Ver
Marta, Salomé, nas trevas da Paixão!
E,
aos pés da cruz, tombado, o corpo de Maria.
Ver,
à nublosa luz de íntima invocação,
O
que viu Madalena, à clara luz do dia...
Ser
nómada! Viver errante! Que aventura
A partir desta ‘hora’, equilibrados os
contrários entre exaltação e queda, o transe se inicia e o sujeito embarca na
viagem, em que segue o poema, e numa vivência dinâmica da natureza e da
história, revive cenas míticas e fundadoras do seu próprio assombro: dos mares
nunca dantes navegados, lusitanos, ao Calvário com seus episódios bíblicos,
sempre em companhia de mulheres (Marta, Salomé, Maria e Madalena), que o cercam
como se ele encarnasse o próprio Cristo “em sombra espectral”.
A meditação, depois da viagem e de sua
queda, transforma-se em prece, oração, quando seu “olhar quase descobre
Deus”. Com um tom mais acalentador, de recolho do vivido (em transe) e
remeditação sobre ele, vê-se como a escrita se enovela em si mesma, servindo-se
de alimento a mais escrita, numa espiral em que a voz, mesmo se cansando, hora
ou outra, é dotada de um fôlego excessivo, que se traduz na imensidão do
próprio poema. A ‘quase’ descoberta de Deus expande na voz a pergunta sem
resposta, “Quando vejo crescer, crescer, diante de tudo / Essa interrogação
a que ninguém responde!”, e faz do sujeito poético o “incompreendido, o
eleito” que oferta “a Deus, à dor e aos astros o meu canto / Ao
percorrer sozinho a noite deste mundo”:
É então que, ao tocar no fundo da mudez de
qualquer resposta, o poema se transmuta em força generosa, de renascimento. É
bastante interessante notar o tom intenso das movimentações entre alto e baixo
que o poema apresenta, movimento que busca de uma harmonia entre as coisas, um romântico
casamento, lembrando William Blake, entre céu e inferno. E o poema finaliza,
apoteótico, crente de si mesmo, potente de seu canto:
Horas
em que me exalto e elevo, intimamente.
Nos
meus olhos, um astro acorda: uma oração,
(...)
E
fico extasiado, a ouvir, como em criança,
A
alegria do sol cantar nos passarinhos!
Horas
de oiro em que sou igreja alumiada.
Íntima
aleluia etérea me deslumbra...
Surge,
d’além da serra, a Deusa da alvorada,
E
o seu perfil, lá fora, alveja na penumbra.
Horas
que são irmãs da Hora derradeira,
Em
que a terra nos abre o seio todo em flor.
E
alcançamos, enfim, presença verdadeira
E
somos nós, enfim, diante do Senhor.
Este poema religioso culmina
com o aparecimento da estrela matutina, uma Vênus que é mãe e guia de toda a
sensibilidade pascoaesiana, fundindo nela Amor e Saudade, vindo com a aurora. É
com a figura feminina desta deusa tutelar que o real se reveste de “presença
verdadeira” e finalmente, o encontro esperado se cumpre, e o sujeito, já
coletivizado em “nós”, não é mais uma sombra-quase, mas um ‘mundo todo’ diante,
frente a frente, com o Senhor.
A saudade em Pascoaes e Pessoa, uma leitura de As Minhas
Horas de Teixeira de Pascoaes com Hora Absurda de Fernando Pessoa
Chamemos à roda Fernando Pessoa. O poema
“Hora Absurda”, publicado na revista Exílio, em 1916, mas contendo
rubrica com a data de 1913, imbui-se também de uma atmosfera
decadente-simbolista, conforme propagada pelo editorial da revista.
Ressaltamos que, neste brevíssimo estudo,
exercitamos uma leitura do poema pessoano num diálogo crítico com o poema
analisado de Pascoaes, e com todo o universo eloquentemente entusiasmado das
estéticas em que fusionam e imbricam sujeito, mundo, poema. Na “Hora Absurda”,
já de início, nenhuma hora é de ninguém. O constante uso do pronome possessivo,
por Pascoaes, é aqui já imediatamente, no primeiro verso, deslocado para um
‘tu’, implicando o leitor no poema e/ou uma personagem outra a quem o poema se
dirige, ou seja, negando a assoberbada referência a qualquer eu. O poema começa
assim:
O
teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas,
as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E
o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com
que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
Meu
coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O
teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha
ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto
Tu
és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
O tom jocoso, de blague com a sonoridade
escancaradamente de influência simbolista, com versos longos que variam de 13 a
17 sílabas, porém trazendo à memória, pelo recurso das sílabas tônicas, o
andamento do alexandrino, já nos mostra, de cara, um poema moderno, em
que são somados aos procedimentos decadentista-simbolistas as ideias que Pessoa
vinha desenvolvendo com o sensacionismo e o interesccionismo,
trazendo ao ‘sutil e ao complexo’, com que caracterizara a nova poesia
portuguesa, a ‘ideação complexa’, ou seja, o raciocínio meticuloso elaborado na
criação. O poema abre apontando um ‘tu’ que, portanto, já nos projeta para fora
do poema pelo poema, para fora de um lirismo de um sujeito, ou ainda,
para um sujeito fora de si.
As imagens, dispostas como estão, conduzem
ao grotesco e ao riso nervoso, quando, por exemplo, após um verso
pseudo-sentimental como “Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...”
aparece a afirmação de que “minha ideia de ti é um cadáver que o mar
traz à praia”. A ideia de ‘pintar a paisagem’ desta hora que seria uma hora
mística na sensibilidade afetada do neorromantismo, verte-se de plena
irrealidade, onde a cor “erra”. Assim, desmascarando a volúpia
transcendental de ‘certas horas’ vagueadas por sujeitos embebidos da
musicalidade onírica, o poema vai, imagem por imagem, desconstruindo-as,
tirando-lhe as partes, desmembrando-as, numa sucessão de desencontros,
revelando não mais um sujeito que plasma, pela voz, o real, mas, em seu revés,
um sujeito ‘qualquer’ que, entediado ou moroso, só pode lhe pode continuar as
sequelas ou então fingir paraísos:
Abre
todas as portas e que o vento varra a ideia
Que
temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha
alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E
a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...
Chove
ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E
a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na
minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
estrela...
Íntimo desta hora absurda, o sujeito
ordena-lhe que “Abra todas as portas e que o vento varra a ideia / que temos
de que um fumo perfuma de ócio os salões”, ou seja, intima-a a acabar com a
sua ‘farsa nebulosa’, que se deixe arejar. E, voltando a encenar o dramalhão
estético, voltando a falar da ‘alma’, deixa-a afogar na imagem da caverna em
maré cheia, rompendo com o platonismo visionário de qualquer gente fora ou
dentro da caverna: fora ou dentro da caverna, só há o mar. A ideia de ‘sonhar’
esta ‘hora absurda’ parece-lhe um carro de bufões, uma “caravana de
histriões”. O ridículo assola, portanto, todo e qualquer
transcendentalismo, e o ridículo dele é o ridículo do sujeito que o vocifera,
pois, como revela o poema, o eu e a hora são tambem um ‘tu’ em escombros: “Chove
ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora / E a Hora é de
assombro e toda ela escombros dela”. Ao assombro do sujeito de “As minhas
horas”, de Pascoaes, respondem-lhe os escombros do assombro, pois, sem a
elasticidade da ‘imensidão íntima’ do sujeito de cariz romântico, este sabe que
“No meu céu interior nunca houve uma única estrela”.
O poema segue, fora de ciclo, sem qualquer
laço de continuidade entre sujeito-poema-mundo, apresentando fragmentos de
cenas, pequenas totalidades em ruínas, que só nos leva a constatar a relatividade
constitutiva de tudo, a ausência de compreensão e de realização,
para além do poema, de sujeito e realidade. As coisas são do poema e ainda
assim, são em ‘cacos’. Num sem sentido que se alastra feito erva daninha, pelo
desenrolar do poema, do qual “ninguém” sente saudades:
(...)
O
palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da
fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E
sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta
paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...
Apesar do abandono parecer dor (fingir-se
dor a dor que deveras sente), a primeira vez em que o poema nomeia a palavra saudade,
é para negá-la, ou quando muito relativizá-la, através da cesura: “Ninguém
ergue o olhar da estrada / E sente saudades de si”. O enjambement dos
versos reforça uma ambiguidade interessante, já que o verso “E sente
saudades de si”, aparentemente positivador da saudade, tem seu sujeito no
verso anterior, cortado, o “ninguém”. Apesar da beleza decadente
de um palácio em ruínas e do clima crepuscular-outonal da paisagem, “ninguém
ergue o olhar da estrada”. E a estrofe é arrematada por um dos versos que
mais fortes da obra pessoana: “Esta paisagem é um manuscrito com a frase
mais bela cortada”. Ironia fina, quando o sujeito, assemelhando a paisagem
à escrita, diz, numa imagem belíssima, que está a “frase mais bela
cortada”...
Quando reaparece o termo ‘saudade’, na
escrita da hora absurda, novamente ela é negativa, um não-ser que a
constitui. A saudade aqui, em Pessoa, não é ponte de contemplação das horas,
que leva o sujeito ao encontro das coisas. A saudade aqui é sempre um não:
ou uma falta que não se preenche, ou uma falta que não se tem. As
coisas desistem, não insistem na mágoa da distância. Não hã no poema qualquer
pretensão de salvar qualquer coisa de sua infalível derrocada:
Ergueram-se
a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou
uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao
meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha
alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...
Independentemente do poema pessoano
fazer-se ou não, num diálogo de fato, como o poema de Pascoaes, fica
claro para nós que o poema de Pascoaes é representativo desse imaginário que
Pessoa vem, habilmente, decalcar com ironia, mostrando o seu distanciamento
estético, por meio de um, digamos, pastiche dele. Imbuído de traços futuristas,
o apelo do corte segue afirmativo:
É
preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir
de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar
à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído
brusco de serras...
As serras que acalmavam, em Pascoaes, a
paisagem e convidavam à escalada aqui não passam de máquinas que gemem um “ruído
brusco”. Depois de inventariar as diversas ocorrências possíveis a uma
“hora absurda”, desarticulando-as de um sentido unificador, o poema se inclina,
como uma prece (em paralelismo portanto, em pastiche, com o fôlego
pascoaesiano) que é mais uma resignação, não saudade. Pára a chuva dentro da
hora (que é o sujeito) e o retrato deste rosto em fragmentos deixa que lhe caia
por sobre, a “tarde rica”. O que se abre no vasto do céu não é um azul
promissor, um face-a-face com qualquer divindade, mas “um grande sorriso
imperfeito” que se dá, ao sujeito, como prece. Ou seja: a prece, aqui, é o
real; o sonho, a fuga, o além não passam de máscaras de inutilidade: “A
minha consciência de ter consciência de ti é uma prece”. Após esta
constatação, no paradoxo que é próprio da poética pessoana, há a projeção, a
ideação, de alguma coisa. Porém o que se projeta não é mais a vida subjetivada
em expansão, mas o desejo de ser ‘coisa’, o desejo de se plasmar num simples
objeto sem vida, que mal se vê, mas se advinha feito de luz e de beleza: “Ah,
se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!..”, ou então, “Ah, se
fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...”. O sonho deste
sujeito, vejam, não é ser a ‘bandeira de glória’, mas as ‘duas cores’ dela,
apenas as cores. O abandono inorgânico e a renúncia vivida esteticamente, podem
ser, enfim, um modo de ‘descansar’ do excessivo tônus com que o sujeito, no seu
canto ainda romântico, se autoinvestia, clamando aos brados um real, que, já se
sabe, é falido e não responde. No entanto, ainda, esta consciência da ‘recusa’
não chega a aplacar o sujeito:
O
que é que me tortura?... se até a tua face calma
Só
me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não
sei... Eu sou um doido que estranha a própria alma...
Eu
fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
A ‘efígie’ retorna, do poema pascoaesiano,
“As minhas horas”, de uma composição intensa de sombra-e-luz, a este ‘grand
finale’ do poema pessoano, que nada conclui, suspendendo o poema em si
mesmo, legando-nos um retrato que é rastro de reticências, que não funcionam
apenas como sinal de prolongamento ou continuidade, mas sim como hora
absurda, em que suspensos, descobrimos que, se a hora não tem fundo, não tem
fundamento, não tem princípio (mas tem fim), e nada podemos conhecer.
Depois de percorrido o contato intenso com
o nada, ‘hora saudosa’ em sua faculdade germinadora, potente e dramática, em
Pascoaes; e o nada em seu desfigurante vácuo pessoano, ‘hora absurda’,
desiludido e lucidamente consciente; trazemos de volta o poema de Eliot, antes
de sua entrada nos corredores indo dar ao roseiral: “O que poderia ter sido
é uma abstração / Que permanece, perpétua possibilidade, / Num mundo apenas de
especulação”(ELIOT, 2006, p.5).
Duas formas de uma
(talvez) (mesma) ausência? O seu lado positivo, chamado saudade,
em Pascoaes, entregando-se ao estertor de um mundo já quiçá insustentável pelo
arrimo romântico, e o seu lado negativo, reativo, negador da saudade, não
necessariamente pela falta de saudade, mas mais pela falta que constitui a
saudade, ‘falta’ que permanece em ‘falta’, ou seja, que não virá preencher a si
própria, como num passe de mágica poética. Há, sim, saudades no ‘Cancioneiro’
pessoano, íntimos diálogos não parodiados estabelecidos com a energia outonal,
melancólica e passadista louvada por Pascoaes. Para este trabalho, porém,
escolhemos trabalhar mais o ponto de dissenso entre essas relações, que um e
outro traçam, na habitação e convívio com as estéticas finisseculares e o apelo
de ‘ausência’ que elas sustentam.
Fonte:
Roberta A. P. de F. Ferraz, “A saudade em Pascoaes
e Pessoa, uma leitura de As Minhas Horas de Teixeira de Pascoaes com Hora
Absurda de Fernando Pessoa” Congresso
Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura
Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional
de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo
Grande/MS/Brasil [recurso eletrónico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.],
organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.
***
HORA ABSURDA | Fernando Pessoa
O teu silêncio é uma nau com todas as velas
pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu
sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as
andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer
paraíso...
Meu coração é uma ânfora que cai e que se
parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a
um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à
praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha
arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os
salões...
Minha alma é uma caverna enchida pela maré
cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de
histriões...
Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em
mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros
dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca
chora...
No meu céu interior nunca houve uma única
estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar
a um porto...
A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter
sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as
naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem
sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não
há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me
alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem
má...
Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos
caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram
às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das
barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços
daninhos...
Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus
partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela
falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos
sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si
calam...
O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o
abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da
estrada
E sente saudades de si ante aquele
lugar-Outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais
bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas,
muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá
nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias,
brisas fortuitas?...
Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas
ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham
partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de
naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo
fingido...
Já não há caudas de pavões todas olhos nos
jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e
ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis
finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob
meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...
Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo
ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar.. Em
frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras
raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda
está quente...
Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao
sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no
nosso sentido...
Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos
na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na
aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que
está descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso...
Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te
e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como
medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de
medonho...
Para que não ter por ti desprezo? Porque não
perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é
um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão
belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não
peque...
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os
peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no
jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios
eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas
com fim...
Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens
que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que
há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o
tivessem...
É preciso destruir o propósito de todas as
pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as
terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco
de serras...
Há tão pouca gente que ame as paisagens que não
existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo
amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens
que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
auréola negra...
Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica
desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso
imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é
uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu
peito...
Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo
vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de
glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia
baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este
lema — Vitória!
O que é que me tortura?... Se até a tua face
calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios
medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua
própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...
4-7-1913
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e
Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 21.
Publicado na revista Exílio, Lisboa,
1916, o poema é datado de 4-7-1913. Composto de 25 quadras em versos longos (com
pequenas variações em torno de 15 sílabas métricas) e rimas alternadas, Hora
Absurda é representativo da fase modernista de seu autor - um Pessoa ainda
muito próximo à poética simbolista, voltado para as próprias impressões, e que
busca antes sugerir do que claramente definir emoções e estados de espírito inefáveis:
«Minhas ânsias talhadas num mármore que não há.»
Logo no início o poema apresenta-se
como releitura radical do poeta que canta as belezas de sua musa. Afirmações
como «O teu silêncio é...», «E o teu sorriso no teu silêncio é...», são sucedidas
por «Meu coração é...», «Minha ideia de ti é», «Minha alma é...», de modo tal
que o(a) outro(a) é logo convertido(a) em pretexto para o interesse do eu
lírico sobre si mesmo: «Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma».
Nesse canto desromantizado, portanto, o
eu lírico está mais interessado em se aprofundar nas próprias sensações: «Chove
ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim mesmo… Sou a Hora». E as estrofes
sucedem-se como ondas de impressões justapostas e muitas vezes sem relação direita
entre si.
Essa supressão da decorrência entre as
partes fornece um indício do que seja essa «hora absurda», isto é, uma hora
estacionada, um momento eternizado e verticalmente explorado. O tempo psicológico
é, afinal, o tempo descronologizado. O espaço exterior não são paisagens que se
sucedem, como num passeio, mas que aparecem aos conjuntos, em flashes de
imagens suscitadas por um sentimento que se toma mais complexo quando associado
a elas.
Estamos já, portanto, num mundo próximo
ao onírico: «Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!» Esse
verso resume bem, e ainda em meados de 1913, a conceção do autor sobre a arte
moderna, que num manuscrito provavelmente do mesmo ano, assim definiu: «Quem
quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna
encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de
sonho» (PETC1 153). E não surpreende que se relacione com essa hora estática (e
tão profundamente explorada em O Marinheiro, também de 1913) a qualidade plástica do
poema: «O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da
vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tatilmente. E o "quadro",
a "paisagem" é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora
do continuamente dinâmico que é o mundo exterior» (PETCL 155). Não é outra a atitude
do eu lírico, senão pintar a realidade com as tintas de sonho: «E o teu
silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...»
George Rudolf Lind considera que «Hora
Absurda é bem a demonstração de como o vago pode permanecer transparente em
toda a extensão dum poema, uma vez que resulta dum programa de composição
previamente traçado» (1970: 23). O poema opera segundo as três categorias atuantes
em Pauis: o vago, o subtil e o complexo, que, na
verdade, haviam sido usadas por Pessoa como descritores da poesia saudosista. Lembre-se
de que, em A Águia, o autor afirma que a complexidade «traduz uma
impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica acrescentando-lhe
um elemento explicativo que, extraído dela, lhe dá um novo sentido».
Mais especificamente, há no poema a busca
por concretizar com imagens plásticas o abstrato, de que resultam longas séries
de composições metafóricas inauditas, em que a linguagem é predominantemente substantiva
e os versos terminam por reticências. Nessas séries, como comprovam as duas
primeiras estrofes do poema, a metáfora evolui para a alegoria. Mas esse expediente
não objetiva o subjetivo, uma vez que as metáforas são geralmente compostas por
elementos complicadores e/ou carregadas de um impressionismo penumbrista, de gosto
decadente: «Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... /
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda / Há rastros de vestes de aias (parece)
no chão, e ainda chora / Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...»
O poeta não busca, portanto, associar
sensações a paisagens já experimentadas; mais propriamente o efeito de
identificação no leitor é substituído pelo de estranhamento. Atuam assim as
muitas afirmações que negam a si mesmas: «Não é alegria nem dor esta dor com que
me alegro, / E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...», as hipóteses
de um irreal tornado real: «Ah, o teu tédio é uma estátua de mulher que há de
vir, / O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...», bem como as
tautologias das coisas compostas de si mesmas: «E a Hora é de assombros e toda
ela escombros dela...»
Já aqui se pode falar do lirismo
intelectual do poeta que pensa e sente ao mesmo tempo, e que adianta metáforas
e comparações que se amarrarão por fio narrativo mais visível em poemas como Ode
Marítima.
Bibliografia: LIND, G. Rudolf, «Duas Tentativas de
Aperfeiçoamento do Simbolismo: o Paulismo e o Interseccionismo», in Teoria Poética de Fernando Pessoa, Porto, Editorial Inova, 1970; SACRAMENTO, Mário, Fernando
Pessoa, Poeta da Hora Absurda, 2.ª ed., Editorial Inova, Porto, 1970;
SIMÕES, João Gaspar, «Do "Paulismo" ao "Interseccionismo"»,
in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História duma Geração, 6ª ed.,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.
Caio Gagliardi, “Hora Absurda” in Dicionário de Fernando
Pessoa e do Modernismo Português, coordenação de Fernando Cabral Martins.
Lisboa, Editorial Caminho, 2008. ISBN 978-972-21 -1985-6
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obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
CARREIRO, José. “As
Minhas Horas (T. Pascoaes) e Hora
Absurda (F. Pessoa)”. Portugal, Folha de Poesia, 07-04-2020.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/as-minhas-horas-t-pascoaes-e-hora.html
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