Inês
de Leiria
Encontrou
Fernão Mendes
No
interior da China
(E
em que apuros ele ia!)
A
velha portuguesa,
Chamada
Inês de Leiria,
Que
de repente reza:
Padre
Nosso que estais nos céus...
Era
de português o que sabia.
Ouvindo
Fernão Mendes
Esta
voz que soava
(Fernão
cativo e cheio de tristeza!)
O
português sorria...
Padre
Nosso, que estais nos céus...
A
velha mais não sabia,
Mas
bastava.
Boa
Inês de Leiria,
Cara
patrícia minha,
Embora
te fizesse
A
aventura imortal
De
Portugal
Chinesa
muito mais que portuguesa,
-
Pois por esse sorriso de Fernão
Tocas-me
o coração.
Deste-lhe
em tal ensejo,
Entre
as misérias da viagem,
O
mais gostoso e saboroso beijo
-
O da Linguagem!
Afonso Lopes Vieira, Onde
a Terra se Acaba e o Mar Começa.
Lisboa: Livraria Bertrand, 1940, pp. 39-40.
Lisboa: Livraria Bertrand, 1940, pp. 39-40.
Poema inspirado no capítulo 91 da Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto, cujo episódio de Inês de Leiria a seguir se transcreve:
Uma mulher que estava ali
presente […], ouvindo a nossa conversa respondeu:
– Coisa é essa de que
ninguém se deve espantar, porque nunca ali vimos senão ficarem na maior parte
sepultados no mar os que muito labutam no mar, e por isso, amigos meus, o
melhor e mais certo é fazer conta da terra e trabalhar na terra, já que Deus
foi servido de nos fazer de terra.
E dando-nos com isto dois
mazes de esmola como a pobres, nos recomendou muito que não curássemos de fazer
viagens compridas onde Deus permitia fazer as vidas tão curtas. Mas logo após
isto, desabotoou a manga de um gibão de cetim roxo que trazia vestido, e
arregaçando o braço nos mostrou uma cruz que nele tinha esculpida como ferrete
de mouro, muito bem feita, e nos disse: – Conhece porventura algum de vós
outros este sinal que a gente da verdade chama cruz, ou ouviste-o alguma hora
nomear?
Ao que nós todos, em o
vendo, pondo os joelhos em terra com devido acatamento, e alguns com as
lágrimas nos olhos, respondemos que sim, a que ela dando um grito e levantando
as mãos para o céu, disse alto: – Padre Nosso que estais nos céus, santificado
seja o teu nome –; e isto disse-o na linguagem portuguesa, e tornando logo a
falar chim, como quem não sabia mais do português que estas palavras, nos pediu
muito que lhe disséssemos se éramos cristãos, a que todos respondemos que sim,
e tomando-lhe todos juntos o braço em que tinha a cruz a beijámos e dissemos
tudo o que ela deixara por dizer da oração do Padre-Nosso, para que soubesse
que lhe falávamos verdade.
Apontamento sobre o episódio de Inês de Leiria, na Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto:
No que se refere ainda à abordagem das imagens
do feminino na obra [Peregrinação] surge uma figura, a nosso ver,
bastante interessante na medida em que se distingue de todas as outras pelas
suas características. Essa figura é Inês de Leiria, que tem como traço
distintivo o facto de ser mestiça. Inês de Leiria era filha de Tomé Pires, um
português, que havia ido «por embaixador a el-rei da China» o qual se casara
com uma gentia que convertera ao cristianismo.
Assim sendo, Inês de Leiria cresceu num
ambiente cristão, ao qual se mantinha fiel, pois o seu pai havia convertido
«muitos gentios à fé de Cristo, (…) que ali em sua casa se ajuntavam sempre aos
domingos a fazer a doutrina». Os
portugueses são, mais uma vez, beneficiados da caridade feminina, pois Inês de
Leiria providencia-lhes mantimento e dinheiro, o que foi muito apreciado. Há,
neste episódio uma identidade religiosa que vai permitir que se estabeleça uma
relação de confiança. Este episódio revela-se também significante na medida em
que nos mostra uma referência à mestiçagem, bem como ao processo de
cristianização que ia sendo levado a efeito no Oriente.
Inês de Leiria pertenceria, certamente, a uma
comunidade cristã que ainda manteria a autenticidade dos valores cristãos, tal
como nos é dito: «E assim viviam todos muito conformes e amigos, sem haver ódio
entre eles ou inimizade alguma.»
Identidade
e Alteridade na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, dissertação de mestrado apresentada
à Universidade de Aveiro, por Carla Margarida Martins Tavares, 2008.
CARREIRO, José. “Inês de Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 05-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/ines-de-leiria.html
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