QUALQUER DIA
No inverno bato o queixo
sem mantas na manhã fria
No inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia.
No inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno vou por lume
Lenha verde não ardia.
No inverno vou por lume
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia
No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No inverno ganhei ódio
Qualquer dia
Qualquer dia.
Música: José Afonso
Letra: F. Miguel Bernardes
Intérprete: Zeca Afonso
In: Contos Velhos Rumos Novos, 1969
Letra: F. Miguel Bernardes
Intérprete: Zeca Afonso
In: Contos Velhos Rumos Novos, 1969
Análise do poema “Qualquer dia”
O Inverno representa o sombrio e frio regime político que governou Portugal, de 1933 até 1974. Ao longo desse tempo, foi necessário: “bater o queixo”, pois muitos calaram o medo e o sofrimento em tiveram de viver; tiveram de apertar o cinto, porque houve fome, miséria e muitas privações.
A personificação “o vento assobia” aparece como uma alusão às notícias que circulavam, como que levadas pelo vento, isto é, por alguém que as conhecia. Assobiavam os rumores e as notícias das vítimas de perseguições, de torturas, de maus-tratos, da guerra colonial, de fugas a perseguições que conduziram ao exílio.
Era preciso pôr lume para aquecer a vida e ficar à espera, pois o “Inverno” era muito rigoroso e não havia “mantas na manhã fria”, isto é, não havia protecção que desse liberdade de reunião, de expressão e de opinião aos cidadãos do país.
Num Inverno como esse, a «lenha verde não ardia», porque as ideias novas não alimentavam a “fogueira”, uma vez que só as ideias “maduras”, daqueles que defendiam o sistema e a Situação, “ardiam” e faziam sentido.
O frio marcava profundamente aqueles que lutavam para aquecer as suas vidas com o calor da liberdade e com as vivências democráticas. O frio estava estampado nas fábricas, nas escolas, nas prisões, nas perseguições brutais, nas vivências sociais e humanas e na ausência de princípios cívicos e democráticos.
Muitos conspiraram em silêncio (No Inverno penso muito): pensaram muito e anteviram a liberdade (Oh que coisas eu já via); ganharam ódio ao regime e à situação política, com ou sem vontade de o fazer (E juro que o não queria).
O Inverno continuava a deixar marcas no tempo de Marcelo Caetano, com cargas policiais, perseguições, prisões, tortura e sofrimento, mas terminaria um dia, (“Qualquer dia”), para ajudar a concretizar os sonhos dos poetas, dos cantores e de muito mais gente.
“Qualquer dia”, um dia qualquer, um dia num futuro próximo, a liberdade chegaria, para levar os rigores do Inverno, provocados pelos dominadores do regime, e trazer o Sol, a Luz, a libertação. Era essa a ânsia e o desejo profundo e utópico de Zeca Afonso e de outros autores de poemas e de canções.
Neste poema, há a antevisão de um futuro diferente para os portugueses, a contrastar com o mau tempo proporcionado pelo regime político que vigorava há muito tempo. Seria este um desejo liminar e pré-figurativo da liberdade que nasceria num dia de Abril.
“A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
Texto de apoio
Zeca Afonso fez parte de um movimento criador de sentidos e conseguiu, como outros cantores de intervenção, mobilizar toda uma massa humana que se tornou permeável aos apelos empolgantes e transformadores, transmitidos nas letras das suas canções. Esse movimento deu sentido à contestação dos fenómenos sociais que inquietavam a sociedade portuguesa e conseguiu, ao detetar esses males, abrir brechas no velho edifício estruturado do Estado Novo. Cantou-se e viveu-se em surdina, tendo-se partilhado conceitos e ideias encobertos nos sentidos implícitos das canções. Essa revolução silenciosa preparou o povo português para a mudança e para a revolução de Abril.
[…]
Zeca Afonso serviu-se de dois instrumentos estratégicos para transmitir mensagens políticas e enganar a censura do Estado Novo: através da temática escolhida, sugeria e não revelava; através do estilo adotado, possibilitava a crítica velada, recorrendo ao hábil estratagema da plurissignificação dos signos utilizados e dos recursos expressivos escolhidos:
‑ as metáforas e as imagens enriqueceram a linguagem simbólica;
‑ a ironia e a sátira foram utilizadas como método para criticar o regime;
‑ o estilo simples, a rima, o ritmo e as repetições contribuíram para que as mensagens fossem mais facilmente transmitidas e memorizadas e servissem de impulso mobilizador, conduzindo à ação;
‑ a utilização da quadra tornou mais permeável a forma de cantar e de divulgar aspetos essenciais, fazendo com que estes ficassem mais acessíveis;
‑ os jogos de paralelismo, a técnica do leixa-pren (repetição do último verso ou de algumas palavras do último verso de uma estrofe no primeiro verso da estrofe seguinte), a imitação da forma de cantar dos coros alentejanos criaram unidade, melodia e a vontade de cantar;
Outros recursos utilizados: adjetivação, personificação, antítese, enumeração, interrogação retórica, sinédoque, aliteração, eufemismo, perífrase, exclamação, apóstrofe e anástrofe.
O público ouviu as canções de intervenção, cantou-as em reuniões e em convívios, o que acabou por contribuir para a rápida divulgação do seu conteúdo e da sua mensagem.
Os temas acabaram por ajudar a reconhecer o que era cantado, tornaram-se essenciais e proporcionaram a adesão do público. Apelaram à luta, contra os males da Situação – os Vampiros, a guerra colonial (Menina dos Olhos Tristes) e o Inverno duradouro do regime (Qualquer dia) –, à unidade necessária (Venham mais cinco), à procura de um libertador e da libertação (Canto Moço) e à celebração da vitória de um povo livre (Grândola, Vila Morena).
Zeca Afonso, ao utilizar uma temática ligada à realidade social do seu tempo, teve em vista: apelar à unidade; criticar a questão colonial; divulgar flagelos sociais (as mortes provocadas pelo regime e pela guerra colonial, os desertores, a emigração clandestina, a pobreza), consciencializar as pessoas sobre a situação social, económica e política que se vivia no país; dar esperança e encorajar; agitar as pessoas, levando-as a refletir sobre a sua passividade e convidando-as a tomar a iniciativa; apelar à mudança.
“A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
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► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/13/qualquer-dia.aspx]
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