segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Ei-los que partem


O visitante sai, saiu, virá um dia

                 Joaquim Manuel Magalhães, Vestígios.




SENHORA DOS PASSANTES

Vou partir, direi, disse.
Outrora saí, fá-lo-ei de novo.

Senhora da partida
senhora da chegada
fazei tocar o brilho da calçada
e não o inútil jogo da distância.

José Maria de Aguiar Carreiro, Chuva de Época
Ponta Delgada, Edição de autor, 2005.


De facto, nada aprendi sem que tenha partido, nem ensinei ninguém sem convidá-lo a deixar o ninho. Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à aldeia dos usuários, à cultura da língua, à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe, nada aprende. Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e referenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente com o universo que, no início, explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, pelo menos a tua explosão em mundos à parte. Tudo começa por este nada.
Michel Serres, Filosofia Mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, pp. 14-15






Ei-los que partem
novos e velhos
buscando a sorte
noutras paragens
noutras aragens
entre outros povos
ei-los que partem
velhos e novos

Ei-los que partem
de olhos molhados
coração triste
e a saca às costas
esperança em riste
sonhos dourados
ei-los que partem
de olhos molhados

Virão um dia 
ricos ou não
contando histórias
de lá de longe
onde o suor
se fez em pão
virão um dia
ou não



Manuel Freire






Domingos Rebelo, Os Emigrantes, 1926.
Óleo sobre tela, A 235 x L 295 cm

Apesar de "Os Emigrantes", de 1926, se integrar no ideário do Regionalismo, apresentado pelo Padre Ernesto Ferreira, no seu opúsculo intitulado Regresso à Terra, através do qual se valorizava a importância dos usos, costumes e tradições populares na definição de culturas distintas, esta pintura tem a particularidade de ser a representação de um fenómeno social, apresentando-se como aglutinadora de um conceito de "Açorianidade", analisado na época pelo investigador Luís Ribeiro. Para reforçar a temática central, o artista regista nesta obra o trajo popular e os elementos identificativos do local de partida, nomeadamente o antigo cais da Alfândega, antes da construção da Avenida Marginal de Ponta Delgada, juntando nesta composição elementos culturais de raízes profundas, como a viola da terra e o registo do Senhor Santo Cristo.
A figura de chapéu, que se encontra do lado esquerdo, denota a consciência social do artista.
MTO, http://museucarlosmachado.azores.gov.pt/osemigrantes


*


LINHAS PARA UM RETRATO DE POETA QUANDO JOVEM

Este poema é das saudades e do sol-posto.
E da procissão do Senhor, de colchas nas varandas.
E de quando eu tinha as mãos postas
que a minha mãe veio e me pôs umas asas brancas.
E das horas gastas esperando o teu regresso.
E das idas clandestinas e do caminho andado.
E da janela, aberta para os muros, que enchia
de sombras as recordações do meu quarto.
Este poema é dos vidros partidos
pelas pedras que atirei aos meus amigos
nos combates havidos nas travessas.
E da chuva que caiu nas colchas das varandas.
E das mãos que vieram tirar-me as asas brancas.
E dos olhos de minha mãe, quando eu parti para longes terras...
Eduíno de Jesus


Saudade. Paulo Borges, P. Delgada, nov. 2017



FUTURO

Folha a folha revisito um álbum de retratos,

retratos que lembram o que de antemão sabia
– Dizem que mudei. Nem as paisagens
se recuperarão e os avós estão mortos;
as árvores não existem mais,
aquelas por detrás dos risos

Folha a folha imagens falam
o que não quero que falem. Nem sempre
escutamos o que é importante e essencial
– O futuro, esse retrato em falta no álbum.
Ou, o poema de amanhã,
que parecendo futuro é passado.

Ivo Machado, Quilómetro zero. V. N. Gaia, Exodus, 2008.



Tomaz Vieira, Os Regressantes, 1987


A pintura Os Regressantes, efetuada em 1987 por Tomaz Vieira, é uma «Homenagem aos Emigrantes de Domingos Rebelo», como o próprio artista registou. Cerca de sessenta anos depois da pintura original, Tomaz Vieira parte da composição de Os Emigrantes, de Domingos Rebelo (Versão de 1929, efetuada para o «Bureau de Turismo» de Ponta Delgada), e regista um fenómeno de aculturação. No catálogo da exposição A window on the Azores, refere-se que «em Os Regressantes as figuras apresentam uma atualização onde há símbolos da integração dos açorianos nos países para onde emigram. Esses símbolos estão na indumentária e na variedade de objetos identificáveis na composição. O facto de o «Registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres», de Os Emigrantes, ser substituído, em Os Regressantes, pela imagem da «Canadian National Tower», de Toronto, terá a ver com a evocação do relacionamento da sociedade açoriana com as imagens do progresso, em terras do Mundo Novo. As figuras de Os Regressantes mantêm a postura de Os Emigrantes, o que acentua o tratar-se da mesma gente. O autor da réplica compromete-se a dar uma resposta positiva ao clima de esperança que Domingos Rebelo imprime nas suas telas de concepção regionalista, nomeadamente ao drama contido em Os Emigrantes» (Exposição de Artistas Açorianos Contemporâneos, in A window on the Azares, Bermuda National Gallery, 1999, p. 16-17.)

MCTO, Museu Carlos Machado



*


ROSE ERA O NOME DE ROSA

A mãe disse não mais
não mais eu não mais tu filha
não mais nomes na pedra do cais
não mais o cortinado da ilha

não mais Rosa sejas Rose agora
não mais névoas roxos ais
não mais a sorte caipora
não mais a ilha não mais

Porém Rose o não mais não quis
e quis ver a ilha do não mais
o cortinado roxo infeliz
os nomes na pedra dos cais

Pegou em si e foi-se embora.
Não mais Rose. 

Rosa outra vez agora.
Vasco Pereira da Costa, My Californian Friends.
Gávea Brown, Palimage Editores, 1999.









Poderá também gostar de:

Simbologia de açorianidade na pintura de Domingos Rebelo e de Borba Vieira”, Gabriela Castro. In: Philosophica nº 36, Departamento de Filosofia da FLUL, 2010.

"Emigração, cultura e modo de ser açoriano", António Manuel B. Machado Pires, 1981.




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