Manuel Leal |
Os presuntivos constituintes
cognitivos no conteúdo da ideação da açorianidade de Vitorino Nemésio (1980)
foram elementos dinâmicos da identidade individual e do grupo.
O autor de Mau Tempo no Canal não
expressava apenas a sua perceção, mas o despertar da convergência arquipelágica
no discurso em que se tomou consciência do sentido latente de identidade do
povo açoriano. A literatura fez-se espelho da realidade que a precedeu. Depois,
foi Onésimo Teotónio Almeida que lhe deu voz na academia para além do espaço
insular.
A influência de Miguel Unamuno (2005)
teria decerto encaminhado Nemésio para a condição arquipelágica, com
importantes implicações históricas e existenciais. A açorianidade com Nemésio
assumiu-se como manifestação vaga e quiçá figurativa. Nominal na aparência, incubaria
uma ideia mais íntima e complexa, porém, que não era novel nem desconhecida no
espaço físico do arquipélago. Expressava na narrativa existencial da vivência
ilhoa uma comunidade quase imaginada naquela época, construída como uma
metáfora por conveniência.
E até, quiçá, insegurança em termos de
consequências políticas na ameaça sempre oculta e ubíqua do governo autoritário
a partir de 1933. Formou-a na investigação introspetiva do sentido de pertença
do indivíduo na sua sociedade.
Nemésio não podia experienciar a açorianidade
sem a diferenciação no contraste identitário com outra entidade em competição pelo
seu afeto e sentido de participação na sua essência. As identidades não se
adquirem nem tomam forma num vácuo. Não o fazia entre ilhas porque no seu
conjunto constituíam o todo inseparável do seu imaginário como um gestalt, o padrão comparativo. Ele deu nome
à açorianidade, como entidade afetiva e cultural, que depois tentaria
evidenciar, cautelosamente, para não ferir a personalidade prescrita do homem
açoriano, prostrado na peripeteia profunda do pathos lusíada. A decadência nacional manifestava-se
na corrupção do tecido político nacional, agitado pela descrença do período do
pós-guerra. A subalternização das Ilhas, omnipresente na sua história,
acentuara-se no desgaste da situação social e económica da gente açoriana, cuja
condição pesava na convergência solidária do Arquipélago.
As particularidades do momento
histórico promovem ou cerram a visão dos povos, como do indivíduo aos estímulos
do zeitgeist na dimensão geográfica do pensamento. A teoria do Grande
Homem, por outro lado, fez salvadores de pátrias exaustas e céticas da elevação
da pessoa na individualidade do esforço coletivo. Teria criado até Einstein no
domínio da ciência. Mas não se coaduna com a realidade biológica da espécie ou
da evolução cultural. Cada geração beneficia do produto do conhecimento das que
lhes precederam.
A cultura, como a define a ciência
social, assemelha-se ao curso de um rio em relação a um ponto estático nas
margens. A tecnologia do Grande Acelerador de Hadrões inaugurado na Suíça em
2008 teve a sua origem no conceito da organização da matéria de um filósofo
grego da antiguidade. No mesmo contexto, a narrativa existencial, como a
modernidade ou a ideia do progresso, desenvolve-se de maneira que cada instante
experiencial se diria uma fotografia na corrente múltipla de imagens distintas
que nos dão a ilusão de movimento.
Onésimo Teotónio Almeida (1989)
prosseguiu o trabalho de Vitorino Nemésio, fazendo coalescer no seu volume Açores,
Açorianos, Açorianidade as ideias que a ausência da casa materna e do rincão natal, talvez, lhe
trouxera enquanto residia, sucessivamente, na Terceira, onde frequentou o
seminário, depois Lisboa para se licenciar e por fim os Estados Unidos.
Neste país, na Universidade Brown,
obteve um mestrado e o doutorado e ingressou no quadro docente em que já
funcionava como adjunto.
Na análise académica, ao modo
intelectual de Unamuno, Onésimo deduz o papel do apego psicológico como
experiência individual. Mas deixa à associação cognitiva dos seus muitos leitores
a interpretação da individualização afetiva da açorianidade para além das
implicações históricas e literárias do processo evolucionário na convergência
das memórias em ideologia étnica.
Não deixa dúvidas, porém, de que a
vive na sua irredutibilidade afetiva, se aqui posso usar a expressão de Unamuno
(2005), sentindo-a na “carne da alma”.
A açorianidade não é, porém, de algum
modo, apenas a paisagem e naturalidade, um legado genético, uma tradição
religiosa, uma história, ou o processo de adaptação da cultura e da língua
portuguesas num quadro específico de configuração geográfica. A voz de avós, as
carícias da mãe, a reminiscência dos amigos.
E até um modo de pensar a existência
e de ser humano, como modo de socialização. É tudo isto, na realidade, mas
transcende o indivíduo no perfil de um povo com passado, presente e uma
promessa de futuro.
Há na afirmação de Onésimo de ser e
sentir-se açoriano um muro conceptual, contudo, que ele não ultrapassa para se
reter remoto, mas não alheio, à esterilidade política, quiçá, na definição da
condição trágica do povo açoriano.
Este “açorianus
maximus” na diáspora
e, parafraseando Camões em Os Lusíadas, no mundo que os açorianos criaram
na sua comunidade afetiva pluricontinental, conserva-se consistente nesta
posição de aparente neutralidade fora do sua aglutinação introspetiva. A redutibilidade
da açorianidade de Onésimo não poderia consumar-se sem consequências na sua aceção.
Teve, assim, de impor a si mesmo uma disciplina de conduta que obedece ao rigor
da ética do seu múnus universitário.
A açorianidade como identidade
define-o, mas não o separa nas polaridades entre as quais se constituiu. Neste
comportamento, o Onésimo único e multímodo de João Maurício Brás (2015) tem-se
mantido fiel à sua própria noção, há muitos anos declarada, de que não cabe à
diáspora a participação distante na minúcia e no confronto entreílhas de
interesses do processo político no arquipélago. Não é a ausência que o detém. A
distância física não o inibe de cruzar o Atlântico numa frequência que para
outros dá a impressão de que nunca dos Açores saiu.
No entanto, no seu trabalho de
divulgar e investigar a açorianidade revela-se uma aderência ideológica,
latente na identidade de que é talvez o seu mais alto expoente na transmissão ideacional.
Onésimo tornou-se numa referência obrigatória na temática da açorianidade pelo que
ele escreve e pelo que se diria subentender.
O paralelismo com Nemésio não pode
passar despercebido.
Manuel Leal, Diário
dos Açores, 2015-09-05.
Bibliografia:
Almeida, O.
T. (1989). Açores, Açorianos, Açorianidade -- um espaço cultural. Ponta Delgada: Signo.
Brás, J. M.
(2015). Onésimo, único e multímodo. Guimarães: Opera Omnia.
Unamuno, M. (2005). Tragic sense of life. (J. E.
Futch, Trad.) New York: Cosimo Classics.
Nemésio, V.
(1980). Mau tempo no canal: romance (ed. 6ª). Lisboa: Bertrand.
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