Alexandra Lucas Coelho |
1. Não
desci do comboio como Álvaro de Campos porque já não havia bilhetes. Tudo
esgotado: o comboio via Faro, o próximo barco, o polvo no barro, a sardinha
assada. O ex-pescador Ostílio acaba de bater o seu recorde de transferências de
Tavira Cidade/City para a Ilha/Island, uma vida nas redes, outra no ferry
boat, a que ele chama reforma. Tem cara disso, engelhada de sol, e um nome
que eu nunca tinha ouvido, pelo menos no masculino.
2. Tudo
é velho onde fui novo, achou Campos, descendo do comboio aos 41 anos. Seis
anos mais à frente, digo de outra forma, tudo é novo onde sou velha. Certo que
Tavira não é a vila da minha infância, mas em Lisboa parece-me o mesmo (e tudo
também esgotado, do cacilheiro à calçada). Já sei, é melhor que morrer de fome,
e até me dizem que este ano o Algarve não está assim tão cheio.
3. Na
verdade, não sei, só vi o pedaço de Faro a Tavira, e da última vez que tinha
estado no Algarve ainda não se vendiam garrafas de meio litro de azeite a vinte
euros, mesmo comprado no olival de origem, porque é um dos melhores do mundo,
ao mesmo tempo que a pracinha da igreja de Tavira oferece uma variedade de
aproximadamente vinte e três restaurantes indianos. Hoje, em Tavira Cidade/City
os vendedores das lojas dos trezentos, que já não são dos trezentos, nasceram
no Rajastão, usam turbante e vendem sardinhas de loiça. Entretanto, Álvaro de
Campos, além de rua e biblioteca, é uma rota cultural incluindo a varanda onde
escrevo. Ainda não localizei o Álvaro de Campos Coffee Shop & Restaurant,
mas as críticas no Tripadviser contêm frases como I love Álvaro de
Campos for the best vegetable soup in the world. Ah, amado ao nível do
estômago, processado em forma de legume, um Álvaro de Campos enfim concreto,
orgânico, vivo, depois de tanta vontade de tudo, o gatuno de estrada, as
sombras na viela, as prostitutas, todos beijados na boca, pelo menos um
momento,
(Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
estalagem, calabouço número qualquer cousa
(aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet,
portaló,
ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão,
feira, arraial,
meu coração postigo,
meu coração encomenda,
meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,
eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração)
4. Aquela
casa das tias velhas que lhe liam a Nau Catrineta? Podia ser a
minha morada em Tavira. A primeira vez que subi as escadas achei que era a
pensão das Recordações da Casa Amarela, e a todo o momento o perfil
de João César Monteiro seria projectado pelo sol da tarde, cigarrinho
bruxuleando. Agora, ao fim de algumas noites, acho que afinal podia ser a casa
das tias velhas de Álvaro de Campos, tiquetaque do relógio e tudo. Afinal ou
também, porque a sombra de Campos seria quase a de César Monteiro, magro,
curvado, cigarrinho bruxuleando, monóculo em vez de óculos. De resto, rangidos,
estalidos, portas de bandeira, maçanetas de loiça, chão de tábua, mosaico.
5. Mas
saindo colina acima, pela noite, parece-me que a casa de Campos teria de ser
mais fidalga, talvez esta, com janelas em arco, ou aquela de sacada, palavra
que Fernando Pessoa tanto usou, e agora, como tantas, se usa sobretudo no
Brasil, duplicada em sentido (varanda, ou a percepção que de repente sai).
6. Mais
fidalga porquê? Porque fidalgo e judeu foi o passado que Pessoa deu ao seu
duplo dois centímetros mais alto, engenheiro (in)capaz de toda a sensação.
Então, em certo dia de 1930, Álvaro de Campos desembarca de volta a este
horizonte de quintal e praia, e a vila da infância é afinal uma cidade
estrangeira, distância entre tudo o que era, tudo o que não será, mais aguda
por nela ver a sua própria cara.
7. Vem,
claro, no lugar do próprio Pessoa, é o seu sensor avançado, em busca dos
antepassados de Tavira. E, reparo agora, a travessa que todas as manhãs me leva
de casa ao rio Gilão chama-se Jacques Pessoa. Não vou pesquisar, fica no
talvez, quem sabe, um tetravô. Em Tavira podemos sempre recuar aos marcos da
nacionalidade, por exemplo, chegando ao fim da ponte romana lá está, do lado
direito, a placa em memória dos valorosos moradores de Tavira e de Faro que na
crise política de 1383 a 1385 defenderam nesta ponte a causa de D. João I,
mestre de Avis e nela proclamaram a vitória decisiva do Algarve na luta pela
independência de Portugal.
8. Já
neste Verão de 2015, a nacionalidade está mais para cerveja artesanal, flor de
sal, chamando à vida um figo em várias línguas. Qualquer
holandês-alemão-italiano-francês-espanhol dirá, de nariz no ar, em busca de
casa para restaurar, como em Portugal se come bem, derivado ao clima mas não
só, além, claro, da paz que não há nas duas margens do Mediterrâneo, a que vê
os barcos partirem e a que vê os mortos a bordo. Descendo pela Via do Infante,
invisível, sozinho, Álvaro de Campos beijá-los-ia a todos na boca, coração rendez-vous da
humanidade, pulmões cheios de água.
Alexandra Lucas Coelho, revista 2, Público, 2015-09-06
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/alvaro-de-campos-beijaos-a-todos-na-boca-1706786?frm=pop
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