terça-feira, 8 de setembro de 2015

Álvaro de Campos beija-os a todos na boca (Alexandra Lucas Coelho)

Alexandra Lucas Coelho
1. Não desci do comboio como Álvaro de Campos porque já não havia bilhetes. Tudo esgotado: o comboio via Faro, o próximo barco, o polvo no barro, a sardinha assada. O ex-pescador Ostílio acaba de bater o seu recorde de transferências de Tavira Cidade/City para a Ilha/Island, uma vida nas redes, outra no ferry boat, a que ele chama reforma. Tem cara disso, engelhada de sol, e um nome que eu nunca tinha ouvido, pelo menos no masculino.
2. Tudo é velho onde fui novo, achou Campos, descendo do comboio aos 41 anos. Seis anos mais à frente, digo de outra forma, tudo é novo onde sou velha. Certo que Tavira não é a vila da minha infância, mas em Lisboa parece-me o mesmo (e tudo também esgotado, do cacilheiro à calçada). Já sei, é melhor que morrer de fome, e até me dizem que este ano o Algarve não está assim tão cheio.
3. Na verdade, não sei, só vi o pedaço de Faro a Tavira, e da última vez que tinha estado no Algarve ainda não se vendiam garrafas de meio litro de azeite a vinte euros, mesmo comprado no olival de origem, porque é um dos melhores do mundo, ao mesmo tempo que a pracinha da igreja de Tavira oferece uma variedade de aproximadamente vinte e três restaurantes indianos. Hoje, em Tavira Cidade/City os vendedores das lojas dos trezentos, que já não são dos trezentos, nasceram no Rajastão, usam turbante e vendem sardinhas de loiça. Entretanto, Álvaro de Campos, além de rua e biblioteca, é uma rota cultural incluindo a varanda onde escrevo. Ainda não localizei o Álvaro de Campos Coffee Shop & Restaurant, mas as críticas no Tripadviser contêm frases como I love Álvaro de Campos for the best vegetable soup in the world. Ah, amado ao nível do estômago, processado em forma de legume, um Álvaro de Campos enfim concreto, orgânico, vivo, depois de tanta vontade de tudo, o gatuno de estrada, as sombras na viela, as prostitutas, todos beijados na boca, pelo menos um momento,
(Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
estalagem, calabouço número qualquer cousa
(aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló,
ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
meu coração postigo,
meu coração encomenda,
meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,
eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração)

4. Aquela casa das tias velhas que lhe liam a Nau Catrineta? Podia ser a minha morada em Tavira. A primeira vez que subi as escadas achei que era a pensão das Recordações da Casa Amarela, e a todo o momento o perfil de João César Monteiro seria projectado pelo sol da tarde, cigarrinho bruxuleando. Agora, ao fim de algumas noites, acho que afinal podia ser a casa das tias velhas de Álvaro de Campos, tiquetaque do relógio e tudo. Afinal ou também, porque a sombra de Campos seria quase a de César Monteiro, magro, curvado, cigarrinho bruxuleando, monóculo em vez de óculos. De resto, rangidos, estalidos, portas de bandeira, maçanetas de loiça, chão de tábua, mosaico.
5. Mas saindo colina acima, pela noite, parece-me que a casa de Campos teria de ser mais fidalga, talvez esta, com janelas em arco, ou aquela de sacada, palavra que Fernando Pessoa tanto usou, e agora, como tantas, se usa sobretudo no Brasil, duplicada em sentido (varanda, ou a percepção que de repente sai).
6. Mais fidalga porquê? Porque fidalgo e judeu foi o passado que Pessoa deu ao seu duplo dois centímetros mais alto, engenheiro (in)capaz de toda a sensação. Então, em certo dia de 1930, Álvaro de Campos desembarca de volta a este horizonte de quintal e praia, e a vila da infância é afinal uma cidade estrangeira, distância entre tudo o que era, tudo o que não será, mais aguda por nela ver a sua própria cara.
7. Vem, claro, no lugar do próprio Pessoa, é o seu sensor avançado, em busca dos antepassados de Tavira. E, reparo agora, a travessa que todas as manhãs me leva de casa ao rio Gilão chama-se Jacques Pessoa. Não vou pesquisar, fica no talvez, quem sabe, um tetravô. Em Tavira podemos sempre recuar aos marcos da nacionalidade, por exemplo, chegando ao fim da ponte romana lá está, do lado direito, a placa em memória dos valorosos moradores de Tavira e de Faro que na crise política de 1383 a 1385 defenderam nesta ponte a causa de D. João I, mestre de Avis e nela proclamaram a vitória decisiva do Algarve na luta pela independência de Portugal.
8. Já neste Verão de 2015, a nacionalidade está mais para cerveja artesanal, flor de sal, chamando à vida um figo em várias línguas. Qualquer holandês-alemão-italiano-francês-espanhol dirá, de nariz no ar, em busca de casa para restaurar, como em Portugal se come bem, derivado ao clima mas não só, além, claro, da paz que não há nas duas margens do Mediterrâneo, a que vê os barcos partirem e a que vê os mortos a bordo. Descendo pela Via do Infante, invisível, sozinho, Álvaro de Campos beijá-los-ia a todos na boca, coração rendez-vous da humanidade, pulmões cheios de água.
Alexandra Lucas Coelho, revista 2, Público, 2015-09-06
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/alvaro-de-campos-beijaos-a-todos-na-boca-1706786?frm=pop

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