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Se
eu pudesse havia de transformar as palavras
em clava. Havia de escrever rijamente. Cada palavra seca, irressonante, sem música. Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria. Para quê todo este artifício da composição sintác- tica e métrica? Para quê o arredondado linguístico? Gostava de atirar palavras. Rápidas, secas e bárbaras, pedradas! Sentidos próprios em tudo. Amo? Amo ou não amo. Vejo, admiro, desejo? Ou sim ou não. E, como isto, continuando. E gostava para as infinitamente delicadas coisas do espírito… Quais, mas quais? Gostava, em oposição com a braveza do jogo da pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas… Gostava de escrever com um fio de água. Um fio que nada traçasse. Fino e sem cor, medroso. Ó infinitamente delicadas coisas do espírito! Amor que se não tem, se julga ter. Desejo dispersivo. Vagos sofrimentos. Ideias sem contorno. Apreços e gostos fugitivos. Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre vós passaria, transparentemente? Ou vos seguiria humilde e tranquilo? |
NOTAS:
Clava (v.2): pau curto terminado em
pera; cacete; moca.
Dispersivo (v. 26): que tem dificuldade
em sem concentrar.
AUDIÇÃO DO POEMA: Produção e voz de Luís Gaspar, Estúdio Raposa - audiocast, 26-08-2013, http://www.estudioraposa.com/index.php/26/08/2013/irene-lisboa-escrever
LEITURA ORIENTADA:
O sujeito poético começa por formular o desejo de transformar as
palavras em armas (paus e pedras), usando-as (atirando-as) sem artifícios, isto
é, deseja tornar o
significado das palavras o mais simples e direto possível, sem artifícios ou
musicalidade. Cada palavra ficaria, assim, com um sentido claro e preciso. Se
as palavras ficarem despidas de significados obscuros, complexos, é fácil
responder à pergunta lançada pelo sujeito poético sobre o amor: “Amo?” – ou se
ama ou não se ama.
Ainda na primeira estrofe, o sujeito poético duvida da necessidade de
respeitar, na escrita, alguns recursos próprios da literatura, como a sintaxe
artificial (“artifício”, v. 6), a métrica, o “arredondamento linguístico” (v. 8)
e o uso das palavras em sentido figurado (“Sentidos próprios em tudo”, v. 11). Aliás,
na própria construção deste poema de Irene Lisboa também se abandonaram outras
convenções versificatórias: ausência de rima e estrofes de tamanhos diferentes.
Na segunda
estrofe, o eu lírico manifesta o desejo de utilizar uma outra forma de escrever
reservada para as “infinitamente delicadas coisas / do espírito” (vv. 16-17).
Nessa outra escrita utilizaria “um fio de água” (v. 21) que “nada traçasse. /
Fino e sem cor, medroso” (vv. 23-23) - esta metáfora significa escrever de uma
forma leve, menos marcante, menos agressiva. As “delicadas coisas do espírito” de
que o sujeito poético gostaria de escrever surgem enumeradas na terceira
estrofe: o amor, o desejo, os sofrimentos, as ideias, os apreços e os gostos
(cf. vv. 29 a 33). Contudo, o sujeito poético tem dificuldade em definir essas
“coisas do espírito” (“Quais? Mas quais?”, v. 18) pelo facto de serem vagas,
imprecisas, fugidias:
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços
e gostos fugitivos.
As perguntas
finais (vv. 30-32) revelam a incerteza relativa ao ato de escrever: como o sujeito
poético gostaria de escrever as “infinitamente delicadas coisas do espírito”
(v. 24) com um fio de água, ele não está certo se as conseguiria registar com o
fio a passar por cima delas, ou se o fio as teria de seguir, ficando, também
ele, impreciso e vago.
Adaptado de: Conto Contigo 9, Conceição Monteiro et
alii. Areal Editores, 2013; Diálogos 9, Fernanda
Costa et alii. Porto Editora, 2013; Letras
& Companhia 9, Carla Marques e Inês Silva. Edições ASA, 2013.
QUESTIONÁRIO:
1. Caracteriza o tipo de
escrita que o sujeito poético defende na primeira estrofe.
2. Identifica os recursos
expressivos que o sujeito poético utiliza para caracterizar esse tipo de
escrita.
3. Na segunda estrofe, o
sujeito poético apresenta outro tipo de escrita para outras realidades.
3.1. Justifica a dificuldade em
as identificar.
3.2. Transcreve a enumeração
através da qual as identifica.
4. Descreve como se propõe a
abordar essas e outras realidades.
4.1. Explica como justifica essa abordagem.
Fonte: Projeto
#ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre o poema “Escrever”, de
Irene Lisboa, disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano,
2021-05-24
Professora Tereza Cadete Sampainho, #EstudoEmCasa, 2021 |
Poderá também gostar:
“Cai
um pássaro do ar, devagar, muito devagar”, de Irene Lisboa. In Guia
de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário
Recorrente; Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do
Ensino Secundário, 1997. Apud “Lisboa”
in Folha
de Poesia,
José Carreiro, 2013-07-04.
“Irene Lisboa, Monotonia” in Folha de Poesia, José
Carreiro, 2022-06-30.
Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, Irene Lisboa. Lisboa, Portugália
Editora, 1955.
[Última atualização em 2022-06-30]
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