quinta-feira, 30 de junho de 2022

Monotonia, Irene Lisboa

Vittorio Matteo Corcos, Sonhos, 1896

 

Monotonia

 

Começar, recomeçar, interminamente1 repetir um

monótono romance, o romance da minha vida.

Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes,

insistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver...

Andar como os dementes pelos cantos a repisar

o que já ninguém quer ouvir.

Levar o meu desprecioso tempo à deriva.

Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer

esperança, por desfastio2.

Pôr a nu uma miséria comum e conhecida,

chãmente3, serenamente, indiferente à beleza dos temas

e das conclusões.

Monotonamente, monotonamente.

 

Monotonia. Arte, vida...

Não serei ainda eu que te erigirei4 o merecido

altar.

Que te manejarei5 hábil e serena.

Monotonia! Gume6 frio, acerado7, tenaz8, eloquente.

Sino de poucos tons, impressionante.

Mas se te descobri não te vou renegar.

Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,

a pobreza e a constância.

Monotonia, torna-me desinteressada.

 

LISBOA, Irene – "Monotonia". In Um Dia e Outro Dia… Outono Havias de Vir: Volume I, Poesia I. Editorial Presença, 1991.

 

___________

1 Interminamente: interminavelmente.

2 Por desfastio: para evitar o tédio.

3 Chãmente: singelamente, de modo simples, franco.

4 Erigirei: levantarei, erguerei.

5 Manejarei: mover com a mão, manobrar.

6 Gume: lado do fio de um objeto cortante.

7 Acerado: que corta, afiado; mordaz (no sentido figurado).

8 Tenaz: resistente; persistente (no sentido figurado).

 


 


Questionário sobre a leitura do poema “Monotonia”, de Irene Lisboa:

1. Identifica o “romance” que o sujeito poético descreve.

1.1. Indica os adjetivos que caracterizam o romance e as suas palavras.

1.2. Destaca as características do “viver” transposto nesse romance.

1.3. Identifica a comparação que sugere o desinteresse de tal romance.

2. Atenta, agora, nos assuntos que constituem a “matéria” dessa escrita.

2.1. Enumera-os.

2.1.1. É essa matéria exclusiva da experiência pessoal do sujeito poético? Justifica.

3. Identifica o verso em que o sujeito poético insinua que nem a arte escapa à monotonia da vida.

4. A monotonia é sugerida também pelos recursos expressivos utilizados.

4.1. Refere as metáforas associadas à monotonia e explicita o seu valor.

4.2. Identifica outros recursos expressivos que sugiram o tom monótono. Fundamenta a tua resposta com exemplos textuais.

5. O poema começa num tom desolador, mas termina com uma descoberta.

5.1. Quais são, pois, as dádivas da monotonia?

5.2. Na tua opinião, por que motivo o sujeito poético suplica à monotonia que o torne desinteressado?

6. Relaciona o título do poema com o título da obra a que pertence.

 

(Para)textos 9: português, 9º ano,Ana Miguel de Paiva [et al.]; rev. cient. Maria Antónia Coutinho. - 1ª ed. - Porto: Porto Editora, 2013.

Respostas esperadas:

1. Trata-se do romance da sua vida.

1.1. Esse romance caracteriza-se como “monótono”, sendo as suas palavras “iguais”, “inalteráveis”, “semelhantes”.

1.2. O “viver” é marcado pelo “cansaço” e pela “pobreza”.

1.3. “Andar como os dementes pelos cantos a repisar/o que já ninguém quer ouvir” (vv. 5-6).

2.1. Compõem a “matéria” da escrita o “desprecioso tempo à deriva” do sujeito poético, o seu queixar-se, castigar e lamentar, exercidos “sem qualquer esperança”, meramente “por desfastio”.

2.1.1. Essa matéria não é exclusiva do sujeito poético, pois trata-se de uma miséria “comum e conhecida”, logo extensiva aos outros, ao ser humano em geral.

3. “Monotonia. Arte, vida…” (v. 14).

4.1. A metáfora está presente em “Gume frio, acerado, tenaz, eloquente. / Sino de poucos tons, impressionante.“ (vv. 18-19) – nestes versos, a monotonia é associada ao “Gume” e ao “sino” (e às respetivas características). Ao ser associada ao “gume” de uma espada “frio, acerado, tenaz, eloquente”, a monotonia é comparada a algo que causa sofrimento, incómodo, perturbador. O mesmo carácter perturbador é sugerido pela metáfora do “sino” – já que este, embora de poucos tons, como convém à monotonia, é “impressionante”, marca, perturba.

4.2. Os recursos expressivos são a aliteração e a assonância de sons nasais (“interminamente repetir um/monótono romance, o romance da minha vida”, vv. 1-2), a enumeração (“Queixar-me, castigar e lamentar”, v. 8), o assíndeto (“Começar, recomeçar, interminamente repetir”, v. 1), a repetição (“Monotonamente, monotonamente.”, v. 13) e a pontuação, nomeadamente as reticências, que marcam a suspensão do pensamento (vv. 3-4) e o ponto final a substituir a vírgula (v. 14). Esses recursos expressivos, pelo seu carácter repetitivo, marcam uma cadência melancólica, que transmite a ideia de monotonia expressa no poema.

5.1. Segundo o sujeito poético, a monotonia proporcionou-lhe “a arte da verdade”, a “pobreza” e “a constância”. Esses dons têm uma aceção positiva – sendo conotados com a autenticidade, a ausência de importância dada aos bens materiais e a perseverança/firmeza.

5.2. Resposta pessoal.

Sugestão de resposta:

Sendo a monotonia a instância a que o sujeito poético apela, não admira que este peça o desinteresse, a indiferença perante o que ocorre, perante todo o tipo de entusiasmos…

6. O poema “Monotonia” adapta-se ao título da obra Um dia e outro dia, pois remete para um quotidiano cinzento, monótono, habitual.

     Poderá também gostar:

 

  • “Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar”, de Irene Lisboa. In Guia de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário Recorrente; Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário, 1997. Apud “Lisboa” in Folha de Poesia, José Carreiro, 2013-07-04.

 

 




CARREIRO, José. “Monotonia, Irene Lisboa”. Portugal, Folha de Poesia, 30-06-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/irene-lisboa-monotonia.html



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