No futuro
iremos parar durante
um minuto todos os dias,
interromper o que estivermos
a fazer, de repente, a meio
de uma palavra, de uma passada,
de uma garfada. E, perfeitamente
imóveis, veremos que o mundo
é uma cruz para quem o carrega
e um berlinde para quem o empurra.
Depois é só escolher.
iremos parar durante
um minuto todos os dias,
interromper o que estivermos
a fazer, de repente, a meio
de uma palavra, de uma passada,
de uma garfada. E, perfeitamente
imóveis, veremos que o mundo
é uma cruz para quem o carrega
e um berlinde para quem o empurra.
Depois é só escolher.
Afonso Cruz, Enciclopédia
da Estória Universal. Livro 1 - Recolha de Alexandria.
Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012
A lebre, a tartaruga
e uma flor no cabelo
Ezequiel Vala nasceu em 1905 e haveria de,
em 1928, participar na maratona das Olimpíadas de Amesterdão. Foi, para o
atleta e para o seu treinador, o momento mais importante das suas vidas, mas
por motivos radicalmente opostos.
Ezequiel Vala era um homem sonhador a quem
sempre deram todas as condições para competir e vencer. Era um atleta talentoso
e inteligente, de pernas finas e compridas, mas também era um grande apaixonado
por flores. Num dia de competição, em 1924, antes de correr, contou ao seu
treinador que havia, na noite anterior, semeado uma flor (amaryllis/hippeastrum)
no sonho de uma bela rapariga da Valáquia1, descendente de
ciganos. O treinador riu-se dele, mas Vala assegurava que havia realmente
semeado, com as suas próprias mãos – ao ponto de ficar com terra nas unhas –,
uma flor vermelha no sonho de uma mulher desconhecida. Foi, nessa mesma altura,
criticado pela falta de sobriedade com que encarava a vida e o desporto, mas
cortou a meta em primeiro, ganhando com a facilidade que lhe era habitual, e
subiu ao pódio, demonstrando que os seus desvarios oníricos não afetavam a sua
eficácia competitiva. Apesar da vitória – e enquanto recebia a medalha de ouro
– exibia um olhar melancólico e torcia o nariz como um coelho, pois ainda sentia,
vindo das suas mãos, o cheiro da terra do sonho da rapariga valáquia. Muitas
vezes, como a lebre da fábula de Esopo, Vala entretinha-se com outras coisas,
perdendo tempo, mas sem nunca perder a corrida. O treinador admoestava-o, mas
Ezequiel Vala não dava qualquer importância aos avisos. O treinador contou-lhe
a história da lebre e sublinhou o seu ponto de vista com a célebre corrida de
Andarín Carvajal:
– Carvajal – disse o treinador – era um
atleta, um cubano pobre que decidiu mendigar dinheiro pelas ruas de Havana para
poder viajar até St. Louis, local onde se realizariam as Olimpíadas daquele
ano, e poder assim participar na maratona. Conseguiu o suficiente, mas, ao chegar
a Nova Orleães, perdeu tudo o que possuía com mulheres e jogo e coisas dessas
que fazem um homem transformar-se numa lebre de Esopo. Mas não desistiu e foi a
pé, caminhou mais de mil quilómetros até chegar a St. Louis. Chegou com a roupa
que usava normalmente, muito pouco adequada para competir, calças compridas e
botas de carteiro. Cortou as calças para as transformar em calções e, sem qualquer
surpresa, pois era um excelente atleta, cedo liderou a prova. No entanto,
porque não comia há cerca de dois dias, estava faminto. Então parou para comer
maçãs. Por algum motivo, ficou muito maldisposto e teve de parar inúmeras vezes
por causa disso, terminando a corrida em quarto. Por isso, Ezequiel, é muito
importante que tu, já que tens tendência a perder-te pelo caminho, agradeças
pelo menos o facto de não seres pobre e de não passares fome e de não correres com
botas de carteiro e, por isso, teres outras possibilidades de vencer. Algo que,
por exemplo, Andarín Carvajal não teve.
Ezequiel Vala encolheu os ombros com um
sorriso. No dia da sua prova nas Olimpíadas, Vala era o favorito e demonstrou-o
logo nos primeiros quilómetros, ganhando um avanço impressionante sobre os seus
adversários. Mas a meio da prova parou por causa de uma lychnis coronaria e
sentou-se no campo. Retomou a corrida quando viu Boughera El Ouafi, corredor
francês, aproximar-se. Depressa voltou a ganhar terreno, mas acabou por parar
mais uma vez quando viu um circo, bastante pobre, que exibia o seu espetáculo
na praça de uma aldeia. Reteve-o uma amaryllis/hippeastrum que estava
pendurada no cabelo de uma equilibrista. Ficou parado a olhar para ela, meio
perdido, enquanto Boughera El Ouafi passava por ele. E continuava ali, parado,
enquanto o chileno Manuel Plaza e o finlandês Martti Marttelin atravessavam a
praça à procura da vitória.
"A lebre, a tartaruga e uma flor no cabelo",
ilustração de Afonso Cruz (in P8, Texto Editora, 2012, p. 87)
|
Esmeralda Rusu mantinha-se em equilíbrio na
corda, enquanto Vala caía do primeiro lugar para o último. A equilibrista,
quando o viu na praça parado com os braços ao longo do corpo, desceu e
aproximou-se agradecendo-lhe a flor que trazia no cabelo. Ezequiel Vala nunca
chegou à meta e, na verdade, nunca mais voltou a competir. Disse aos jornais: a
nossa meta, muitas vezes, não está onde pensamos. Pode estar à beira da
estrada, pode estar a meio do caminho, no meio de uma praça, e seria um
desperdício se passássemos por ela a correr, passássemos ao seu lado sem a
vermos. E assim continuaríamos a correr para lado nenhum, para uma ilusão. Há
uma grande virtude na lebre: ela sabia viver. Nessa altura, Ezequiel Vala não
ficou célebre por ter ganhado as Olimpíadas, mas por, na cabeça de todos,
tê-las perdido infantilmente. Contudo, Vala – que se tornou um equilibrista
medíocre e um botânico célebre – era de outra opinião: fora ele o grande vencedor.
E, aos oitenta e quatro anos, em 1989, no
momento da sua morte, haveria de dizer isso mesmo a Esmeralda – também ela
velha, mas ainda capaz de, com aquela idade, caminhar em cima de uma corda com
uma flor no cabelo:
– Perdi a maratona das Olimpíadas de
Amesterdão, mas sem dúvida nenhuma venci a corrida.
E morreu com o mesmo sorriso que fazia
quando ouvia os conselhos do seu treinador.
Afonso Cruz
P8, Lisboa, Texto Editora, 2012 (1.ª ed.)
Enciclopédia da Estória Universal - Arquivos de Dresner, Editorial Alfaguara, fevereiro de 2013
____________Enciclopédia da Estória Universal - Arquivos de Dresner, Editorial Alfaguara, fevereiro de 2013
Valáquia:
província da Roménia,
situada a norte do rio Danúbio e a sul dos Cárpatos.
Enciclopédia da Estória Universal, Afonso Cruz. Quetzal Editores, 09-2009 |
«Enciclopédia da Estória Universal, que recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco (Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão/APE), é o título de uma obra singular
que Afonso Cruz (1971) publicou em 2009, e que iniciou uma série a que o autor juntou já dois volumes, subintitulados Recolha de Alexandria (2012) e Arquivos de Dresner
(2013).
O título, através do lexema “estória”, marca imediatamente o caráter especial
desta “enciclopédia”, que escapa a qualquer definição
única de género do discurso.
Carlos Nogueira, no artigo “Literatura e conhecimento: Enciclopédia da Estória Universal,
de Afonso Cruz” procura demonstrar de que modo o discurso literário desta Enciclopédia se alimenta de discursos (da filosofia, da história, da antropologia, etc.) que visam quer o conhecimento do ser humano e do mundo, quer a educação para a cidadania. Estes volumes, de conteúdo interdisciplinar, apelam para a curiosidade e a sensibilidade, valorizam a responsabilidade individual e coletiva, desenvolvem a capacidade de ler o mundo através de linguagens múltiplas
e alternativas. Correspondendo aos princípios
oficiais que regem a organização da prática pedagógica nas instituições de ensino básico, secundário e superior, esta Enciclopédia pode ser uma boa fonte de leitura
e reflexão em qualquer instituição de ensino.»
Enciclopédia da Estória Universal. Livro 1 - Recolha de Alexandria. Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012 |
Refletir através de pequenas estórias apresentadas como verdades enciclopédicas. Um projecto que requer todo um trabalho de construção, uma estrutura sólida que assenta na criatividade e na imaginação. Um trabalho genial. Possivelmente o livro do Afonso Cruz que mais gostei de ler até agora.
Mais do que saber escrever, mais do que ter talento para criar palcos, personagens e argumentos, impressiona-me o criar de mundos. E Afonso Cruz como que criou o seu próprio mundo, com todas as explicações de coisas em que nunca pensámos, ou que já pensámos mas nunca desta forma. Quem se iria lembrar de medir a sorte ou os pecados considerando-as medições cientificamente comprovadas? É como chegar à verdade através de um processo de alucinação, com entrar num túnel onde se olha para tudo de outra forma e se descobrem coisas fantásticas.
Deixei-me levar por uma leitura excecional, que me surpreendeu a cada página e me levou a reflectir sobre temas sérios através de exemplos quase infantis. Uma brincadeira que quero repetir, um livro que já é para mim um marco e que prevejo reler infinitas vezes.
Um conjunto de pensamentos e fragmentos muitas vezes contraditórios e cujo sentido só nos atinge umas páginas mais à frente; um exercício extraordinário para as cabeças que, cansadas de rotinas, procuram algo diferente dos dias (quase) todos iguais. Pois que viver numa era em que se produz e vende tudo tende a deixar o cérebro demasiado tempo em descanso.
Márcia Balsas
https://rodadoslivros.wordpress.com/2013/12/07/enciclopedia-da-estoria-universal-recolha-de-alexandria-afonso-cruz/
Enciclopédia da Estória Universal - Livro 2: Arquivos de Dresner.
Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2013
|
Sinopse: Com reflexões e histórias ignoradas noutras enciclopédias, o volume Arquivos de Dresner aborda, entre outras coisas, o caso de Ezequiel Vala, um maratonista que perdeu uma prova, nas Olimpíadas de 1928, por causa de uma flor (amaryllis/hippeastrum); fala do explorador Gomez Bota, que provou que a Terra não é redonda e descobriu, numa das suas viagens, a entrada para o Inferno tal como Dante a havia descrito; e relata os hábitos dos índios Abokowo, que dão saltos quando dizem palavras como «amor» e «amizade».
Esta é mais uma viagem lúdica pela História, remisturando conceitos, teorias e opiniões e lançando nova luz sobre uma panóplia de assuntos, desde a filosofia à religião, desde o misticismo à ciência.
«Um artista é alguém que, em vez de pintar uma paisagem tal como ela é, faz com que as pessoas vejam a paisagem tal como ele a vê.» (Tsilia Kacev)
Alfaguara, 2013.
Afonso Cruz
Figueira da Foz, 1971.
Escritor, ilustrador e músico, que tem também trabalhado na área do cinema de animação. contradição humana, Os livros que devoraram o meu pai, O pintor debaixo do lava-loiças e Assim, mas sem ser assim são algumas das suas obras.
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