Leia os poemas «Quem a tem…» e «Noutros Lugares» de Jorge de Sena (1919-1978) e «Carta(s) a Jorge de Sena» de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004).
«QUEM A TEM…»
Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena (1956)
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NOUTROS LUGARES
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas de solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exatamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
e do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
Jorge
de Sena (1967)
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CARTA(S) A JORGE DE SENA
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de
tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia uma veemente emoção em tua grave
amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1989)
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Por forma a elaborar uma análise temática comparativa das composições poéticas acima transcritas apoie-se no plano esquemático da mesma análise a seguir facultado:
Tema das três composições: o exílio.
Leitura de superfície, em que os poemas são
interpretados individualmente:
Tema(s):
«Quem a tem…»
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Noutros Lugares
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Carta(s) a Jorge de Sena
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Liberdade
(verdade
livre).
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Desconcerto
da vida;
Mudança
provocada pela passagem inexorável do tempo;
Solidão.
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Saudade;
Morte/perda
de um amigo.
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Meditação dolorosa
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Pranto
por alguém; lamentação; queixume
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Leitura profunda, tendo por base a temática social
na poesia portuguesa da segunda metade do século XX:
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Tema: EXÍLIO – distância da
Pátria
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Lugar
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Nacionalidade
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Inserção
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(espaço disponível para ser ocupado)
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(grupo
social unido por uma comunhão de civilização, por uma tradição histórica e
por aspirações comuns)
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(adaptação)
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«Quem a tem…»
Eu vs. Eles
EU:
·
“saber/qual a cor da liberdade”;
·
reclama um(a) lugar/pátria:
- “desta
terra em que nasci”;
- “aqui”.
ELES:
·
“Trocam tudo em maldade”;
·
“escondam tudo”;
·
“me queiram cego e mudo”.
Noutros
Lugares
·
Experiência comum (1ª pessoa do plural).
·
Tentativa de explicação do desajustamento entre o
sujeito poético e os outros (vv. 38-39).
·
Busca/demarcação de um espaço/lugar:
- “lugar”,
“lugares”, “noutros lugares”, “lugares acabam”;
- “praias
desertas”.
Carta(s)
a Jorge de Sena
·
“emigrante” (Caracterização: sujeito dividido
entre a pátria que ama mas deixou e a terra em que está; uma espécie de exilado);
·
“legítimo português de novecentos”;
·
“Moraste[…] a tua
ausência”;
·
“estar”;
·
“voltarias”;
·
desejo de reaver um tempo perdido.
Leia, atentamente, o excerto da «Arte Poética III» e o poema «25 de Abril» de Sophia de Mello Breyner Andresen por forma a elaborar uma análise temática comparativa dos textos a seguir transcritos, considerando o seu grau de representatividade de uma época e a obediência ou não a algum sistema literário vigente.
A moral do poema não depende de nenhum código, de
nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é realidade
vivida, integra-se no tempo vivido.
Sophia de Mello
Breyner Andresen, Arte Poética III, 1964
25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner
Andresen, O Nome das Coisas, 1974
*
Cenário de resposta:
Plano esquemático da análise temática comparativa de dois textos
contemporâneos de temática social / comprometida.
Na elaboração da análise temática
comparativa dever-se-á ter em conta três aspetos:
1. Análise do excerto da «Arte Poética III» e do
poema «25 de Abril» de Sophia de Mello Breyner:
«Arte Poética III»
|
«25 de Abril»
|
Identificação
do tema: liberdade de escrita.
Levantamento
de campos léxico-semânticos e análise dos mesmos:
-
comunhão da
poesia com a realidade vivida;
-
a poesia é
uma moral, uma busca de justiça;
-
independência
da poesia face a qualquer código, lei ou programa que lhe seja exterior.
|
Identificação
do tema: liberdade.
Levantamento
de campos léxico-semânticos do poema e análise dos mesmos:
|
25 de Abril =
Þ
|
Þ
madrugada
esperada
Þ
dia
inicial
Þ
emergência
da obscuridade
Þ
liberdade
Þ
completude
|
2. Grau de representatividade de uma época:
«Arte Poética III»
|
«25 de Abril»
|
A
data de produção (1964) e, por extensão, a «Arte Poética III» supõem:
-
Vivência de
48 anos de ditadura: repressão, censura, limites à liberdade;
-
Movimento Neorrealista.
|
O
poema e a data de produção (1974) supõem:
-
Vivência de
48 anos de ditadura: repressão, censura, limites à liberdade;
-
Revolução;
-
Explosão de
liberdade.
|
3. Comparação temática comparativa dos dois textos,
tendo em conta o contexto histórico:
O poema «25 de Abril» comprova a convicção da poetisa enunciada na «Arte Poética III», porque:
- reflete uma experiência;
- tem como coordenada fundamental a busca de
justiça/ espera de liberdade;
- não está vinculada a nenhuma ordem externa,
. seja ela de índole literária (Neorrealismo)
- repare-se no acentuado grau de abstração das composições;
. ou de índole política (Fascismo) - a
proferição/ escrita/ publicação da «Arte
Poética III» consubstancia (e prova) o próprio enunciado.
TEXTOS DE APOIO SOBRE A POESIA DE EXÍLIO DE JORGE DE SENA
O último período do
exílio de Jorge de Sena estende-se de sua chegada aos Estados Unidos,
em 1965, até seu falecimento no ano de 1978 e, poeticamente, põe à mostra o
esfacelamento da relação do escritor com a sua pátria, a descrença nos seus
conterrâneos e no processo de redemocratização de Portugal. É também um
período de profundas transformações no cenário político de seu país. Salazar
retira-se definitivamente do controle português em 1968, deixando para
Marcelo Caetano a difícil missão de comandar uma nação à beira do colapso
social e propondo uma certa “abertura” política, como última tentativa de
manutenção do sistema de governo.
Todavia, para o escritor,
o que chamava sua atenção naquele momento era a onda de exilados políticos
que se dispersava mundo afora, devido, entre outros motivos, às ditaduras
impostas nas América Central e do Sul, sendo ele próprio uma vítima. «Noutros
lugares», escrito em Madison, e datado de 21de janeiro de 1967 traz-nos
a reflexão sobre o próprio sentimento de não-pertencer do exilado, a
necessidade premente de mudança, a rutura das relações sociais, e, ao mesmo
tempo, o apego às pessoas ou coisas. Importante atentar ao facto de que,
novamente, neste poema, apresenta-se alguém a quem é negado qualquer sopro
de felicidade.
*
Os últimos quatro anos da
sua vida nos Estados Unidos conheceram períodos de exaltação, desânimo,
depressão e desespero, que sincronizaram com acontecimentos da sua vida
pessoal (saúde precária, nascimento de um neto com graves deficiências
cardíacas, etc.) e também com os acontecimentos políticos em Portugal. O
gráfico errático, nevrótico e frequentemente alarmante dos acontecimentos
políticos no nosso país, a seguir ao 25 de Abril, e a total «marginalização»
do escritor pelos vários poderes que se foram sucedendo em roda-livre,
preocupavam-no e amarguravam-no. Numa carta a
Rui Knopfli, datada de 5 de março de 1975, de Santa Barbara, Jorge de
Sena comentava: «É verdade: a revolução portuguesa, após os momentos de
alegria. mergulhou-me numa infinita tristeza. Não é só a preocupação com a
democracia social que eu desejava ver estabelecida em bases de absoluta
liberdade, e que vejo francamente ameaçada por uma impetuosa cegueira
comunista que, mesmo do ponto de vista do PC, se deveria considerar
catastrófica. E também o ver e sentir que cada vez mais se perdem as
oportunidades ou o interesse de publicar para um público que não é informado
senão dos e pelos oportunistas do momento. E, embora fosse muito difícil eu
considerar uma transferência minha para Portugal, é a dor, não a ambição
ferida, que nunca a tive, de encontrar-me totalmente marginalizado pelas
‘facções’ ou pela universidade, que não precisam de mim para ajudar a
reconstruir o país. Nem vale a pena mencionar os pequenos jogos mesquinhos
para levar-se as pessoas a crer que fui eu quem recusou os mundos e fundos
que ninguém concretamente me ofereceu... Com tudo isto, eu que já estava a
atravessar uma crise neurovegetativa dos diabos, fiquei em petição de
miséria, e só cobro ânimo para o trabalho da universidade, que tem sido
muito.» Jorge de Sena focava aqui um ponto importante e dilacerantemente
delicado: era óbvio que dificilmente poderia ele transferir-se e a uma tão
grande família, ainda de si dependente, para um Portugal que não poderia
oferecer-lhe situação alguma «capaz» de o manter. Mas a ninguém competia
fazer estes cálculos e decidir, por ele, o que mais lhe convinha. A
sua recusa era quase certa, mas devia ter-lhe sido dado, a ele, o privilégio
de recusar. Era o mínimo que a pátria portuguesa lhe devia, pelo muito de
bom que por ela fizera, mesmo tendo-a abandonado e frequentemente agredido.
De resto, o abandono da pátria paga-se fundo, com a espécie de suicídio
lento que é o exílio — substituto do outro suicídio que teria sido ficar.
Para naturezas profundas e profundamente impacientes, trata-se simples e
cruelmente da escolha impossível entre duas longas torturas: It is
suicide to be abroad. But what is it to be at haine... what is it to be at
home? A lingering dissolution. («É um suicídio vivermos fora do nosso
país. Mas o que é estarmos no nosso país... o que é estarmos no nosso país?
Uma lenta dissolução.» — Samuel Beckett in All that fall.) Jorge de
Sena escolhera a primeira forma de suicídio a bem da obra — e ganhou a
aposta, perdendo-a em todos os outros pelouros em que não podia senão
perder. Porque o exílio só poderia ser resolvido ou compensado com aquele
mítico regresso que nunca acontece, por não poder acontecer, a um lugar que
já lá não está, para um reencontro com pessoas, hábitos e afeições, que
também se mudaram ou simplesmente mudaram. Não se regressa nunca, em
círculo, ao ponto de partida. A ilusão da possibilidade do círculo é
desbaratada pela verificação de que o círculo se volveu espiral. O ponto de
regresso é apenas um ponto homólogo e não um ponto coincidente: fica sempre
mais acima ou mais abaixo — o «paraíso perdido» (mesmo o paraíso amargo que
toda a vida se desprezou) ilude a nossa busca do tempo perdido. Disto mesmo
suspeitara o autor, em 1967, num dos seus mais belos e mais pungentes
poemas: «Noutros Lugares» (21.01.1967).
E seis anos mais tarde
(15.03.1973), já bem mais perto do final da vida, num poema escrito em
Londres, voltava à mesma ruminação obsessiva:
Não muitos terão tido a vida inteira
esta febre de andar por vários mundos
buscando ansioso o nada nosso e deles
que ao menos nada finge em gente e coisas...
E não terão, portanto, na memória
o tanto haver partido para longe,
para saberem que se parte sempre,
e não se volta nunca. O mesmo amor
que fiel aguarda o regressarmos não
é o mesmo já, mesmo se mais ardente
sob os cabelos que lhe são mais brancos.
(in 40 Anos de
Servidão)
«...para saberem que se
parte sempre, / e não se volta nunca…» Não se volta nunca, mesmo quando
materialmente se volta o que, no seu caso, lhe foi recusado. Antes de
morrer, ao menos, teve algumas compensações: duas vezes condecorado1,
obteve, além disso, a satisfação de receber, pouco antes do fim, o Prémio
Internacional de Poesia Etna-Taormina (1977) e ver que se mexiam, para uma
candidatura (que se não concluiu) ao Prémio Nobel, alguns amigos devotados.
Esta última consagração era quase certo que não viria, ainda que o autor
vivesse.
Pouco antes do fim, no
hospital, já sem forças, já nem sempre lúcido, em certo momento, reparou que
vários familiares e amigos o rodeavam, com solicitude. Num assomo de lucidez
e desconfiança, num último assumir dessa energia que sempre tão bem soubera
convocar, mesmo no centro da fadiga, Jorge de Sena perguntou, em inglês:
So many people? Am I dying? («Tanta gente? Estarei a morrer?»). Era
realmente a morte que, já foi dito e é bem sabido, só mata de facto os
homens pequenos. E era o dia 4 de Junho de 1978, data em que o autor de
Metamorfoses atingiu finalmente «o porto em que o desejo acaba».
Eugénio Lisboa, «Jorge de Sena: Perfil do Homem e da Obra», Londres,
janeiro-fevereiro de 1983. In O Objecto Celebrado (miscelânea de ensaios,
estudos e crítica). Universidade de Coimbra, Coleção das Acta
Universitatis Conimbrigensis, 1999
___________
(1) Da segunda
condecoração (Ordem de Santiago) só teve conhecimento 24 horas antes de
morrer e o decreto confirmativo foi assinado já depois da morte do escritor.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
“A literatura de resistência de
Sophia Andresen e Jorge de Sena”, José Carreiro. Folha de Poesia,
2018-04-24. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-literatura-de-resistencia-de-sophia.html
(1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/Sophia25abril.htm,
2011-12-08)
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