A história narrada em Os Lusíadas tem uma dimensão exemplar, por apresentar factos e figuras como modelos a seguir, bem como atitudes a evitar (estas em menor número).
Os Lusíadas, Canto VI, estâncias 95 a 99
1
5
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95
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
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Comenta agora o Poeta que é por meio de tais perigos, trabalhos pesados e pavores
que os verdadeiros amigos da fama alcançam as honras e dignidades. Não é à custa de nobreza dos antepassados, deitados em camas douradas, entre peles de zibelina,
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10
15
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96
Não cos
manjares novos e esquisitos,
Não cos
passeios moles e ouciosos,
Não cos
vários deleites e infinitos,
Que
afeminam os peitos generosos;
Não cos
nunca vencidos apetitos,
Que a
Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não
sofre a nenhum que o passo mude
Pera
algũa obra heróica de virtude;
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nem com
manjares novos e requintados, nem com passeios preguiçosos, nem com os
prazeres que efeminam, nem com os apetites não contrariados e tão amimados
pela fortuna, que não consentem que alguém altere a rotina da sua vida para
realizar um feito heroico.
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20
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97
Mas com buscar, co seu
forçoso braço,
As honras que ele chame
próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado
aço,
Sofrendo tempestades e ondas
cruas,
Vencendo os torpes frios no
regaço
Do Sul, e regiões de abrigo
nuas,
Engolindo o corrupto
mantimento
Temperado com árduo
sofrimento;
|
Mas sim buscando à
força do seu braço honras a que chame suas próprias, velando de noite,
vestindo o aço, aguentando tempestades, vencendo o frio maléfico do sul,
engolindo a comida estragada a que o trabalho dá sabor;
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25
30
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98
E com
forçar o rosto, que se enfia,
A
parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o
pelouro ardente que assovia
E leva a
perna ou braço ao companheiro.
Destarte
o peito um calo honroso cria,
Desprezador
das honras e dinheiro,
Das
honras e dinheiro que a ventura
Forjou,
e não virtude justa e dura.
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forçando o
rosto assustado a mostrar-se impassível diante da bala que assobia e atinge o
companheiro. É assim que o coração cria um calo que lhe dá honra e lhe
permite desprezar as honrarias e dinheiro fabricadas pela Sorte e não pela
Virtude.
98,8
“Virtude”
está usada no sentido de Valor, especialmente o guerreiro.
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35
40
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99
Destarte se esclarece o
entendimento,
Que experiências fazem
repousado,
E fica vendo, como de alto
assento,
O baxo trato humano
embaraçado.
Este, onde tiver força o
regimento
Direito e não de afeitos
ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre
mando,
Contra vontade sua, e não
rogando.
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É assim que o
entendimento se esclarece. É a experiência que dá a serenidade com que ele,
de alto, observa o confuso e baixo comportamento dos homens. E aquele que
alcança este nível, se vigorar a lei, justa, subirá a posições de mando, não
por pedidos, favores, mas por mérito, contra sua vontade.
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Fonte:
Luís de Camões, Os Lusíadas, edição de A. J. da Costa Pimpão,
Lisboa, MNE/IC, 2003.
Segue-se a ortografia adotada na edição referida.
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Fonte:
Luís de Camões, Os Lusíadas, edição organizada por António José Saraiva com
paráfrase do texto e vocabulário, Porto, Figueirinhas, 1978.
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Glossário
afeitos (verso 38) –
afetos.
animais [...] zibelinos (verso 8) – peles caras de
animais de regiões frias.
corrupto (verso 23) – deteriorado, apodrecido.
deleites (verso 11) – prazeres suaves.
destarte (versos 29 e 33) – deste modo, assim.
hórridos (verso 1) – horríveis.
ledo (verso 26) –
alegre.
Moscóvia (verso 8) – região norte da Rússia.
pelouro (verso 27) –
bala de metal para arma de fogo.
torpes (verso 21) –
que entorpecem, que enfraquecem.
ventura (verso 31) –
sorte.
Questionário
Apresente, de forma
clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Nos versos de 17 a 28, referem-se qualidades que permitem aos «que são
de fama amigos» (v. 3) atingirem as «honras imortais e graus maiores» (v. 4).
Indique quatro
dessas qualidades, fundamentando a resposta com citações textuais pertinentes.
2. Explicite a intenção crítica manifestada pelo poeta nos versos de 5 a
16, relacionando-a com o uso da anáfora.
3. Sintetize a opinião defendida pelo poeta nos versos de 29 a 32.
4. Explique de que modo a última estrofe transcrita ilustra a mitificação
do herói em Os Lusíadas.
Cenário de respostas
1. [Na resposta você deve indicar quatro das qualidades solicitadas, fundamentando a resposta
com citações textuais pertinentes.]
Os «que são de fama amigos» evidenciam, entre
outras, as qualidades seguintes:
– determinação – «Mas com buscar, co seu forçoso
braço» (v. 17);
– esforço – «forçoso braço» (v. 17);
– combatividade – «Vigiando e vestindo o forjado
aço» (v. 19);
– coragem – «Vigiando e vestindo o forjado aço»
(v. 19);
– resistência – «Sofrendo tempestades e ondas
cruas» (v. 20); «Vencendo os torpes frios no regaço / Do Sul, e regiões de
abrigo nuas» (vv. 21 e 22);
– abnegação – «Engolindo o corrupto mantimento /
Temperado com árduo sofrimento» (vv. 23 e 24);
– firmeza – «E com forçar o rosto, que se enfia,
/ A parecer seguro» (vv. 25 e 26).
2. [Na resposta você deve
explicitar, adequadamente, a intenção crítica manifestada pelo poeta
nos versos de 5 a 16, relacionando-a com o uso da anáfora.]
Nos versos de 5 a 16, o poeta desvaloriza, por
oposição aos «que são de fama amigos», aqueles que:
– vivem à sombra da glória dos antepassados (vv.
5 e 6);
– se entregam ao prazer, ao luxo, à avidez e à
preguiça (vv. 7 a 12);
– não resistem ao vício (vv. 13 a 16).
O uso da anáfora reforça esta intenção crítica,
ao sublinhar, pela repetição da negativa, aquilo que deve ser rejeitado – «Não
encostados…» (v. 5); «Não nos leitos…» ( v. 7); «Não cos manjares…» (v. 9);
«Não cos passeios…» (v. 10); «Não cos vários…» (v. 11); «Não cos nunca…» (v.
13).
3. [Na resposta você deve sintetizar,
adequadamente, a opinião defendida pelo poeta nos versos de 29 a 32.]
O poeta defende que
os verdadeiros heróis são aqueles que adquirem uma capacidade de resistência e um
sentido da honra que os faz desprezar as recompensas e os privilégios
imerecidos.
4. [Na resposta você deve explicar, adequadamente,
o modo como a última estrofe ilustra a mitificação do herói em Os Lusíadas.]
Na última estrofe,
o herói é caracterizado como aquele que:
– adquiriu
serenidade com a experiência – «repousado» (v. 34) –, pelo que se distancia do
homem comum – «embaraçado» (v. 36);
– ascende a um
«alto assento» (v. 35), de onde observa, com distância, os comuns mortais – «O
baxo trato humano» (v. 36);
– se tornará
ilustre por merecimento e não por cálculo (vv. 39 e 40);
– será reconhecido,
nos territórios onde as leis forem justas, como alguém capaz de governar (vv.
37 a 39).
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário, Português - 12.º Ano (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março), Prova Escrita 639, 1.ª fase. Gabinete de Avaliação Educacional
(GAVE), 2012.
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CARREIRO, José. “OS LUSÍADAS - dimensão exemplar da história narrada”. Portugal, Folha de Poesia, 30-04-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/os-lusiadas-dimensao-exemplar-da.html
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