Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.
Bernardo Soares
De Bernardo Soares disse Pessoa que era, não
um heterónimo, mas um semi-heterónimo (ou "personalidade literária",
como também lhe chamou). Na já tão mencionada carta de 1935 a Adolfo Casais
Monteiro, Pessoa justifica o porquê de não o considerar como os outros:
«O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com
Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que
tenha um pouco suspensas as faculdades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente, mas uma simples mutilação dela. Sou eu
menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de
ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual [...]»
Ora, se Pessoa pouco nos diz desta sua
"personalidade literária", dele ficamos a conhecer, pela leitura do
Livro, a condição de ajudante de guarda-livros, vivendo e trabalhando na Baixa
lisboeta, contactando com o universo 'cinzento' da paisagem que o rodeia, a
citadina e a humana, a dos cafés que frequenta, a do escritório da Rua dos
Douradores, com o patrão Vasques, o Moreira ou o moço de fretes. Vivia num
quarto alugado e conversava sobre literatura com Fernando Pessoa, tendo mostrado
apreço pela revista Orpheu.
Ter-lhe-ia confessado mesmo que, «não tendo para onde ir, nem amigos que
visitasse, soia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo
também». Da sua escrita resultaram os fragmentos (designá-los-ei por f.) do que
viria a ser o Livro do Desassossego.
O
LIVRO:
O projeto do Livro do
Desassossego acompanhou
sempre Pessoa, que publicou o 1ºfragmento, intitulado «Na Floresta do
Alheamento» na Águia, em 1913, já
com a menção «Livro do Desassossego». Durante bastante tempo o livro como que
foi 'hibernando', tendo começado a adquirir alguma forma no período
compreendido entre 1929 e 1932, período em que foram publicados em revistas
várias outros fragmentos. No entanto, o Livro não chegou a ser livro, no
sentido vulgar da palavra: ele ficaria para sempre sob a forma de 'fragmentos',
de 'livro por fazer' - que competiria a Jacinto do Prado Coelho publicar em
1982. Nele se reúnem um total de 520 fragmentos. Nunca saberemos se é esse o
livro que Pessoa teria feito, visto que, na ausência de critérios explícitos
por parte do seu autor, foi opção de quem o organizou tudo publicar. Assim nos
foi facultada a versão integral - competindo a cada um de nós, de certo modo,
fazer o 'nosso' livro, dispondo dos fragmentos como melhor entendermos.
O
TÍTULO:
No Prefácio a essa 1ªedição do Livro do
Desassossego (ed. Ática, 1982-2 volumes), Jacinto do Prado Coelho dava
explicação do título, nos seguintes termos:
«O título a que
Pessoa se manteve fiel coloca o Livro sob o signo do desassossego - palavra que
recebe de alguns textos uma conotação decadentista. Em Na Floresta do Alheamento associa-se a tédio: “Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que
horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...” Reaparece em “Perystilo”, texto de cariz semelhante: “Às horas em
que a paisagem é uma auréola de vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó
meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho com portões
abertos ao fim duma alameda duma casa abandonada” E ainda em “Nossa
Senhora do Silêncio” fala Soares em
sentimentos que habitam “a sombra dos seus cansaços e as grutas dos seus
desassossegos”. Mas também ocorre em passos de outro estilo: “O que tenho
sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gémeo do cansaço quando ele
não tem razão de ser senão o estar sendo” (fragmento talvez de 1932). Ajusta-se
ao enervamento, à inquietação, à ansiedade que, sem causa imediata, decorrem
duma sensação de vazio, de mal-estar, de “incompetência” para viver.» (J.P.Coelho,op.cit)
Por outro lado, recordemo-lo, o termo aparece
em «Opiário» (1915), de Álvaro de Campos, significando justamente a
inquietação, o mal estar existencial de se saber existindo sem «oriente a
oriente do oriente», com vontade de «ser as coisas fortes», mas sem «mola»,
energia vital, para a ação.
ESTE
LIVRO NA OPINIÃO DE ALGUNS DOS SEUS LEITORES:
Trata-se de uma espécie de diário íntimo de
Bernardo Soares, em que se refletem histórias de vida, reflexões, paisagens
citadinas, em discurso de 1ªpessoa, e em prosa melódica, que a torna mais do
que nenhuma outra, prosa lírica.
Jorge de Sena, um dos primeiros a estudar o Livro do Desassossego, afirma que Soares
representaria um heterónimo mais próximo de Pessoa do que os outros, por «assumir a meditação dispersa e fragmentária
de uma sociedade de heterónimos na disponibilidade. O livro dele era uma
espécie de refugo de tudo o que não chegava a ser de ninguém dos outros; e uma
espécie de depósito da fragmentária tristeza de Pessoa, que, até certo ponto,
para que ele existisse, sofria a suspensão existencial deles.» E
acrescenta: «Se nem todos os trechos
são de igual valor, alguns serão da mais bela prosa da língua portuguesa. Neles
perpassam os temas, às vezes mesmo fantasmas de estrutura, dos poemas de
todos os heterónimos e ortónimos. Tudo o que a poesia plenamente realizada, ou
a diversificada prosa, deles todos foi ‑ está presente nestes fragmentos feitos
da análise espectral das vivências que pululavam dentro do homem Fernando
Pessoa, acotovelando-se e atropelando-se para serem, ou, pouco a pouco,
desvanecendo-se nas trevas inferiores, como espíritos que se cansam de
comparecer à mesa de pé de galo a que os convocaram demasiadamente. O
racionalismo transcendental de
Fernando Pessoa; o misticismo irónico e frio de outro Fernando Pessoa; a meditação existencial de Álvaro de
Campos; o empiriocriticismo de Alberto
Caeiro; a consciência cansadamente hedonística da fugacidade de tudo,
que era de Ricardo Reis; o neo-positivismo espiritualista do autor dos 35 Sonnets; a lascívia
reprimida do autor de Antinous; o anarquismo paradoxal do Banqueiro, etc., etc.‑ e, sob tudo isto, como uma maldição, de que todos são filhos, como um pecado original a que
todos devem o ser, a terrível incapacidade de amar, a medonha
demonstração de que o homem existe pelos seus atos e não é outro senão eles, e
que não existe, senão como ficção,
quando, em lugar de aceitar ir sendo, escolhe fixar-se na pedagogia
monstruosa de ser por conta alheia, de
perder-se 'na floresta do alheamento'»
Por sua vez, Maria Alzira Seixo, na Introdução
que faz ao Livro do Desassossego (Editorial
Comunicação, Lisboa), insiste sobre o caráter onírico do Livro ‑ «Entre o sonho e o duplo, entre a alienação
e as ambiguidades, entre o 'alheamento' e o 'intervalo' se formula o essencial
do Livro do Desassossego». A mesma autora acrescenta: «o Livro do Desassossego
apresenta-se-nos, no seu conjunto, como a descrição consistente e desdobrada de
um estado de alma, traçada a pinceladas obsessivas e desconexas, movida pela
observação atenta mas logo desfigurada do seu conteúdo que se delineia em
sucessivas e fragmentárias vagas de expressão sentimental ou de reflexão
racionalizante»
Por outro lado, parece existir neste livro um
fascínio pelo concreto da cidade, dos matizes que as variantes meteorológicas
põem nas ruas, nas casas e nas pessoas, a lembrar muito o Cesário Verde de Num
bairro moderno ou do Sentimento de um Ocidental. Só que é uma cidade
admiravelmente descrita, mas que não vale por si, remetendo para estados de
alma em que Soares se desdobra, «novos
mergulhos no ser e no desassossego que o altera» (Mª Alzira Seixo, op.cit)
Robert Bréchon, por sua vez, afirma
representar o livro «a nudez de Pessoa»,
sendo o seu assunto «o auto-retrato de
uma consciência que sente e que sabe excessivamente» e o livro «a
confissão de um ser cujas virtualidades não podem concretizar-se, de um ser que perdeu o
segredo da infância; Soares é
um homem sem memória, sem história, sem biografia; é também um ser
inacabado, que está por vir e contudo não tem porvir»
E, se bem que Maria Alíete Galhoz nele pareça
entrever uma abertura para uma «vaga 'felicidade'», a verdade é que não deixa
de lhe reconhecer um tom geral de disforia ‑ «um livro existente, extraordinariamente testemunhal do concreto até, e
é ao mesmo tempo, um livro do esvaziamento do ser ‑ Jorge de Sena chamou-lhe
"livro do não ser"»
Quanto a Eduardo Lourenço, chama-lhe «texto
suicida (?)», no qual «reencontramos
sem surpresa aquele que por excesso de ausência de alma em tantas fingidas se multiplicou»; e termina o
seu magnífico estudo desta maneira: «Concluindo:
aos textos-diferentes que
justificariam a mitologia heteronímica, quer na ótica de Fernando Pessoa quer
na nossa, de todos, opõe-se o texto
-das -diferenças, chamado O Livro
do Desassossego onde os escritos imaginários que designamos como Caeiro,
Reis e Campos se articulam entre si e os outros textos não-heteronímicos sem
solução de continuidade, revelando-nos, assim, não o caráter fabricado dos
textos heteronímicos, mas tão só o
carácter lúdico da sua autonomização,
tanto como a sua função ocultante.
Como o Livro do Desassossego o testemunha, sob a heteronímia
expressa, resiste e persiste uma heteronímia natural que embora não consentindo a ilusão de uma
pluralidade mítica, menos nos consente ainda, se precisássemos
confirmação disso, uma mítica
unidade.»
INTERTEXTUALIDADE
COM OS OUTRO(S) PESSOA(S)- O MESMO E O OUTRO
Ao lermos o Livro do
Desassossego somos sensíveis
à presença no Eu/escrita de Soares os outros Pessoas já nossos conhecidos.
Por exemplo, Fernando Pessoa ortónimo:
«Sou
o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida
fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu
nada também.[f.154] ‑ cf. este poema com, por ex.: «Entre o sono e o
sonho»
«E
tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.» [...] ‑ cf.
com «Há no firmamento»
«Meu
Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo
que há entre mim e mim?» [f.21]
«[...] E
num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio das águas
de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim.» [f.98]
‑ cf.com «Leve, breve, suave»
Ou Ricardo
Reis:
“Nada pesa tanto como o afeto alheio ‑ nem o
ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção
desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto
o ódio como o amor nos oprimem; ambos nos buscam e procuram, não nos deixam
sós” [f.382]‑ cf. com “Não só quem nos odeia ou nos inveja”.
“Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a
ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma é a nós mesmos -
que amamos” [f.416] ‑ cf. com “Ninguém a outro ama, senão que ama”.
“O verdadeiro sábio é aquele que assim se
dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente” [f.418] ‑ cf.
com “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo” e com “Ouvi contar
que outrora, quando a Pérsia”.
...Alberto Caeiro:
“Leio e estou liberto. Adquiro objetividade.
Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal
vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável
[?] o sol que vê todos, a lua que a malha de sombras o chão quieto, os espaços
largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em
cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas,
nos declives breves das encostas.” [f.16] ‑ cf. com qualquer poema de “O
Guardador de Rebanhos”.
“Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos
ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o que é, e nunca
houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade ‑ a identidade
sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se
simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos
míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.” [f.67] ‑ idem, especialmente com
o poema II.
“Quem me dera, neste momento o sinto, ser
alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o
vê-lo ‑ contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à
superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos
dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da
expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana
independente de se lhe chamar varina, e de se saber que existe e que vende. Ver
o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não
apocalipticamente como revelação do Mistério, mas diretamente como floração da
Realidade.” [f.87] ‑ idem, especialmente com poema XXIV.
...Álvaro de Campos:
“Sentir tudo de todas as maneiras; saber
pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a
imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se
com fingimento e tática, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em
suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas
embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que de aqui estou
vendo com as latas pequenas de graxa da nova marca”. [f.30] - cf. com “A melhor
maneira de viajar é sentir” e “Passagem das Horas”
“Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em
que faço a lançamento a história inútil de uma firma obscura; e, ao mesmo
tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio
inexistente por paisagens de um oriente que não há.” [f.118] - cf. com “Ode
Marítima”
“Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter
sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar
é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos
dispersos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa?
Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! [...] Quantos Césares fui,
mas não dos reais. [...] Quantos Césares fui, aqui mesmo na Rua dos Douradores.
E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação[...] Atiro com a caixa de
fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da
minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto.” [...] ‑ [f. 132] ‑
cf. com “Tabacaria” e “Pecado original” ‑ versos 16, 21 a 23: "Quantos
Césares fui!"
“Estou hoje lúcido como se não existisse.” [f.
416] ‑ cf. com “Tabacaria”.
“Doem-me a cabeça e o universo.” [f.430] - cf.
com “Tenho uma grande constipação” ‑ último verso: "Preciso de verdade e
de uma aspirina."
De certo modo, Soares vem-se-nos revelar como
alguém que está por detrás de todos os outros Pessoa(s), que existe com todos e
em todos, como todos existem em si- o que, necessariamente, vem colocar a
questão da heteronímia em moldes diferentes, vem dizer-nos que somos todos o
mesmo e o outro - nesse sentido poderão entender-se as palavras, atrás
referidas, de Eduardo Lourenço sobre o Livro do
Desassossego como texto-rasura e como texto suicida, texto do ser/não
ser que permanentemente se descobre como impossibilidade.
ALGUNS
DOS TEMAS / IDEIAS ABORDADAS NO LIVRO DO
DESASSOSSEGO:
Amor (27 fragmentos)
Arte literária (8 f.)
O Eu de B-Soares (59 f.)
Lisboa- cidade (15 f.)
Lisboa-ciclos do dia (25 f.)
Figuras da cidade (12 f.)
Quotidiano da cidade (21 f.)
Consciência/Inconsciência (24 f.)
«Decadência» (12 f.)
relação Eu/outros (31 f.)
Eu vário e múltiplo (24 f.)
Indiferença/abdicação (16 f.)
Inércia/ação (24 f.)
Leituras (13 f.)
Língua-linguagem ( 9 f.)
Morte (16 f.)
Noite (6 f.)
Paisagem (22 f.)
Viagem-viagens (18 f.)
Passado-infância (17 f.)
Sensações (22 f.)
Sensacionismo (13 f.)
Ser e (des)conhecer-se (43 f)
Sonho /realidade (21 f.)
Tédio (21 f.)
Trovoadas (13 f.)
Viagens (8)
Arte literária (8 f.)
O Eu de B-Soares (59 f.)
Lisboa- cidade (15 f.)
Lisboa-ciclos do dia (25 f.)
Figuras da cidade (12 f.)
Quotidiano da cidade (21 f.)
Consciência/Inconsciência (24 f.)
«Decadência» (12 f.)
relação Eu/outros (31 f.)
Eu vário e múltiplo (24 f.)
Indiferença/abdicação (16 f.)
Inércia/ação (24 f.)
Leituras (13 f.)
Língua-linguagem ( 9 f.)
Morte (16 f.)
Noite (6 f.)
Paisagem (22 f.)
Viagem-viagens (18 f.)
Passado-infância (17 f.)
Sensações (22 f.)
Sensacionismo (13 f.)
Ser e (des)conhecer-se (43 f)
Sonho /realidade (21 f.)
Tédio (21 f.)
Trovoadas (13 f.)
Viagens (8)
Como pode ver-se pelo levantamento feito,
predomina a reflexão filosófica (o Eu de Bernardo Soares;
consciência-inconsciência; relação eu-outros; Eu vário e múltiplo; Inércia-ação;
Indiferença-abdicação; Ser e conhecer-se; tédio; decadência) e ainda o mundo
exterior da cidade, ainda que nas suas relações com o Eu pensante.
UMA
ESPÉCIE DE CONCLUSÃO:
Aquando do capítulo 5º, a respeito da
Heteronímia, ocorreu-me falar de «explosão» e «implosão». Se texto há em que se
verifique tal «implosão», ele é certamente o do Livro do Desassossego
(existencial) de Pessoa-Caeiro-Reis-Campos/Bernardo Soares.
O mesmo que de si dizia:
«Sou
variamente outro.»
«Não evoluo,
VIAJO.»
«Vou
enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de
fingir que compreendo o mundo, ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo.»
«Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões
falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.»
Ou, como diz Eduardo Lourenço: «Quem sonhou todas estas ficções foi o
passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se
sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de
idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados
do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era,
ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu
Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária.
Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de
tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos,
sobretudo dos improváveis.»
E acrescenta, em jeito de síntese:
«Aí está o retábulo da sua vera e incruenta
paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito ‑ Pessoa de um
vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do
nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista. Nem há na
literatura do Ocidente mais completa expressão do Simbolismo. O Modernismo foi
a sua e nossa ficção. Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da
Morte, de herói da impossibilidade de amar, como o seu duplo e não menos
wagneriano Luís Segundo, Rei da Baviera:
“Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas
vividas.
Rei - Virgem que desprezaste o amor,
Rei - Sombra que desdenhaste a luz,
Rei - Sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépido surdo de címbalos e atabales, a Sombra te proclama Imperador!”
Rei - Virgem que desprezaste o amor,
Rei - Sombra que desdenhaste a luz,
Rei - Sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépido surdo de címbalos e atabales, a Sombra te proclama Imperador!”
[excerto do f.335 do L.D.]»
Amélia Pinto Pais, Para
Compreender Fernando Pessoa, Porto, Areal Editores, 1996. Capítulo XI
disponibilizado na revista Nave da
Palavra, edição nº 48, 16/02/2001 e consultado em linha, em 17/03/2003
- Leia aqui uma versão do Livro do Desassossego.
Leitura orientada e notas para
a análise literária de poemas do semi-heterónimo pessoano Bernardo Soares:
Poema |
Incipit |
O olfato é uma vista estranha. |
|
|
|
CARREIRO, José. Bernardo Soares. Portugal, Folha de Poesia, 14-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/bernardo-soares.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 15-12-2011. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/FP_BernardoSoares.htm)
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