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O olfato é uma vista
estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente.
Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes,
olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que
ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana.
Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no
cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e
outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu.
Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja
estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem
árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma
rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó
meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela
recordação, à única verdade, que é a literatura.
Bernardo Soares, Livro
do desassossego. Edição de Teresa Sobral Cunha disponível em: https://ldod.uc.pt/reading/fragment/Fr151/inter/Fr151_WIT_ED_CRIT_SC
***
Quando
Bernardo Soares passa por uma rua, ele sente cheiros que evocam memórias da sua
infância e de outras experiências passadas, levando a um "desenhar súbito
do subconsciente".
O olfato
é o único sentido que está diretamente conectado ao sistema límbico, a parte do
cérebro responsável pelas emoções e memórias. Isso significa que os cheiros
podem desencadear uma resposta emocional intensa e evocar lembranças antigas de
forma vívida e realista.
Bernardo Soares utiliza a palavra "vista" de forma figurada para descrever o poder do
olfato em evocar paisagens sentimentais de forma instantânea, como se a pessoa
estivesse "vendo" essas paisagens na mente. Essa figura de linguagem
também sugere a importância do olfato na perceção e na experiência sensorial do
autor.
A
referência feita por Bernardo Soares ao poeta Cesário Verde no excerto do Livro
do Desassossego pode ser interpretada como uma homenagem à sua poesia
visualista e realista. O autor menciona o poeta ao descrever a evocação de
memórias pela fragrância dos caixotes do caixoteiro, sugerindo que a obra de
Cesário Verde tem um poder semelhante de evocação e de conexão com a realidade
sensorial. Aliás, Bernardo Soares, num dos fragmentos do Livro do Desassossego, sentiu-se
a viver no tempo de Cesário e tendo em si «não outros versos como os dele, mas
a substância igual à dos versos que foram dele».
Bernardo
Soares termina o seu texto afirmando que a literatura é a única verdade na sua
vida e é capaz de evocar sentimentos e emoções mais verdadeiros do que a
própria realidade. O olfato, por sua vez, é mencionado como um gatilho para
essas emoções e memórias, que são capturadas pela literatura. Portanto, a
literatura é vista como uma forma de registar e preservar as experiências
sensoriais, incluindo o olfato.
Intertextualidade: Crónica de José
Tolentino Mendonça
«O olfato
é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do
subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes», confessava Fernando Pessoa, no
Livro do Desassossego. Um odor é, de facto, suficiente para desfolhar as
páginas de uma história íntima. Ele mobiliza a nossa subjetividade e a nossa
memória. Tem uma longuíssima duração. Por vezes, tocados pela sugestão de um
odor, os olhos alargam-se num perfeito sorriso ou alagam-se numa brusca emoção.
Os odores permitem-nos viajar no tempo e dentro de nós. São um instrumento
interno de rememoração. E a nossa memória é uma paleta de odores.
A
dificuldade de narrar um odor (é impossível fazê-lo com precisão, apenas com o
recurso a metáforas e comparações lá chegamos) está bem expressa no diálogo
perfumado de ironia das Investigações Filosóficas, quando Wittgenstein1
pergunta: «Procuraste já descrever o aroma do café sem conseguir?»
Num
ensaio sobre a antropologia do olfato, David Le Breton2 escreve que
as sociedades ocidentais deixaram de valorizar os odores. E dá dois exemplos:
na época de Dürer3, existiam na língua alemã mais de cento e
cinquenta e oito palavras para designar cheiros diferentes. Dessas, apenas
trinta e duas hoje subsistem, e frequentemente como formas dialetais muito localizadas.
Pelo contrário, no mundo árabe-muçulmano, que mantém mais viva a sabedoria dos
odores, há cerca de duzentos e cinquenta termos a ela relativos. E os odores
fornecem metáforas para todos os domínios da vida, desde as imagens mais
triviais às mais sofisticadas. Para lá, claro, de encherem habitualmente as
casas e transbordarem agilmente pelas ruas.
Freud4
associa o recuo cultural dos odores ao progresso civilizacional das nossas
sociedades. E diz que o olfato perdeu importância em favor da visão. O odor
está demasiado próximo dos estádios primitivos, expõe excessivamente a
individualidade, lembra que há uma corporeidade que não passa despercebida,
como seria conveniente.
Passou-se
a viver numa insegurança em relação às emanações do próprio corpo. A narrativa publicitária
agudiza essa incerteza em nome da necessidade de vender desodorizantes e perfumes.
Esforçamo-nos por esconder os odores naturais e levamos a cabo verdadeiras operações
de recomposição das paisagens olfativas onde nos movemos. Cresce todo um comércio
ligado ao olfato ambiental, com aromas para as várias divisões da casa e para o
automóvel, líquidos que imitam o odor do pinheiro ou da lavanda, mesmo se os
nossos estilos de vida nos distanciam cada vez mais da natureza. O nosso olfato
capturado pelas diretivas do comércio torna-se mais controlado, mas também mais
artificial.
José
Tolentino Mendonça, Expresso, «Revista», 27-09-2014
(adaptado pelo IAVE–
Instituto de Avaliação Educativa in Exame Final Nacional do Ensino Secundário
n.º 639 - Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho. Prova Escrita de Português -
12.º Ano de Escolaridade, 2015, 1.ª Fase. Disponível em: https://iave.pt/wp-content/uploads/2020/04/EX-Port639-F1-2014-V1.pdf)
______________
1 Wittgenstein – filósofo (n. 1889 – f. 1951).
2 David Le Breton – antropólogo e sociólogo (n. 1953 –).
3 Dürer – artista plástico (n. 1471 – f. 1528).
4 Freud – médico neurologista, fundador da Psicanálise (n. 1856 – f.
1939).
CARREIRO, José. “O olfato é uma vista estranha, Bernardo Soares”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 06-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/o-olfato-e-uma-vista-estranha-bernardo.html
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