A TRANSMISSÃO DO SEGREDO
1. Há alguns anos, numa
Universidade do Rio de Janeiro, participava num daqueles colóquios literários com
diversas intervenções seguidas de comentários e perguntas mais ou menos
oportunas, quando olhei de repente para os vidros da janela e percebi que,
embuçada naquele pesadelo de palavras sem fim, a noite tinha chegado. Quando
foi de novo a minha vez de falar, assinalei o facto com estas palavras muito
simples: "e subitamente é noite". Para o poeta Albano Martins, que
estava entre os participantes do colóquio (a sua obra tem sido objeto privilegiado
de estudo nos meios britânicos), a minha frase cintilou como uma citação que de
facto era. Eu tinha clandestinamente evocado um poema de Salvatore Quasimodo,
que, na tradução que Albano Martins nos dá agora, diz o seguinte:
“Cada um de nós está só no
coração da terra atravessado por um raio de sol: e subitamente é noite."
É assim que os versos
funcionam como sinais noturnos que vão tecendo o silêncio das cumplicidades.
Porque, como escreveu Sandro Penna, "o mundo que vos parece feito de
cadeias / está todo tecido de harmonias profundas". Vou um pouco mais
longe: se a memória me não atraiçoa, estes versos de Quasimodo descobri-os há
muito tempo numa versão que deles me chegava num pequeno livro de José Carlos
de Vasconcelos, e foi precisamente a partir daí que a poesia deste grande poeta
italiano me começou a fascinar – afinal, coisas tão precárias e breves,
meia-dúzia de palavras quase banais, e que nos vinculam pela vida fora. Percebo
assim o estranho prazer de um poeta-tradutor que procura salvar na sua própria língua
coisas tão simples como o poema Eterno de Ungaretti: "Entre uma flor
colhida e outra dada / o inexprimível nada." Ou mesmo a beleza eriçada de
um único verso também de Ungaretti: "Um enxame copula-se no sangue"
(o poema intitula-se Babel). E compreendo também que toda a tragédia quase
insuportável de Pavese se possa condensar na estranha obsessão de um único verso:
''Virá a morte e terá os teus olhos". Um magnífico fotógrafo italiano, Mario
Giacomelli, tem um ciclo de fotografias sob este título. Também ele ficou preso
destas palavras.
2. O livro a que me tenho
estado a referir intitula-se "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" em
seleção, tradução e notas de Albano Martins com um desenho de Carlos Reis nas
Publicações Dom Quixote. Pertence à magnífica coleção O Aprendiz de Feiticeiro,
que Cruz Santos iniciou na Oira do Dia. É da mais elementar justiça assinalar o
trabalho absolutamente excecional que algumas editoras têm vindo a realizar no
domínio da tradução poética. É o caso da Assírio e Alvim que há pouco tempo
publicou "O tempo aprazado" de Ingeborg Bachmann, autora mais
conhecida como romancista do que como poeta ou ensaísta - a seleção, introdução
e tradução pertencem a Judite Berkemeier e João Barrento. O mesmo João
Barrento, aparentemente incansável nestas tarefas, tinha-nos proposto anteriormente
"A sede entre os limites" de Ulla Hahn, na Relógio d'Água. E é da Relógio
d'Água que nos chega, em tradução de Maria de Lourdes Guimarães, "A destruição
do nada e outros poemas" de Thom Gunn. Imprescindível referir também a atividade
da Cotovia, salientando apenas duas iniciativas recentes do maior interesse: as
"Reflexões sobre o Sr. Pessoa" de John Wain, em tradução de João
Almeida Flor e com um comentário de Joaquim Manuel Magalhães, e os
"Poemas" de Charles Tomlinson num volume organizado por Gualter Cunha.
Na maior parte dos casos,
estas traduções aparecem em edições bilingues - felizmente. Não sucede o mesmo
com os "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" de Albano Martins, e a
minha preguiça de leitor fica um pouco frustrada. Quando leio esta estrofe belíssima:
"Rapazes correm sobre
a erva, e parece / que os dispersa o vento. Disperso, porém, / só o meu
coração, no qual perdura um vivo / relâmpago (oh juventude) daquelas / camisas
brancas estampadas no verde", eu gostaria imenso de saber no próprio
momento da leitura que palavras italianas estão por detrás dos vocábulos portugueses
e que ordem as reúne e de igual modo dispersa.
3.
A excelente coleção
Poetas em Mateus, da editora Quetzal, segue o mesmo critério. Aliás, isso não
me espanta, porque esta iniciativa está ligada a um projeto inicial da Fundação
Royaumont e de Rémy Hourcade, e conheço os pressupostos deste para optar por edições
não bilingues. Não os vou discutir por agora, embora não os partilhe inteiramente.
Sublinho apenas algumas edições recentes na Quetzal: "A magia dos
números e outros poemas" de Kenneth Koch, “A Pura Verdade” de Philip
Levine, "Uma onde e outros poemas" de John Asberry (espero que uma futura
edição nos dê uma imagem mais completa deste extraordinário poeta), "O jardim
da dor e outros
poemas" de Thomas McCarthy e "Uma luz diferente" de John
Montague.
A metodologia da tradução de
Royaumont e Mateus é apaixonante. Durante alguns dias, na presença do autor, uma
dezena de poetas trabalha à volta de uma mesa em torno da tradução de
meia-dúzia de poemas. Multiplicam-se as versões, as sugestões, as correções, as
indignações e os deslumbramentos. Posso pessoalmente garantir que, quando se entra
neste jogo, o prazer de se descobrir e combinar os matizes de várias línguas é enorme
e rapidamente se transforma num vício. E uma espécie de ritual e dança em torno
da quimera de uma língua ideal – aquela com que o próprio poema de origem se
confronta.
4. "A destruição do
nada" de Tom Gunn é um livro esplêndido no modo como nos propõe, na
sequência impessoal dos seus monólogos, uma espécie de heteronímia
deambulatória que define melhor do que qualquer teoria o trabalho da tradução.
O tradutor é como o poeta, escrevendo os poemas que não escreveu: um deus
existindo apenas na sua criação. E transmitindo o segredo, palavra a palavra.
Na orla
da compreensão:
está o segredo.
Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.
O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.
O segredo
é ainda segredo
não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa interceção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,
um deus existindo
apenas na sua criação.
(“O concerto ao ar livre”)
“A transmissão do segredo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o
suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 19
de março de 1993.
“O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo
Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-10-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/o-estranho-prazer-do-poeta-tradutor-por.html
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