terça-feira, 1 de outubro de 2019

O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho





A TRANSMISSÃO DO SEGREDO

1. Há alguns anos, numa Universidade do Rio de Janeiro, participava num daqueles colóquios literários com diversas intervenções seguidas de comentários e perguntas mais ou menos oportunas, quando olhei de repente para os vidros da janela e percebi que, embuçada naquele pesadelo de palavras sem fim, a noite tinha chegado. Quando foi de novo a minha vez de falar, assinalei o facto com estas palavras muito simples: "e subitamente é noite". Para o poeta Albano Martins, que estava entre os participantes do colóquio (a sua obra tem sido objeto privilegiado de estudo nos meios britânicos), a minha frase cintilou como uma citação que de facto era. Eu tinha clandestinamente evocado um poema de Salvatore Quasimodo, que, na tradução que Albano Martins nos dá agora, diz o seguinte:
“Cada um de nós está só no coração da terra atravessado por um raio de sol: e subitamente é noite."
É assim que os versos funcionam como sinais noturnos que vão tecendo o silêncio das cumplicidades. Porque, como escreveu Sandro Penna, "o mundo que vos parece feito de cadeias / está todo tecido de harmonias profundas". Vou um pouco mais longe: se a memória me não atraiçoa, estes versos de Quasimodo descobri-os há muito tempo numa versão que deles me chegava num pequeno livro de José Carlos de Vasconcelos, e foi precisamente a partir daí que a poesia deste grande poeta italiano me começou a fascinar – afinal, coisas tão precárias e breves, meia-dúzia de palavras quase banais, e que nos vinculam pela vida fora. Percebo assim o estranho prazer de um poeta-tradutor que procura salvar na sua própria língua coisas tão simples como o poema Eterno de Ungaretti: "Entre uma flor colhida e outra dada / o inexprimível nada." Ou mesmo a beleza eriçada de um único verso também de Ungaretti: "Um enxame copula-se no sangue" (o poema intitula-se Babel). E compreendo também que toda a tragédia quase insuportável de Pavese se possa condensar na estranha obsessão de um único verso: ''Virá a morte e terá os teus olhos". Um magnífico fotógrafo italiano, Mario Giacomelli, tem um ciclo de fotografias sob este título. Também ele ficou preso destas palavras.
2. O livro a que me tenho estado a referir intitula-se "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" em seleção, tradução e notas de Albano Martins com um desenho de Carlos Reis nas Publicações Dom Quixote. Pertence à magnífica coleção O Aprendiz de Feiticeiro, que Cruz Santos iniciou na Oira do Dia. É da mais elementar justiça assinalar o trabalho absolutamente excecional que algumas editoras têm vindo a realizar no domínio da tradução poética. É o caso da Assírio e Alvim que há pouco tempo publicou "O tempo aprazado" de Ingeborg Bachmann, autora mais conhecida como romancista do que como poeta ou ensaísta - a seleção, introdução e tradução pertencem a Judite Berkemeier e João Barrento. O mesmo João Barrento, aparentemente incansável nestas tarefas, tinha-nos proposto anteriormente "A sede entre os limites" de Ulla Hahn, na Relógio d'Água. E é da Relógio d'Água que nos chega, em tradução de Maria de Lourdes Guimarães, "A destruição do nada e outros poemas" de Thom Gunn. Imprescindível referir também a atividade da Cotovia, salientando apenas duas iniciativas recentes do maior interesse: as "Reflexões sobre o Sr. Pessoa" de John Wain, em tradução de João Almeida Flor e com um comentário de Joaquim Manuel Magalhães, e os "Poemas" de Charles Tomlinson num volume organizado por Gualter Cunha.
Na maior parte dos casos, estas traduções aparecem em edições bilingues - felizmente. Não sucede o mesmo com os "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" de Albano Martins, e a minha preguiça de leitor fica um pouco frustrada. Quando leio esta estrofe belíssima:
"Rapazes correm sobre a erva, e parece / que os dispersa o vento. Disperso, porém, / só o meu coração, no qual perdura um vivo / relâmpago (oh juventude) daquelas / camisas brancas estampadas no verde", eu gostaria imenso de saber no próprio momento da leitura que palavras italianas estão por detrás dos vocábulos portugueses e que ordem as reúne e de igual modo dispersa.
3. A excelente coleção Poetas em Mateus, da editora Quetzal, segue o mesmo critério. Aliás, isso não me espanta, porque esta iniciativa está ligada a um projeto inicial da Fundação Royaumont e de Rémy Hourcade, e conheço os pressupostos deste para optar por edições não bilingues. Não os vou discutir por agora, embora não os partilhe inteiramente. Sublinho apenas algumas edições recentes na Quetzal: "A magia dos números e outros poemas" de Kenneth Koch, “A Pura Verdade” de Philip Levine, "Uma onde e outros poemas" de John Asberry (espero que uma futura edição nos dê uma imagem mais completa deste extraordinário poeta), "O jardim da dor e outros poemas" de Thomas McCarthy e "Uma luz diferente" de John Montague.
A metodologia da tradução de Royaumont e Mateus é apaixonante. Durante alguns dias, na presença do autor, uma dezena de poetas trabalha à volta de uma mesa em torno da tradução de meia-dúzia de poemas. Multiplicam-se as versões, as sugestões, as correções, as indignações e os deslumbramentos. Posso pessoalmente garantir que, quando se entra neste jogo, o prazer de se descobrir e combinar os matizes de várias línguas é enorme e rapidamente se transforma num vício. E uma espécie de ritual e dança em torno da quimera de uma língua ideal – aquela com que o próprio poema de origem se confronta.
4. "A destruição do nada" de Tom Gunn é um livro esplêndido no modo como nos propõe, na sequência impessoal dos seus monólogos, uma espécie de heteronímia deambulatória que define melhor do que qualquer teoria o trabalho da tradução. O tradutor é como o poeta, escrevendo os poemas que não escreveu: um deus existindo apenas na sua criação. E transmitindo o segredo, palavra a palavra.
Na orla
da compreensão:
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa interceção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.

(“O concerto ao ar livre”)


“A transmissão do segredo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 19 de março de 1993.




“O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/o-estranho-prazer-do-poeta-tradutor-por.html



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