SE
A MORTE FOSSE UMA ROSA OBSCURA
1.
Foi tarde, por volta de 89, a partir de uma antologia de Roger Munier, um dos
seus tradutores franceses, que descobri a poesia de Roberto Juarroz. Anteriormente,
este nome designava alguém que me aparecia vinculado ao amplo círculo de
amizades e cumplicidades de António Ramos Rosa. Era já uma excelente
referência. Mas as primeiras leituras de Juarroz são absolutamente decisivas quanto
ao desenrolar do processo de informação: ou há uma rejeição, e isso sucede
frequentemente, por motivos a que tentarei voltar com mais cuidado e demora, ou
há uma fascinação, que faz que durante meses e meses esta poesia passe a
intervir abusivamente em tudo o que escrevemos ou lemos, como uma espécie de horizonte
silencioso e voraz. No meu caso, reconheço-o com prazer, foi a fascinação que
prevaleceu.
Nunca
cheguei a ver Juarroz ao vivo. Sei que passou pelo Centro Pompidou, onde leu
alguns dos seus poemas, sei também que era um leitor espetacular, com uma elocução
apaixonada e dramática. Tomo agora conhecimento pelos jornais que morreu há
semanas, em Buenos Aires, com setenta anos de idade. Numa obra que
obstinadamente se chamou desde o princípio Poesia Vertical, e de que pude ler
até ao décimo terceiro volume, pergunto-me em que termos se concluiu: com poemas
disseminadamente verticais, ou com novos volumes prolongando a academia
implacável da numeração?
Num
belo volume de pensamentos e aforismos, também eles designadamente como
"verticais", para o qual o meu amigo Albano Martins me chamara a
atenção, pode-se ler a dada altura: "Cada coisa traz em si a sua própria
antítese. Não poderia existir sem ela. A condição da realidade é a sua própria
contradição. Imaginar uma realidade sem contradição é uma outra contradição".
Isto explica um pouco o mecanismo que move os textos de Juarroz – uma espécie
de vocação exacerbada para a dialética. Noutros termos, podemos até recear que
o comando das operações não pertença às palavras (o que geralmente acontece,
mas nem sempre), mas, sim, a uma lógica abstrata e exangue do pensamento.
Porque Juarroz não aposta nem numa metaforicidade expansiva, nem numa relação
privilegiada com a realidade. As metáforas, quando existem, constroem-se quase
sempre no próprio poema, à vista do leitor, e parecem encaixilhadas. O real,
esse, é convocado sempre como um tipo de "exemplo" ou como um
"motor de arranque". Os textos são essencialmente silogismos
alargados, em que o leitor sente as linhas de recorte, os pontos em que as
colagens se fizeram, o peso das dobradiças que rangem.
No
entanto, funciona. E de que modo! Porque esta poesia em que o pensamento parece
sobrepor-se à linguagem tem a extraordinária coragem de nos propor um
pensamento em incessante derrota, continuamente confrontado com tudo o que lhe
falta, e nos falta, com tudo o que nos escapa, com tudo o que é invisível, pela
razão muito simples de ser excessivamente visível, próximo, fraternal: "Y
aprender la transparência es el comienzo/ de aprender el invisible".
Àqueles
que poderiam censurar Juarroz pela construção ostensivamente geométrica dos
seus poemas, ele poderá responder que a poesia é em si mesma "uma outra ordem
do espaço: uma geometria do aberto": "Hay ángulos que no pueden
cerrarse / y que ninguna linea convertirá en figura. / ElIos resumen el
destino. / Tampoco el destino puede cerrarse. // EI amor conoce esos ángulos /
y con frecuencia acude a ellos. / También el pensamiento y la palabra. /
También los párrafos deI viento. // Pero no hay instrumento que puede medirlos,
/ no hay geometria que los abarque. / ElIos resumen a otro orden deI espacio: /
la geometría deI abierto."
2.
Leia-se esse brevíssimo poema de Juarroz: "Rostros que van, / rastros ue
vuelven. // Hay una sola diferencia: la lluvia, en el camino, / moja más a los
que vuelven." De certo modo, grande parte da poética de Roberto Juarroz pode
ser deduzida a partir destes versos. O esquema fundamental é o do quiasmo, figura
que designa uma espécie de simetria cruzada. No entanto, o termo final nunca é
idêntico ao termo inicial. Precisamente pelo caminho há rastro de uma diferença
quase invisível, mas que vem desequilibrar o todo, desconjuntá-lo, barrar de
impossibilidade qualquer ideia de sistema ou clausura, esvaziar o pensamento
até à nudez do mundo, ao deserto imenso das palavras.
A
ideia de verticalidade responde a este efeito siderante da diferença,
"este defeito fundamental que o acaso distribui": “El errar que
comete una cosa / aI caer de tus manos, la absurda equivocación de una hoja / al
no caer sobre la tierra, / la confusíon de un aroma / que emigra de una flor / y
se va perfurmar un pensamíento / no deben atribuirse / a sus modales inexpertos
/ sino al defecto fundamental que el azar distribuye / como una noche quebrada /
por el apocalipsis encubierto de los dias." E daí a ideia obsessiva de
que, no jogo dos extremos aparentemente simétricos, há um que sempre falta:
"El misterio no tiene dos extremos: / tiene uno. / El unico extremo del mistério
está en el centro / de nuestro proprio corazón. // sin embargo, / no dejaremos
nunca de buscar otro extremo, / el extremo que no existe".
3.
É por isso que a energia de pensamento que move esta poesia não deve
assustar-nos. Ela propõe-se como a linha rasa da humildade mais obstinada
perante o imenso desafio que é o das palavras e o da realidade. Este pensamento
não forma conceito, é evanescente e biodegradável, desfaz-se numa lógica de
fumo, no tecido mais ralo da matéria: "Habrá partículas tan finas, / tan
leves, tan discretas, / que duren siempre en suspensíon?".
Roberto
Juarroz sabe que tudo é sempre começo ("Hasta dios no es más que un
comienzo") e afloramento ("Vivir parece sólo un roce con el
ser"). Esta poesia confronta-se permanentemente com a ausência e com a
fuga incoativa das formas. Combate permanente que encontra o seu espelho de metáforas
da morte: "La muerte no tiene forma. / La vida dona sus formas a la
muerte. / No sabemos si ésta a veces las adopta / porque las formas no
regresan. // Si la muerte fuese una rosa oscura / y el hombre tivera ojos para
verla, / sabríamos que sucede con las formas. // Pero entonces y no sería necessário
/ conocer el destino de las formas: / basteria con aspirar profundamente / el
oscuro perfume de esa rosa.”
“Se a morte fosse uma rosa obscura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras
do jornal Público. Sábado, 29 de abril de 1995, p. 12.
CARREIRO, José. “Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz”. Portugal, Folha de Poesia, 04-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/se-morte-fosse-uma-rosa-obscura.html
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