segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz




SE A MORTE FOSSE UMA ROSA OBSCURA

1. Foi tarde, por volta de 89, a partir de uma antologia de Roger Munier, um dos seus tradutores franceses, que descobri a poesia de Roberto Juarroz. Anteriormente, este nome designava alguém que me aparecia vinculado ao amplo círculo de amizades e cumplicidades de António Ramos Rosa. Era já uma excelente referência. Mas as primeiras leituras de Juarroz são absolutamente decisivas quanto ao desenrolar do processo de informação: ou há uma rejeição, e isso sucede frequentemente, por motivos a que tentarei voltar com mais cuidado e demora, ou há uma fascinação, que faz que durante meses e meses esta poesia passe a intervir abusivamente em tudo o que escrevemos ou lemos, como uma espécie de horizonte silencioso e voraz. No meu caso, reconheço-o com prazer, foi a fascinação que prevaleceu.
Nunca cheguei a ver Juarroz ao vivo. Sei que passou pelo Centro Pompidou, onde leu alguns dos seus poemas, sei também que era um leitor espetacular, com uma elocução apaixonada e dramática. Tomo agora conhecimento pelos jornais que morreu há semanas, em Buenos Aires, com setenta anos de idade. Numa obra que obstinadamente se chamou desde o princípio Poesia Vertical, e de que pude ler até ao décimo terceiro volume, pergunto-me em que termos se concluiu: com poemas disseminadamente verticais, ou com novos volumes prolongando a academia implacável da numeração?
Num belo volume de pensamentos e aforismos, também eles designadamente como "verticais", para o qual o meu amigo Albano Martins me chamara a atenção, pode-se ler a dada altura: "Cada coisa traz em si a sua própria antítese. Não poderia existir sem ela. A condição da realidade é a sua própria contradição. Imaginar uma realidade sem contradição é uma outra contradição". Isto explica um pouco o mecanismo que move os textos de Juarroz – uma espécie de vocação exacerbada para a dialética. Noutros termos, podemos até recear que o comando das operações não pertença às palavras (o que geralmente acontece, mas nem sempre), mas, sim, a uma lógica abstrata e exangue do pensamento. Porque Juarroz não aposta nem numa metaforicidade expansiva, nem numa relação privilegiada com a realidade. As metáforas, quando existem, constroem-se quase sempre no próprio poema, à vista do leitor, e parecem encaixilhadas. O real, esse, é convocado sempre como um tipo de "exemplo" ou como um "motor de arranque". Os textos são essencialmente silogismos alargados, em que o leitor sente as linhas de recorte, os pontos em que as colagens se fizeram, o peso das dobradiças que rangem.
No entanto, funciona. E de que modo! Porque esta poesia em que o pensamento parece sobrepor-se à linguagem tem a extraordinária coragem de nos propor um pensamento em incessante derrota, continuamente confrontado com tudo o que lhe falta, e nos falta, com tudo o que nos escapa, com tudo o que é invisível, pela razão muito simples de ser excessivamente visível, próximo, fraternal: "Y aprender la transparência es el comienzo/ de aprender el invisible".
Àqueles que poderiam censurar Juarroz pela construção ostensivamente geométrica dos seus poemas, ele poderá responder que a poesia é em si mesma "uma outra ordem do espaço: uma geometria do aberto": "Hay ángulos que no pueden cerrarse / y que ninguna linea convertirá en figura. / ElIos resumen el destino. / Tampoco el destino puede cerrarse. // EI amor conoce esos ángulos / y con frecuencia acude a ellos. / También el pensamiento y la palabra. / También los párrafos deI viento. // Pero no hay instrumento que puede medirlos, / no hay geometria que los abarque. / ElIos resumen a otro orden deI espacio: / la geometría deI abierto."


2. Leia-se esse brevíssimo poema de Juarroz: "Rostros que van, / rastros ue vuelven. // Hay una sola diferencia: la lluvia, en el camino, / moja más a los que vuelven." De certo modo, grande parte da poética de Roberto Juarroz pode ser deduzida a partir destes versos. O esquema fundamental é o do quiasmo, figura que designa uma espécie de simetria cruzada. No entanto, o termo final nunca é idêntico ao termo inicial. Precisamente pelo caminho há rastro de uma diferença quase invisível, mas que vem desequilibrar o todo, desconjuntá-lo, barrar de impossibilidade qualquer ideia de sistema ou clausura, esvaziar o pensamento até à nudez do mundo, ao deserto imenso das palavras.
A ideia de verticalidade responde a este efeito siderante da diferença, "este defeito fundamental que o acaso distribui": “El errar que comete una cosa / aI caer de tus manos, la absurda equivocación de una hoja / al no caer sobre la tierra, / la confusíon de un aroma / que emigra de una flor / y se va perfurmar un pensamíento / no deben atribuirse / a sus modales inexpertos / sino al defecto fundamental que el azar distribuye / como una noche quebrada / por el apocalipsis encubierto de los dias." E daí a ideia obsessiva de que, no jogo dos extremos aparentemente simétricos, há um que sempre falta: "El misterio no tiene dos extremos: / tiene uno. / El unico extremo del mistério está en el centro / de nuestro proprio corazón. // sin embargo, / no dejaremos nunca de buscar otro extremo, / el extremo que no existe".
3. É por isso que a energia de pensamento que move esta poesia não deve assustar-nos. Ela propõe-se como a linha rasa da humildade mais obstinada perante o imenso desafio que é o das palavras e o da realidade. Este pensamento não forma conceito, é evanescente e biodegradável, desfaz-se numa lógica de fumo, no tecido mais ralo da matéria: "Habrá partículas tan finas, / tan leves, tan discretas, / que duren siempre en suspensíon?".
Roberto Juarroz sabe que tudo é sempre começo ("Hasta dios no es más que un comienzo") e afloramento ("Vivir parece sólo un roce con el ser"). Esta poesia confronta-se permanentemente com a ausência e com a fuga incoativa das formas. Combate permanente que encontra o seu espelho de metáforas da morte: "La muerte no tiene forma. / La vida dona sus formas a la muerte. / No sabemos si ésta a veces las adopta / porque las formas no regresan. // Si la muerte fuese una rosa oscura / y el hombre tivera ojos para verla, / sabríamos que sucede con las formas. // Pero entonces y no sería necessário / conocer el destino de las formas: / basteria con aspirar profundamente / el oscuro perfume de esa rosa.”

Se a morte fosse uma rosa obscura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 29 de abril de 1995, p. 12.




CARREIRO, José. “Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz”. Portugal, Folha de Poesia, 04-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/se-morte-fosse-uma-rosa-obscura.html


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