ERVILHAS
E BACH
1.
Página 24: "e a um dado momento senti que o Diário ia tornar· se um livro/obra,
com seus moventes e figuras contracenando comigo na primeira pessoa."
Donde, "Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso" (Rolim),
texto de Maria Gabriela Llansol, surge sob a forma de Diário – isto é, os
fragmentos de escrita têm lugar e data, embora, primeira transgressão às normas
do género, a sequência cronológica apareça redistribuída segundo uma lógica que
vai para além da mera ordenação dos dias. Digamos que a "forma diário"
pode ser definida como uma estrutura material, na medida em que "são
estruturas materiais que permitem a transformação da matéria em matérias mais
leves".
Vale
a pena ainda sublinhar outro ponto. Este livro inclui a abertura de
Lisboaleipzig, mas na página 82 encontramos uma frase-dobradiça,
"Dedico-vos estes textos", que permite a passagem para uma categoria
de textos que podem ser classificados num duplo e talvez paradoxal estatuto: são
textos circunstanciais, isto é, forçados por circunstâncias ditas
"exteriores" (a entrega de um prémio, uma viagem ao estrangeiro, uma
solicitação para uma conferência, o prefácio para um livro), mas, ao mesmo
tempo, são textos "teóricos" (isto é, parecem estruturar a concetualidade
emergente no textos "literários", embora, na medida em que são textos
que deliberadamente “se escrevem”, cada estrutura que se faz é no mesmo gesto
uma estrutura que se desfaz, porque "o pensamento é uma região nebulosa
que se torna clara através de linhas geométricas que se fraturam, finalmente, quando
escrevo").
Como
propõe Llansol, ao sair da leitura (donde se não sai) de Spinoza, e de um dos
seus comentadores, Martial Guéroult, o texto que "vou escrever" é já
o texto que "voo a escrever": "quem voa, trabalha para tornar
mais complexa, e aberta, a natureza”.
2.
Nunca Maria Gabriela Llansol explicitou tão bem as dificuldades que se colocam
à aproximação da sua obra. Ela própria nos fala num "pacto de inconforto".
Arranca do exemplo de uma frase: "Uma parte da minha vida ajustou-se ao
pátio." E comenta-a assim: "Quando escrevi esta frase, eu estou a ver
o pátio, mas quem não lê não sabe de quem é a vida que se ajustou ao espaço do
pátio."
Notemos:
primeiro, a passagem do passado ("escrevi") para o presente
("estou a ver"); segundo, a distinção entre aquele-que-lê-não-lê
("mas quem não lê não sabe) daquele que lê-e-sabe-o-que-é-ler.
E
Maria Gabriela Llansol acrescenta: "Muitos dos que me leem têm dificuldade
em ajustar-se ao pacto de leitura que os meus textos supõem: o de saberem quem
está emancipado. E sabê-lo sem sombra de dúvida. Os meus textos supõem um pacto
de inconforto." E um pouco mais adiante surge este dizer luminoso:
"Devo reconhecer que o meu texto, ao deixar inseguro o sujeito que
enuncia, se dirige de facto ao ansiar do coração, e o coloca na sombra da
dúvida. E, se o coração persiste em ler, é, porque há nele um fulgor estético
que o ilumina o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justo e
irrecusável."
Permitam-me
que volte a sublinhar alguns pontos. Primeiro, a passagem do "saber sem
sobra de dúvida", expressão comum, que designa um saber de claridade absoluta,
sem sombra, sem resto, sem réstia de noite, solar e diurno, pretendendo ser
capaz de olhar o sol, e a morte, de frente, para um saber que viaja na sua própria
sombra, que a aceita, que a trata por tu, que se abriga nela, que se coloca à
sombra da sua sombra. Llansol nunca enfatiza o enigma: domestica-o sem o
açaimar, torna-o doméstico: "o meu real é estar a descascar estas ervilhas
e ouvir Bach" (note-se a insistência do concreto: "estas").
Segundo
ponto: o texto deixa inseguro, mas quem? "O sujeito que enuncia."
Isto é, não se trata apenas da insegurança do leitor face a um texto que o
autor dominaria, mas da insegurança liminar daquele que escreve. Escrever não é
mais do que este passar a insegurança de mão em mão. Ou, se preferirem, de
coração em coração. Porque, se o leitor que eu sou continua a ler, mesmo quando
o sentido vacila e a razão se desassossega, é porque, em mim, ou melhor, em
nós, é o coração que persiste em ler. Donde, aquele que sabe ler com o coração.
Mas Llansol acrescenta algo que corresponde precisamente ao que eu aqui mesmo
tenho tentado fazer: a leitura-do-coração apoia-se no "detalhe justo e
irrecusável".
Este
aspeto é absolutamente fundamental: porque, como acontece com quase todos os
grandes autores, o leitor pode pegar no último livro de Llansol e supor que se
trata "do que já conhece" (ou do [que] se habitou a desconhecer). Só
a leitura rasante ao texto é capaz de captar "o detalhe justo e irrecusável".
Só a leitura encostada ao coração do texto, só a leitura clínica de uma
respiração, desabitua e permite surpreender a diferença, ou melhor, a
microscópica explosão de diferenças, ou melhor ainda, porque já nem sou eu quem
o diz, mas um coração partilhado "o encontro inesperado do diverso".
Donde “escrever é levar a leitura pelo seu caminho de modo que quem lê
sobreviva ao seu encontro".
Barthes
propôs um dia a distinção entre textos de "plasir" e textos de
"jouissance". Os textos de "plasir" são uma arte de viver –
situam-se na face interna do enigma da vida, percorrem-no frase a frase, como
uma carícia, um afago animal antes do sono. Os textos de "jouissance"
são, na sua verticalidade inexorável, um exercício de sobrevivência – suspendem-se,
como um suicida no rebordo da janela, na face externa do enigma da vida, mas
escrevem-se letra a letra, tropeçando na ilegibilidade destas letras, e por
isso resistem à queda: o texto é "um espaço matinal de contra-sangue".
3.
Devemos, portanto, dizer claramente que "Lisboaleipzig" é um texto de
“jouissance", com os riscos inerentes para quem escreve e para quem lê.
Porque a "jouissance" passa por um eclipse, uma rasura, uma síncope
do sentido, um momento de autismo transcendental, que só a violência do texto pode
ultrapassar. Neste livro podemos encontrar o relato de uma cena primitiva que é
aquela, admirável, em que Maria Gabriela conduz a criança emudecida, Ad, até ao
lugar do "texto sem fim" – "feito de sinais, gatafunhos, que
escrevem, mutuamente, que as nossas presenças não nos fazem mal, nem medo".
Esta cena repete a crise criativa de outra figura autobiograficamente
fundamental: a da rapariga que temia a impostura da língua.
Mas
é afinal em cada dia, em cada manhã do livro, em cada despertar do texto, que
esta cena regressa, volta e se revolta; "Sentei-me na cama, com a mão na
boca, levantada pela palavra; a primeira fase de articulação é inaudível,
depois, a garganta sussurra, desce o papel de pensar para a mão direita que guia
o sussurro sobre o lápis; enfim, é manhã de sábado, e o dia que amanhece –
vital para mim. Estas emoções, em certos períodos, repetem-se quotidianamente.”
“Ervilhas e Bach”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o
suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15
de outubro de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 03-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/maria-gabriela-llansol-por-eduardo.html
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