por Eduardo Prado Coelho
NÓS NESTA PRAIA EM QUE O SÉCULO
FINDA TEMOS SEDE
1. O segundo livro de poesia de
Manuel Gusmão prova o que já sabíamos: estamos diante de um dos grandes nomes
da nossa poesia contemporânea; e podemos encontrar aqui alguns dos poemas
indiscutivelmente imprescindíveis em qualquer panorama da poesia portuguesa do século
XX. Só certos aspetos da personalidade do autor (enorme discrição mediática,
incansável empenhamento político, atitude exemplar de pedagogia universitária e
imagem de crítico que ensaia passar para a criação) impediram até agora o
reconhecimento plenamente adequado do seu trabalho poético. Mas a leitura de
"Mapas o Assombro a Sombra" (Ed. Caminho) desfaz quaisquer dúvidas ou
reticências.
Numa primeira aproximação somos
sensíveis à complexidade de uma sintaxe que não hesita em mobilizar os mais diversos
recursos: o jogo entre maiúsculas e minúsculas, a utilização dos dois pontos e
do ponto e virgula (às vezes em situação de transporte), criando modalidades
sempre desconcertantes de articulação ou sobreposição; um permanente deslizar
de múltiplos planos que se relançam incessantemente ("É talvez que beleza seja
/ uma palavra que esconde uma outra"); o não hesitar em utilizar
construções de aparência defeituosa (como nos versos anteriormente citados); o
uso premeditado de ruturas tipográficas ("sagrad/ a fúria"); o
diálogo permanente com interlocutores que se desdobram mas que convergem
invariavelmente para um “tu" que se propõe como suporte da própria arquitetura
poética ("Quem o quê tu?"); a utilização de vários idiomas ("Laura
é a minha Beatrice, he said./ Ma io non sapeva"); a quase invisível mas incessante
intertextualidade (de Camões a Sá de Miranda, de Ovídio e Lucrécio a Leopardi,
de Ezra Pound a Dickson); a espantosa capacidade para integrar no fluxo poético
as expressões mais polemicamente prosaicas (“Contra a enorme cegueira do ódio,
contra o opressivo barulho e/ estúpido da ‘economia de mercado', canta").
Estamos assim diante de uma
poesia de grande densidade de referências culturais, de imensa capacidade
aulo-reflexiva, mas, ao mesmo tempo, pura, desinibida, frugal, cantante,
fluente, contagiante e mágica. De um pudor extremo, cercada de palavras por
todos os lados, mas também intensamente física, quase obscena ("fratura exposta
ao assombro").
2. Mapas. No título e na capa:
Theatrum orbis terrarum, Abraham Ortelius, 1570. Está certo: partindo muitas
vezes das situações mais quotidianas (um quarto, um jardim, uma casa), esta
poesia percorre, como botas que ela fosse de sete léguas cósmicas (e lembro
aqui os admiráveis poemas sobre a infância: "as letras da noite, a mão do
pai.// Ou então é o candeeiro sobre a mesa:/ aquecida a lâmpada, os peixes de
cores/ começam o seu canto eletrificado. Começam/ a ondular à volta e sobre a
flora colorida do fundo/ do mar, que roda em sentido contrário./ A velocidade crescente.
Todas as cores.// Não é um aquário./ Não é um filme, Não é o fundo do mar.// Não
é um sonho. É a noite do candeeiro / Como uma árvore que expande a folhagem/ o
fósforo o néon o halogéneo aqui"), esta poesia percorre, repito, o mundo inteiro,
a orbe terrestre: é “a forma expansiva da manhã".
Recordo que a pulsão cartográfica
exige um olhar que se faça de cima, a distância da realidade, mas
suficientemente perto para a poder reconhecer e reproduzir. Estamos num entredois,
que impõe a experiência do voo. De Ovídio, nas "Metamorfoses", aqui presente
e convocado, poder-se-á evocar Dédalo encerrado no labirinto do seu palácio de
Minos (o tema do labirinto aqui também produtivo, embora por vezes na conotação
positiva da (con)fusão amorosa: "Com as mãos/ perdidas desfazes a imagem à
espera// que a parede se abra. Será a última/ parede do labirinto?"), mas também
seu filho, Ícaro, a quem se recomenda que voe entre as ondas do mar e o Sol,
mas não tão perto do Sol que a cera das asas se derreta. De igual modo o livro
de Manuel Gusmão se equilibra entre a sombra e o assombro, investindo-se no
tema do voo ou do salto (reminiscência possível de Carlos de Oliveira):
"as mãos dançam no teatro da água/ sobem ao encontro da queda que voa".
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EX06 (untitled). Artist: Tomasz Alen Kopera. Movement: magical realism. Type: oil on canvas. Dimensions: 100x120cm / 39x47in. Year: 2021
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3. Da compacta temática amorosa
desta poesia, concentrada na teia de cumplicidades entre as mãos, os corpos e o
mundo, acelerada pela cumplicidade das artes (a música, a literatura, o cinema,
a pintura de um nome, o filme da música, o trabalho da mão mental: "a mão
escreve na mente"), apurada na consciência de uma "alegria
mortal", emerge o tema da construção do Terceiro, já introduzido desde o título
no livro anterior: dois sóis, a rosa. Ou por outras palavras: "o brilho
inapagável de um gesto suspenso/ e depois a bruma no lugar do rosto que lá não
está/ não sabemos nunca como repetir tal brilho// nem como pedir-te essa metamorfose
do terceiro corpo/ que voa oblíquo sobressalto destes dois nossos/ e incandesce
no passado que toda a morte não promete."
Amor, ou poesia, ou o corpo pianista,
ou o quadro, ou o filme, ou a luta pela liberdade. Em todas estas práticas – e o
intransigente materialismo do autor, amante da manhã terrestre ("Não é o
sagrado. É o fragmento de uma paisagem terrestre./ Há na música o modo da
utopia que reconheces: é que// é aqui e agora") reconhecer-se-á na palavra
"prática" – se constrói a arquitetura do mundo, isto é, as figuras do
fogo, a praia, a manhã ("de repente a noite rasga-se e surge uma praia").
E "o que é esta praia Uma pausa na dança/ A anca no sono o espanto da dança"
– "amigos não sabemos o que esta praia desata".
São estas "as manhãs da noite".
Admiravelmente descritas na sua fragilidade e evidência, a evidência da
alegria, mas sobretudo na sua contingência (à maneira de Althusser, um
materialismo do aleatório, uma afirmação tanto mais (im)provável quanto mais
contingente, uma prática do clinamen: "canta a contingência do comunismo
que vem"). Porque nunca o Terceiro é o lugar da síntese. Se alguma coisa suporta
esta tragicidade eufórica e partilhável, e partilhada, é o sentimento da incoincidência
que legitima o prazer da repetição: "Mas há um intervalo e uma mudança de
voz: aqui e agora não coincidem. E depois repetem-se noutra figura."
Porque, como se diz admiravelmente no mais deleuziano dos versos humanos,
"o atraso é/ uma diferença de velocidade nos mundos do mundo", e o
homem é, ou está, estruturalmente em atraso: "Nunca chegarás à hora de
nascer e contudo/ nasces. Nunca chegarás e isso dança. Isso chama por um nome/ qualquer,
sem nome." E assim o assombro – um lugar precário onde se celebra a
"ardente perfeição das coisas: "E/ cada coisa usa em seu redor a
sombra/ como uma aura própria." E, portanto, quando a surpresa se declina,
e sobre nós se inclina, a surpresa "não parece real: Esse é/ um dos
espantos com o real. É que não se parece." Daí que as comparações possam
ser simples paragens na alegria do aparecimento: “um avião belo como um avião".
4. Estes poemas foram escritos
entre 1989 ("nós nesta praia em que o século finda temos sede") e
1993 ("à espera da manhã terrestre"). Segundo leio, a tiragem do
livro é de 600 exemplares. Amigos da Caminho, ponham seis mil. E será pouco.
“Nós
nesta praia em que o século finda temos sede”, crónica de Eduardo Prado Coelho para
o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 23 de
março de 1996, p. 12.
Nota:
Clinâmen:
Do latim clināmen, «inlinação; pendor». Nome masculino. 1. FILOSOFIA teoria
desenvolvida por Lucrécio a partir da doutrina de Epicuro, que consiste num
desvio imprevisível dos átomos, causado por um pequeno movimento aleatório
lateral 2. tendência de um escritor para se afastar da influência dos seus
antecessores literários. (Fonte:
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/clin%C3%A2men)
CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas
o Assombro a Sombra, de Manuel Gusmão”. Portugal, Folha de Poesia, 09-11-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/mapas-o-assombro-sombra-de-manuel-gusmao.html
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