sábado, 13 de junho de 2020

A chave das coisas está no equívoco da idade, Nuno Júdice



ESCOLA

O que significa o rio,
a pedra, os lábios da terra
que murmuram, de manhã,
o acordar da respiração?

O que significa a medida
das margens, a cor que
desaparece das folhas no
lodo de um charco?

O dourado dos ramos na
estação seca, as gotas
de água na ponta dos
cabelos, os muros de hera?

A linha envolve os objetos
com a nitidez abstrata
dos dedos; traça o sentido
que a memória não guardou;

e um fio de versos e verbos
canta, no fundo do pátio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianças.

A chave das coisas está
no equívoco da idade, na
sombria abóbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.

Nuno Júdice, Meditação sobre ruínas.
Lisboa, Quetzal Editores, 1999.


A sugestão de que as etapas da vida ensinam e, o passar do tempo, traz um refinamento do olhar com a experiência do aprender, pode ser notada no poema “Escola”. Considera-se nesse título a multiplicidade de sentidos da palavra, uma vez que esta não se refere somente ao espaço escolar, mas também a um determinado método, estilo ou sistema, bem como remete a um tempo de conhecimento, de viver e aprender sobre as coisas, misturando assim os elementos tempo e espaço – lugar físico e de fala. Das seis estrofes que compõem o poema, as três primeiras são questionamentos – aparentemente de aspecto infantil, pelo menos a princípio, porém que se tornam difusos em sua objetividade [vv. 1 a 12]. […]
A semelhança com o narrar não se apresenta de forma clara nas essas três primei­ras estrofes de “Escola”. Essas destoam um pouco da predominância do estilo narra­tivo dos poemas judicianos, uma vez que não se sustentam em contar cenas, imagens concretas ou em experiências. Até então o tempo, no poema “Escola”, somente se marca por meio daquilo que escapa, fugidio, como o murmúrio dos lábios da terra nas manhãs, ao acordar. Ou ainda o desaparecer da cor das folhas e do dourado dos ramos, sugerindo um desgaste natural provocado pela ação do tempo. Contudo, es­pecialmente nas três últimas estrofes, esse estilo se destaca fortemente.
Mais do que a presença dos verbos no presente, o tempo é marcado pelas coisas que parecem perder a nitidez ao longo de uma trajetória. No espaço abstrato dos versos, há um desejo de que a poesia reflita sobre o que se perdeu ou o que foi es­quecido com o passar do tempo, “que a memória não guardou”, mas que, contudo, não se compreende de uma só maneira, uma vez que “a chave das coisas está / no equívoco da idade”. A percepção sobre as coisas, os fatos, a vida, vai se modificando com a idade, com o curso da vida, essa escola, que ensina, que faz aprender a partir das experiências.

“Marcas do tempo na poesia de Nuno Júdice”, Ivana Gund. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Volume 36 (dez. 2018) – 1-123 – ISSN 1678-2054. http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa




CARREIRO, José. “A chave das coisas está no equívoco da idade, Nuno Júdice”. Portugal, Folha de Poesia, 13-06-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/06/a-chave-das-coisas-esta-no-equivoco-da.html



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