Discurso de Tolentino de Mendonça na cerimónia das
comemorações do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, em 10 de Junho de 2020.
O QUE É AMAR UM PAÍS
Agradeço ao senhor Presidente o convite para presidir à Comissão das
comemorações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.
Estas comemorações estavam para acontecer não só com outro formato, mas também
noutro lugar, a Madeira. No poema inicial do seu livro intitulado Flash, o poeta Herberto Helder, ali nascido,
recorda justamente «como pesa na água (…) a raiz de uma ilha». Gostaria de
iniciar este discurso, que pensei como uma reflexão sobre as raízes, por saudar
a raiz dessa ilha-arquipélago, também minha raiz, que desde há seis séculos se
tornou uma das admiráveis entradas atlânticas de Portugal.
É uma bela tradição da nossa República esta de convidar um cidadão a tomar
a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de
concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de
portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e
àqueles que dia-a-dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia-a-dia
encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas
regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas
redes da nossa diáspora.
Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a
cuidar da sua parte – a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as
suas relações ou o seu território de vizinhança – mas é importante que se recorde
que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada
português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por
ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento,
estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação
não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando
queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as
raízes.
Camões e a arte do desconfinamento
Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema.
Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à
distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o
seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário
mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo
nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia
é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência
oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por
exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar
até à India, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós
próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos
definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da
grande literatura – àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão
daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto, um ser humano sobre a terra,
não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da
minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou
Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou
do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões
desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um
preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é
simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo
plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas,
como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é
sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção,
que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das
ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é
uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa
época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos
coloca no interior turbulento de uma mudança de época.
Que a crise nos encontre unidos
Gostaria de recordar aqui uma passagem do Canto Sexto d’Os Lusíadas, que celebra a chegada da expedição
portuguesa à Índia. Os marinheiros, dependurados na gávea, avistam finalmente
«terra alta pela proa» e passam notícia ao piloto que, por sua vez, a anuncia
vibrante a Vasco da Gama. O objetivo da missão está assim cumprido. Mas o Canto
Sexto tem uma exigente composição em antítese, à qual não podemos não
prestar atenção. É que à visão do sonho concretizado não se chega sem
atravessar uma dura experiência de crise, provocada por uma tempestade marítima
que Camões sabiamente se empenha em descrever, com impressiva força plástica.
Digo sabiamente, porque não há viagem sem tempestades. Não há demandas que não
enfrentem a sua própria complexificação. Não há itinerário histórico sem
crises. Isso vem-nos dito n’Os Lusíadas de
Camões, mas também nas Metamorfoses de
Ovídio, na Eneida de Virgílio,
na Odisseia de Homero ou nos Evangelhos cristãos.
No itinerário de um país, cada geração é chamada a viver tempos bons e
maus, épocas de fortuna e infelizmente também de infortúnio, horas de calmaria
e travessias borrascosas. A história não é um continuum, mas é
feita de maturações, deslocações, ruturas e recomeços. O importante a
salvaguardar é que, como comunidade, nos encontremos unidos em torno à
atualização dos valores humanos essenciais e capazes de lutar por eles.
Mas à observação realística que Camões faz da tempestade, gostaria
de ir buscar um detalhe, na verdade uma palavra, para a reflexão que proponho: a
palavra «raízes». Na estância 79, falando dos efeitos devastadores
do vento, o poeta diz: «Quantas árvores velhas arrancaram/ Do vento bravo as
fúrias indignadas/ As forçosas raízes não cuidaram/Que nunca para o Céu fossem
viradas». A leitura da imagem em jogo é imediata: as velhas árvores
reviradas ao contrário, arrancadas com violência ao solo, expõem
dramaticamente, a céu aberto, as próprias raízes. A tempestade descrita por Camões
recorda-nos, assim, a vulnerabilidade, com a qual temos sempre de fazer conta.
As raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da
turbulência da máquina do mundo. Não há super-países, como não há super-homens.
Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência nas nossas forças e
a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que
está sobre este mundo.
O que é amar um país
O Dia de Portugal, e este Dia de Portugal de 2020 em concreto, oferece-nos
a oportunidade de nos perguntarmos o que significa amar um país. A pensadora
europeia Simone Weil, num instigante ensaio destinado a inspirar o
renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Grande Guerra, de cujo
desfecho estamos agora a celebrar o 75º aniversário, escreveu o seguinte: um
país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois
amores distintos. Podemos amar um país idealmente, emoldurando-o para que
permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando que esta não se modifique
jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado
dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos.
São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade.
Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a
inflamar o nosso amor, a chama deste é muito mais pura.
O amor a um país, ao nosso país, pede-nos que coloquemos em prática a
compaixão – no seu sentido mais nobre – e que essa seja vivida como exercício
efetivo da fraternidade. Compaixão e fraternidade não são flores ocasionais.
Compaixão e fraternidade são permanentes e necessárias raízes de que nos
orgulhamos, não só em relação à história passada de Portugal, mas também àquela
hodierna, que o nosso presente escreve. E é nesse chão que precisamos, como
comunidade nacional, de fincar ainda novas raízes.
Nestes últimos meses abateu-se sobre nós uma imprevista tempestade global
que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos
ainda longe de mensurar. A pandemia que principiou como uma crise sanitária
tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espetro, atingindo todos os domínios
da nossa vida comum. Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos
quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade,
saibamos para onde queremos ir. No Canto Sexto d’Os Lusíadas a tempestade não suspendeu a
viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos
no mesmo barco.
Reabilitar o pacto comunitário
O que significa estar no mesmo barco? Permitam-me pegar numa parábola.
Circula há anos, atribuída à antropóloga Margaret Mead, a seguinte
história. Um estudante ter-lhe-ia perguntado qual seria para ela o primeiro
sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os
primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais
recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como
primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino
animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica
fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si
próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a
emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi
deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade,
dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua
segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a
comunidade. É na comunidade que a nossa história começa. Quando do eu fomos
capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração
histórica, espiritual e ética.
É interessante escutar o que diz a etimologia latina da palavra
comunidade (communitas). Associando dois termos, cum e munus, ela
explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional
– não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados sim por um
múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é
essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão
mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.
Celebrar o Dia de Portugal significa, portanto, reabilitar o pacto
comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros,
empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura
da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a
dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não
se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as
drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles
que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos.
Não podemos esquecer a multidão dos nossos concidadãos para quem o Covid19
ficará como sinónimo de desemprego, de diminuição de condições de vida, de empobrecimento
radical e mesmo de fome. Esta tem de ser uma hora de solidariedade. No contexto
do surto pandémico, foi, por exemplo, um sinal humanitário importante a
regularização dos imigrantes com pedidos de autorização de residência,
pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O desafio da integração é,
porém, como sabemos, imenso, porque se trata de ajudar a construir raízes. E
essas não se improvisam: são lentas, requerem tempo, políticas apropriadas e
uma participação do conjunto da sociedade. Lembro-me de um diálogo do filme
do cineasta Pedro Costa, «Vitalina Varela», onde se diz a alguém
que chega ao nosso país: «chegaste atrasada, aqui em Portugal não há nada para
ti». Sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a
possibilidade de lançar raízes.
Fortalecer o pacto intergeracional
Reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto
intergeracional. O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade
em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se
não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e
jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge
do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do
contributo das diversas gerações. É um erro pensar ou representar uma geração
como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros.
A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir
sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte. Por
um lado, eles têm sido as principais vítimas da pandemia, e precisamos chorar
essas perdas, dando a essas lágrimas uma dignidade e um tempo que porventura
ainda não nos concedemos, pois o luto de uma geração não é uma questão privada.
Por outro, temos de rejeitar firmemente a tese de que uma esperança de vida
mais breve determine uma diminuição do seu valor. A vida é um valor sem
variações. Uma raiz de futuro em Portugal será, pelo contrário, aprofundar a
contribuição dos seus idosos, ajudá-los a viver e a assumir-se como mediadores
de vida para as novas gerações. Quando tomei posse como arquivista e
bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar nesse momento
foi a da minha avó materna, uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a
primeira biblioteca. Quando era criança, pensava que as histórias que ela
contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de
circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do
romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta
estava, sem que nós soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o
soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da nossa cultura.
Robustecer o pacto intergeracional é também olhar seriamente para uma das
nossas gerações mais vulneráveis, que é a dos jovens adultos, abaixo dos 35
anos; geração que, praticamente numa década, vê abater-se sobre as suas
aspirações, uma segunda crise económica grave. Jovens adultos, muitos deles com
uma alta qualificação escolar, remetidos para uma experiência interminável de
trabalho precário ou de atividades informais que os obrigam sucessivamente a
adiar os legítimos sonhos de autonomia pessoal, de lançar raízes familiares, de
ter filhos e de se realizarem.
Implementar um novo pacto ambiental
A pandemia veio, por fim, expor a urgência de um novo pacto ambiental. Hoje
é impossível não ver a dimensão do problema ecológico e climático, que têm uma
clara raiz sistémica. Não podemos continuar a chamar progresso àquilo que para
as frágeis condições do planeta, ou para a existência dos outros seres vivos,
tem sido uma evidente regressão. Num dos textos centrais deste século XXI, a
Encíclica Laudato Sii’, o Papa Francisco
exorta a uma «ecologia integral», onde o presente e o futuro da nossa
humanidade se pense a par do presente e do futuro da grande casa comum. Está
tudo conectado. Precisamos de construir uma ecologia do mundo, onde em vez de
senhores despóticos apareçamos como cuidadores sensatos, praticando uma ética
da criação, que tenha expressão jurídica efetiva nos tratados transnacionais,
mas também nos estilos de vida, nas escolhas e nas expressões mais domésticas
do nosso quotidiano.
Uma viagem que fazemos juntos
Camões n’Os Lusíadas não apenas documentou um país em
viagem, mas foi mais longe: representou o próprio país como viagem. Portugal é
uma viagem que fazemos juntos há quase nove séculos. E o maior tesouro que esta
nos tem dado é a possibilidade de ser-em-comum, esta tarefa apaixonante e
sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens
livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são –
corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à
composição ampla e esperançosa do futuro. Portugal é e será, por isso, uma
viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor. Uma
viagem assim – explica Maria Gabriela Llansol, uma das vozes mais
límpidas da nossa contemporaneidade –, não se esgota, nem cancela na fugaz
temporalidade da história, mas constitui uma espécie de «rasto do fulgor»
que exprime a ardente natureza do sentido que interrogamos.
Mosteiro dos Jerónimos, 10 de junho de
2020
Cardeal D. José Tolentino Mendonça
Presidente da Comissão Organizadora das
Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas 2020
(sublinhado nosso)
CARREIRO, José. “O que
é amar um país, Tolentino de Mendonça”. Portugal, Folha de Poesia,
10-06-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/06/o-que-e-amar-um-pais-tolentino-de.html
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