Quando a harmonia chega
Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho
o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.
Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente que
desperta no rumor das casas, forças surgindo da terra inesgotável, crianças que
passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento e irrevogável, a humanidade
está na rua.
E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao
encontro da luz, parece de repente uma ave de fogo.
Carlos de Oliveira, Terra de harmonia. Lisboa: Centro
Bibliográfico de Lisboa, 1950.
Photo credit: Nathalia Arja in Firebird. Choreography by George Balanchine and Jerome Robbins © The George Balanchine Trust. Photo © Karolina Kuras. |
O texto "Quando a harmonia chega” classifica-se como prosa poética, porque se encontra
escrito em prosa, mas apresenta características poéticas, nomeadamente a intenção
estética, a expressão da subjetividade do sujeito poético, a linguagem plurissignificativa
e conotativa e a presença de recursos expressivos. (Paiva: 2013, 218)
Em
consonância com a reflexão metapoética que atravessa os seus poemas, o segundo
volume de Trabalho Poético reúne número considerável de poemas em prosa, vários
deles numa partilha um tanto indistinta entre puro lirismo e narrativa curta,
mas geralmente prevalecendo a lírica. Uma das razões a pesar na decisão é,
certamente, o modo das formas verbais, onde pontua um presente do indicativo ao
serviço da descrição de uma situação que diz o “aqui” e “agora” ou um presente
de valor iterativo a traduzir uma ação reiterada, fruto de uma experiência,
real ou imaginada, sedimentada na memória do poeta. Temos no primeiro caso
“Quando a harmonia chega”, que encerra Terra de Harmonia, e “Estrelas”, de
Sobre o lado esquerdo. Aquele é um poema em prosa, com verbos no presente do
indicativo de valor descritivo. Estruturado em três parágrafos, vive de um
perfeito equilíbrio entre o estar ali do poeta (que observa, sente e escreve),
apresentado no parágrafo inicial, a fervilhante movimentação da labuta diária
matinal, descrita no segundo parágrafo, e a conclusão do último, podendo ser
considerada a “chave de ouro do poema”, como a tinha o soneto.
“As
curtas histórias do conto moderno, o poema em prosa e o fragmento lírico”, Rosa
Maria Goulart. Forma Breve - O conto: o cânone e as margens. N.º
14. 2017. https://doi.org/10.34624/fb.v0i14.172
Esquema interpretativo do poema em prosa “Quando a harmonia chega”, de Carlos de Oliveira:
1.º parágrafo Sujeito poético |
2.º parágrafo Os outros |
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3.º parágrafo A Humanidade (o sujeito poético e os outros)
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Identificação dos recursos expressivos do poema e
explicitação da sua expressividade:
O poema apresenta um forte investimento na linguagem
poética, desde logo através de vários recursos expressivos. Assim, no primeiro
parágrafo, o “coração” – símbolo e metáfora do
sentimento – surge personificado de modo a realçar a tranquilidade
do sujeito poético por ter concluído o seu período de trabalho. Esta alusão expressiva
ao coração, que liga o estado de «alegria» e de «harmonia», pode também ser
entendida como uma sinédoque usada pelo sujeito poético para se referir
a si próprio.
Embora, convencionalmente, o sentimento (“coração”)
e o saber (“sei”) surjam antiteticamente na
literatura, aqui parecem convergir, visto que o sentimento de
serenidade mantém-se, mesmo com o saber de experiência feito
de que a criação artística é uma “alegria” que “se reconstrói e continua”, isto
é, o sujeito poético está consciente de que as palavras, enquanto
matéria-prima, podem, jornada após jornada, ser novamente trabalhadas na
(re)construção da obra de arte de que é exemplo o “livro” que o sujeito
poético escreve.
A metáfora está também presente na expressão
«os construtores terrenos», isto é, os trabalhadores terrenos/da terra (operários
ou lavradores) que ele sente / ouve passar no exterior.
Na penúltima frase, há a
comparação entre a ida da multidão para a rua e o curso “lento e irrevogável” (dupla
adjetivação) do rio que aponta para a inevitabilidade das ações em questão.
Na última frase, está presente uma metáfora,
“ave de fogo”, que remete para a simbologia da Fénix – tal como a Fénix tem a
capacidade de renascer das cinzas, também a humanidade tem a capacidade de
reconstruir a harmonia, no início de cada dia. (Marques:
2013, 271)
Existe ainda uma comparação entre a ave de
fogo e a harmonia (“a harmonia […] parece de repente uma ave de fogo”), transmitindo o caráter
repentino, intenso, quase mágico, da revelação da harmonia: a ave passa
rapidamente – “de repente” –, de forma intensa, qual labareda – “ave de fogo”
–, sendo que a ave de fogo é um ser imaginário, fantástico. (Amaro: 2013)
“Como um rio lento” assim é, diríamos, o ritmo tendencialmente
lento do poema que o espraiar das frases permite.
José Carreiro, “Quando a harmonia chega,
Carlos de Oliveira”, in Folha
de Poesia, 2021-06-10. <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/06/quando-harmonia-chega.html>
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