Conjunto
Homem é tanto uma experiência literária como um ensaio filosófico.
Um pensamento que tem como referências L. Wittgenstein ou Gonçalo M. Tavares e
que articula de forma original conhecimentos da lógica formal, da psicologia e
das neurociências. Apresenta-se como uma simples demonstração da incapacidade
do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma crítica ao
racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma tentativa de utilização
de recursos estilísticos em provas da lógica formal e científicas.
“A
Companhia das Ilhas apresenta Conjunto Homem Jácome Armas”, http://companhiadasilhas.pt/wp-content/uploads/2015/12/press-kit-Conjunto-homem.pdf
[Upload: 2015-12-02]
Carta
1 Da Natureza para o Homem
Caro
Homem, disse a Natureza, sabias que o teu maior erro foi teres inventado o
espelho?
(E
o Homem sentiu-se estúpido: não sabia.)
Mas
não, disse a Natureza.
(E
o Homem sentiu-se ainda mais estúpido: tinha sido enganado.)
Então
a Natureza disse: O teu maior erro foi teres coberto o Mundo com espelhos.
Agora, sem te aperceberes, sempre que olhas pela janela e tentas pintar o que
vês, acabas por pintar-te a ti próprio. No fim, ainda levantas o quadro e
dizes: O Mundo.
(O
Homem ouviu, calou-se e saiu convencido de que ia provar à Natureza que era
capaz de ver o Mundo e todas as suas cores.)
(Até
hoje o Homem falhou.)
Jácome Armas, Conjunto Homem
(ilustrações de Pedro Solá)
Lajes-Pico, Companhia das Ilhas, 2014, p.
11
Olhar
para o mundo nunca consiste numa relação neutra de apreensão. Para ver não
basta abrir os olhos, para compreender não basta traduzir essa percepção para
uma representação consciente. O ver está já condicionado pela representação e
esta nunca é alheia à experiência do objecto. Os condicionamentos implicam-se e
multiplicam-se, numa relação que não é estritamente cumulativa ou linear.
Pretender
possível que a experiência humana tenha um acesso luminoso ao mundo na sua
essência seria negar a própria ideia de cultura. Enquanto cultura, a
experiência dá tanto a ver quanto deturpa para que o visível caiba dentro da
percepção, das linguagens e das representações.
Esta
relação entre a representação e o real surge como o problema central do livro
Conjunto Homem de Jácome Armas (nascido em 1985, especializado em física
teórica). É um livro híbrido e inquieto: nem ensaio nem poesia, mas um espaço
problemático onde os temas são tratados com a liberdade de pensamento e de
experimentação que ambos proporcionam.
No
plano temático, a sua principal virtude é não reduzir o problema ao binómio
representação/objecto, mas mostrar que ele implica um terceiro termo: o
sujeito, o ser humano, entendido como sentimento e espaço de experiência
representacional.
Neste
sentido, perguntar pelo mundo é perguntar pelo homem e pelas suas linguagens,
do mesmo modo que perguntar pelo homem significará inevitavelmente perguntar
pelo mundo no qual se inscreve e com o qual interage. Interrogar a razão será
desembocar no sentimento, interrogar o sentimento será desembocar nos limites
da representação e da própria ideia de verdade. Perguntar pelo objecto é
interrogar o sujeito, interrogar o sujeito é deparar-se com o objecto:
«Proposição
15 As janelas da tua casa são transparentes.
(De
fora, o Mundo pode olhar para dentro e ver o estado da tua casa. Não tão bem
quanto tu: a casa é grande e o alcnce do Mundo também tem limites. Àquilo que
tu chamarias Sentimento o Mundo chamaria humor.)
Þ
As entradas dos sentidos são duplas: se vês o Mundo o Mundo também te vê a ti
e, claro, vês-te a ti próprio.»
Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12
O
livro, de tom aforístico, é um trabalho de interrogação sobre a própria linguagem.
Embora se estruture segundo o esquema aparentemente lógico de um encadeamento
argumentativo (Definição, Proposição, Conjectura, Exemplo, etc.), ele subverte
de facto a linearidade do discurso dedutivo, afirmando uma arbitrariedade
lógica só acessível ao discurso da poesia:
«Lema
14 O humor nunca desaparece.
(Mesmo
que feches todas as janelas o mundo vê sempre uma paisagem: as janelas
fechadas.)»
Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12
Dedicado,
entre outros, a Gonçalo M. Tavares e Wittgenstein (e assumindo com isso as
dívidas e as influências), o livro adopta a dimensão de uma pesquisa que a si
mesmo recusa as condições de verificabilidade. Tratar-se-á mais de construir os
problemas do que de enunciar respostas, ou de não enunciar outras respostas que
não aquelas que possam elas mesmas ser sujeitas à dúvida e à revogação.
Diferente
será a questão de saber qual o critério de verdade (ou de qualidade, assumindo
a preponderância do discurso literário no livro) a partir do qual a validade das
teses é susceptível de ser avaliada. O género ensaio tem sempre como critério
implícito de verdade a argumentabilidade das teses, a garantia de que elas
sejam contra-argumentáveis. A literatura pode prescindir da argumentabilidade,
acolhendo a possibilidade da aporia ou da contradição interna. Talvez resida
aqui um dos principais méritos deste livro de Jácome Armas: ele escapa-se e
questiona os critérios e a autoridade de ambos os registos.
Helder Gomes
Cancela, blogue Contra Mundum
Crítica, 2014-10-16
* * *
Para abrir, isto não
é um artigo de crítica. Nem o Fazendo se dá a ares de espaço para resenhas, nem
este escriba tem bagagem intelectual para uma análise crítica aprofundada a
este livro, não obstante o facto de ter o seu autor em grande estima pessoal e
condições praticamente nulas para escrever sobre o seu trabalho com um mínimo
razoável de objectividade.
A primeira vez que
li Conjunto Homem, quando o Jácome o acabou de escrever há alguns anos,
entusiasmou-me sobretudo o humor acutilante da sua escrita e a refinada crítica
ao New Age que está subjacente, luta em que nos unimos passados alguns anos da
puberdade. A minha reduzida capacidade de analisar o objecto que tinha em mãos
na altura (na verdade eram só algumas folhas agrafadas) deixou-me ao lado de
outras ideias bem mais interessantes que o livro contém. Felizmente a recente
edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma
“embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadas, de ume a oportunidade de
o reler com uma perspectiva mais alargada (e conhecimentos que, embora muito
superficiais, sempre me permitem identificar melhor as referências às ideias
dos “ilustres” a quem o livro é dedicado).
Esses ilustres são
Gonçalves M. Tavares, António Damásio, Godel, Wittgenstein, Russel, Oliver
Sacks e Freud, e o Jácome garantiu-me que foi a eles a quem roubou as ideias.
Apesar desse saque estamos perante algo muito diferente de uma mera colagem de
ideias alheias. A reciclagem é total e, embora formalmente construído como uma
demonstração matemática, está (felizmente) muito longe da tradição textual
académica.
Trata-se, na forma,
de uma demonstração lógica, constituída por proposições, axiomas, teoremas,
etc., estilisticamente entra no plano poético (por vezes da parábola), e
tematicamente no fi losófico, mas na realidade todas estas regras são
subvertidas. Essa é uma das valências, objecto híbrido por natureza o bicho é
difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso.
Conjunto Homem está dividido em três partes – Lógica, Percepção e Sentimento –
e usa dois personagens principais como estereótipos – um matemático e um guru –
que, pela sua visão redutora do mundo, vão sendo maltratados ao longo das
páginas (com, diga-se de passagem, excelente efeito no domínio da exemplificação).
Há um movimento que se vai criando durante o livro, parte da frieza racional no
início e desemboca nos afectos. Os artifícios formais da demonstração e o
encadeamento sequencial dos vários quadros que nos vão sendo apresentados cria,
inicialmente, a ilusão de uma rigidez matemática, ilusão essa que se
desconstrói a si própria até que nos desembrulha um ideal profundamente
humanista. Uma apologia às relações humanas e do homem com a natureza, que se
move entre os extremos do binómio razão/sentimento.
Neste sentido há um
paralelo do livro do Jácome com a obra principal de Baruch Espinoza, Ética, que
é inevitável (para lá das mais óbvias parecenças formais). O livro de Espinoza
também se desenvolve como uma demonstração geométrica. Começa com conceitos
“simples” sobre Deus e a natureza que se vão construindo e complexificando cada
vez mais, chegando cada vez mais próximo duma descrição filosófica do que é o
ser humano até que atinge aquilo que era a intenção inicial do autor: uma
justificação lógica do dever ético; um apelo racional à ética nas relações
humanas. O do Jácome consegue ser mais poético. Esconde quase sempre toda a
bagagem filosófica e científica da qual parte, e dissolve-a por várias camadas de
significado. No fi m chega a algo muito simples, e muito bonito.
Pedro Lucas, jornal Fazendo,
2014
* * *
Wittgenstein,
numa tentativa de construir uma linguagem desambígua e universal, concluiu que
há determinadas coisas que o Homem pensa e sente cuja expressão não poderá́
ser levada a cabo através da recorrência ao discurso lógico e coerente, mas sim
à poesia. Um homem que se dedique à matemática – o Matemático – é um homem
que domina o pensamento lógico. Se pudéssemos atribuir a este uma forma geométrica,
diríamos um quadrado, não pela forma da sua silhueta, mas pela forma como vê o
Mundo: uma estrutura rígida com ângulos rectos. Mas enquanto o Matemático pensa
ser capaz de lidar com um crescente grau de complexidade, simplesmente porque
é capaz de escrever numa folha de papel o símbolo ∞, existe outro tipo de
homem – o Guru – para o qual ∞ não é mais do que um mero limite, inalcançável
pela lógica. Conjunto Homem apresenta-se como uma simples demonstração
da incapacidade do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma
crítica ao racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma
tentativa de utilização de recursos estilísticos em provas da lógica formal e
científicas.
Lélia Pereira Nunes
e Irene Maria Blayer, “Saída: CONJUNTO HOMEM, de Jácome Armas”, in Comunidades,
2014-09-03
Sobre
o autor:
Nascido
no Faial, em 1985, Jácome Armas é, atualmente, um dos mais brilhantes
físicos europeus. Licenciou-se em Engenharia Física pela Universidade de
Aveiro, com uma passagem pela Irlanda, para estudar Física Teórica durante um
ano no Trinity College, em Dublin, ao abrigo do programa Erasmus. Completou o
Mestrado em Estudos Avançados em Matemática Aplicada na Universidade de
Cambridge, Inglaterra, e o Doutoramento em Física Teórica no Niels Bohr Institute, na Dinamarca.
A
sua vida é um bom exemplo de como o mundo se transformou numa pequena aldeia
graças ao desenvolvimento tecnológico. A viver na Dinamarca, ensina Física
Teórica na Universidade de Amesterdão, na Holanda. Há cerca de 10 anos, fundou
o projeto “Science & Cocktails”, que potencia eventos onde se pode falar de ciência
enquanto se ouve música, aprecia arte e desfruta de um bom cocktail, e que tem
expressão na Dinamarca, na Holanda, na Bélgica e na África do Sul. Faz tudo
isto com o Faial e os Açores sempre no pensamento.
Em
2014 a Companhia das Ilhas editou o seu livro Conjunto Homem, um ensaio
filosófico que ilustra bem o seu ímpeto de descrever o mundo não apenas sob a
perspetiva da ciência. Mais recentemente, já em 2021, a prestigiada editora
britânica Cambridge University Press anunciou a publicação de Conversations on Quantum Gravity, livro onde Jácome Armas entrevista 37 físicos sobre a busca
pela teoria da gravidade quântica.
Maria Pinheiro, “Jácome Armas – Espero, um dia, criar um centro de estudos avançados no Faial ou no Pico” in Tribuna das Ilhas, 2021-04-21
https://www.tsf.pt/programa/sinais/emissao/jacome-armas-4014094.html
CARREIRO, José. “Jácome
Armas: Conjunto Homem”. Portugal, Folha de Poesia, 25-09-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/jacome-armas-conjunto-homem.html
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