domingo, 8 de maio de 2022

O naufrágio de Sepúlveda (1552)

 


O "Naufrágio do galeão grande São João" é o primeiro relato da História Trágico-Marítima, publicada em 1735, e do desastre ocorrido em 1552. O relato conhecido como "Naufrágio de Sepúlveda" é o mais famoso entre todos os relatos de naufrágios.

Contudo, devido à existência de um manuscrito e de diversas edições, o que conhecemos é resultado de várias alterações ao longo do tempo (Koiso, K. Limite n.º 12.2, 2018).

 

 

ÍNDICE 

  • Galeão São João
  • Obras que abordam o naufrágio do galeão São João até a publicação da coleção História Trágico-Marítima.
  • Naufrágio de Sepúlveda: uma sequência da transformação da história no decurso das edições. | Kioko Koiso, 2018
  • Verbete da Infopédia: Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá Sua Mulher.
  • Relato coligido por Bernardo Gomes de Brito: Naufrágio do Galeão Grande “São João” na Terra do Natal no Ano de 1552.
  • Profecia do Adamastor (em Os Lusíadas, 1572) sobre o episódio trágico de Manuel de Sousa Sepúlveda e da esposa.
  • Poema em dezassete cantos do Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor De Sá Sua Mulher (Jerónimo Corte Real, 1594).
  • “As sombras da alegoria: trilhos para a exegese do poema de Leonor e Sepúlveda”, Hélio Alves (1999)
  • Adaptação de António Sérgio: Naufrágio de Sepúlveda (1552).
  • Canção “Manuel de Sousa Sepúlveda”, de Fausto Bordalo Pinheiro.

 

Galeão São João

 

Local de partida: Cochim.

Data da partida: 3 de fevereiro de 1552.

Capitão: Manuel de Sousa de Sepúlveda.

Piloto: André Vaz.

Data do naufrágio: 24 de junho de 1552 (?).

Local do naufrágio: Terra de Natal.

Causas do naufrágio: Partida fora da época, mau estado de conservação, sobrecarga, tempestade e má navegação.

Autor: Anónimo.

 

Primeira edição:

Historia da muy notauel perda do galeão grande Sam João. Em que se comtam os innumeraueis traballhos e grandes desauenturas que aconteceram ao Capitão Manoel de Sousa de Sepulueda. E o lamentauel fim que elle e sua molher e filhos e toda a mais gente ouuerão. O qual se perdeo no anno de M.D. Lij. a vinte e quatro de junho, na terra do Natal em xxxj. graos.

 

A edição não declara nem o nome do impressor nem o lugar e a data de impressão.

Segundo o historiador inglês Charles Boxer, a data da publicação desta primeira edição teria sido entre 1555 – ano em que chegou o primeiro relato a Portugal – e 1564 – ano em que saiu do prelo a segunda edição do relato (BOXER, Charles Ralph. Introduction to the História Trágico-Marítima, Revista da Faculdade de Letras, n.º 3, série I, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1957. p. 50).

Raffaella D’Intino, por sua vez, determina que a primeira edição provavelmente saia impressa em 1555 (D’INTINO, Rafaella. Storia Trágico-Marittima. Turim: Giulio Einaud Editore, 1992, p. XXV).

Já a historiadora italiana, Giulia Lanciani, acredita que tenha sido publicada entre 1555 e 1556 (LANCIANI, Giulia. Sucessos e naufrágios das naus portuguesas. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. p. 161. 103).

Um fac-símile da edição encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa.

 

Outras edições:

1564 – Lisboa, por João da Barreira.

1592 – Lisboa, por Antonio Álvares.

1614 – Évora, por Francisco Simões.

1625 – Lisboa, por Antonio Álvares.

 

 

Obras que abordam o naufrágio do galeão São João até a publicação da coleção História Trágico-Marítima.

 

1552

Naufrágio do galeão São João

1555-1564

História da muy notável perda do galeão grande São João (Primeira Edição)

1564

História da muy notável perda do galeão grande São João (Segunda Edição)

1572

Os Lusíadas Luis de Camões

1588

Historiarum Indicarum Libri XVI Giampietro Maffei

 

 

Elegíada Luís Pereira Brandão

1592

História da muy notável perda do galeão grande São João (Terceira Edição)

 

Navfragio e lastimoso svcesso da perdiçam de Manoel de Sousa de Sepulveda,

& Dona Lianor de sua molher & filhos, vindo da India para este Reyno na náo chamada o galião grande S. Ioão que se perdeo no cabo de Boa Esperança, na terra do Natal. E a Perigrinação que tiverão rodeando terras de Cafres, mais de 300 legoas, sua morte. Composto em verso heróico, & octaua rima por Jeronimo Corte Real Jerónimo Corte-Real

1602-06

Operare horarum subciscivarum seu Meditationes historicae, ecc. Filippo Camerarius de Nuremberg

 

Ethiópia oriental e vária história de cousas notáveis do Oriente frei João do Santos

1614

História  da  muy  notável  perda  do  galeão  grande  São  João  (Reedição  da Terceira Edição - 1592)

 

Década Sexta da Ásia Diogo do Couto

1625

História  da  muy  notável  perda  do  galeão  grande  São  João  (Reedição  da Terceira Edição – 1592)

1630?

Laurel de Apolo, com outra rimas Lope de Veja

1633

História  da  muy  notável  perda  do  galeão  grande  São  João  (Reedição  da Terceira Edição – 1592)

1636

Escarmientos para el cuerdo Tirso de Molina

1643?

Ambitio sive Sosa N. Avancini S.J.

1643

L’oceano imboschito in cui pati funesto naufraggio Emanuel Sosa Cavalier Portoghese. Storia descritta dal Dottore Don Giacinto Marmosa da Somera Accademico Eruditissimo, Sientifico e Universale

1667?

Lusiadis Leoninae, sive De gestis lusitanorum leonino carmine decantatis libri duodecim carmem heroicum, ecc. Ignacio Arcomone

1674

Asia Portuguesa Manuel de Faria e Sousa

1728

Volubilis Fortunae cursus ab Emmanuele Sosa Dionis Praeside et Eleonora Ejus Consorte fixux, et consummatus in cruce, ecc. Anonimo jesuíta alemão

1732

Academia universal de varia erudição sagrada, e profana O. P. Manoel Conciencia

1735

História Trágico-MarítimaBernardo Gomes de Brito

 

Naufrágios e outros infortúnios na História Trágico-Marítima da carreira da Índia (Séculos XVI e XVII), Marcelo Kockel, UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2014

 

 

Naufrágio de Sepúlveda: uma sequência da transformação da história no decurso das edições. | Kioko Koiso, 2018

 

Durante a expansão portuguesa nos séculos dezasseis e dezassete, ocorreram na Carreira da Índia naufrágios, alguns dos quais originaram relatos redigidos pelas próprias testemunhas ou por outros indivíduos mais habilitados na redação, posteriormente publicados em fascículos. Estes, que eram designados por "literatura de cordel", ganharam grande popularidade, pois, além do carácter simultaneamente aterrador e aventureiro das suas histórias, as calamidades que descreviam eram parte integrante da vida do povo português, marítimo por natureza e vocação, tendo muita gente perdido familiares ou amigos nos oceanos.


Frontispício do relato do naufrágio do galeão grande São João,
no tomo I, da História Trágico-Marítima.


Em 1735 e 1736, o bibliófilo Bernardo Gomes de Brito organizou uma coletânea de doze narrativas de desastres no mar em dois tomos sob o título da História Trágico-Marítima,1 recorrendo aos fascículos anteriormente em circulação e a outras fontes.

O relato do galeão grande São João foi o primeiro da antologia. Conhecido como "Naufrágio de Sepúlveda", o infortúnio que aconteceu em 1552 na costa oriental africana, no atual Port Edward da África do Sul, é o mais famoso de todos os desastres marítimos, devido à morte impressionante de D. Leonor, esposa do capitão Manuel de Sousa de Sepúlveda. Enquanto os sobreviventes caminhavam em terra desconhecida, contando com o socorro dos conterrâneos em Lourenço Marques, o capitão que perdeu o siso mandou os companheiros entregarem as armas aos autóctones. Ficando os portugueses desarmados, os indígenas despiram-nos e roubaram-nos. Segundo a HTM:

E vendo-ſe D. Leonor deſpida, lançouſe logo no chaõ, e cubrioſe toda com os ſeos cabellos, que eraõ muito compridos, fazendo huma cova na area, onde ſe meteo athè a cintura, ſem mais ſe erguer dalli (Brito 1735: I, 34).

O episódio tem tocado o coração dos leitores ao longo dos séculos. Contudo, como referimos noutras ocasiões, a descrição é divergente no manuscrito anónimo intitulado "Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera Portuguall Manoell de Sousa de Sepulluada por capitão", reunido no volume II da Miscelânea Histórica e conservado na Biblioteca da Ajuda (Koiso 2004: I, 155-156; Idem 2009: I, 325-326), pois D. Leonor faleceu coberta com os seus cabelos, sem cavar uma cova (Mss.: 431v). Afigura-se-nos que a ação de cavar uma cova foi acrescentada na editio princeps (cap. xxix), pois junto com outros episódios, não podemos eliminar a hipótese de o editor da 1.ª edição ter efetuado as intervenções para dramatizar a história (Koiso 2004: I, 157-158).

 

Koiso, K. (2018). “Naufrágio de Sepúlveda: uma sequência da transformação da história no decurso das edições”. Limite: Revista de Estudios Portugueses y de la Lusofonía, 12(2), 67-94. http://www.revistalimite.es/vol12b.html

 

 

Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá Sua Mulher | verbete da Infopédia

 

Esta epopeia trágica retrata a história do naufrágio de Sepúlveda, uma das mais célebres tragédias marítimas da história lusitana que deu origem a uma rica e conhecida tradição intertextual e interdiscursiva, desde a segunda metade do século XVI até à literatura contemporânea, tendo sido cantada por inúmeros autores da literatura portuguesa e estrangeira.

Publicado anonimamente em 1555, logo depois desta tragédia marítima ter ocorrido, o relato do Naufrágio do Sepúlveda depressa se tornou num caso triste e digno de memória na nossa cultura. A sua ávida leitura pelo povo mais simples, bem como pelos nobres e letrados, desencadeou edições sucessivas deste folheto de cordel.

Ainda antes da obra de Jerónimo Corte Real, dois prestigiados poetas quinhentistas imortalizaram esta tragédia: Luís de Camões, em 1572, pela boca do terrível Adamastor (Os Lusíadas, Canto V, est. 46-48); e Luís Pereira Brandão, na Elegíada (Canto VI), de 1588. A triste fortuna de Sepúlveda ultrapassou mesmo as fronteiras nacionais, inspirando outros autores, na escrita poética, ficcional ou dramatúrgica, com destaque para Lope de Veja e Tirso de Molina, bem como algumas peças de teatro novilatino dos jesuítas de seiscentos.

Os motivos de Corte Real para a redação desta obra não eram meramente literários, visto que o autor estava ligado por laços de parentesco às personagens da tragédia - a sua esposa era prima de D. Leonor de Sá, esposa de Sepúlveda. Num total de dezassete cantos, escritos em decassílabos brancos, de fundo elegíaco e mundividência maneirista, esta longa narrativa poética foi considerada pelo poeta a "mais filha do seu engenho", alcançando uma popularidade superior à dos seus outros poemas históricos.

 

Porto Editora – Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá Sua Mulher na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-05-05]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$naufragio-e-lastimoso-sucesso-da-perdicao-de

 


 


Naufrágio do Galeão Grande “São João” na Terra do Natal no Ano de 1552 | Bernardo Gomes de Brito

 

Partiu neste galeão Manuel de Sousa, que Deus perdoe, para fazer esta desaventurada viagem de Cochim, a três de fevereiro do ano de cinquenta e dous. E partiu tão tarde por ir carregar o Coulão, e lá haver pouca pimenta, onde carregou obra de quatro mil e quinhentas, e veio a Cochim acabar de carregar a cópia de sete mil e quinhentas por toda com muito trabalho por causa da guerra que havia no Malavar. E com esta carga se partiu para o Reino podendo levar doze mil; e ainda que a nau levasse pouca pimenta, nem por isso deixou de ir muito carregada de outras mercadorias, no que se havia de ter muito cuidado pelo grande risco que correm as naus muito carregadas.

A treze de Abril veio Manuel de Sousa haver vista da costa do Cabo em trinta e dous graus, e vieram ter tanto dentro, porque havia muitos dias que eram partidos da Índia, e tardaram muito em ver o Cabo por causa das ruins velas que traziam, que foi uma das causas e a principal de seu perdimento; porque o piloto André Vaz fazia seu caminho para ir à terra do cabo das Agulhas, e o capitão Manuel de Sousa lhe rogou que quisesse ir ver a terra mais perto; e o piloto por lhe fazer a vontade, o fez: pela qual razão foram ver a Terra do Natal, e estando à vista dela, se lhe fez o vento bonança, e foi correndo a costa até ver o cabo das Agulhas, com prumo na mão, e sondando; e eram os ventos tais, que se um dia ventava levante, outro se levantava poente. E sendo já em onze de março eram nordeste, sudoeste, com o cabo de Boa Esperança vinte e cinco léguas ao mar, ali lhe deu o vento oeste, e oés-noroeste com muitos fuzis. E sendo perto da noite o capitão chamou o mestre, e o piloto, e lhes perguntou que deviam fazer com aquele tempo, pois lhe era pela proa, e todos responderam, que era bom conselho arribar.

As razões que davam para arribar, foram que a nau era muito grande, e muito comprida, e ia muito carregada de caixaria, e de outras fazendas, e não traziam já outras velas, senão as que traziam nas vergas, que a outra esqui pação levou um temporal que lhe deu na Linha, e estas eram rotas, que se não fiavam nelas; e que se parassem, e o tempo crescesse, e lhe fosse necessário arribar, lhe poderia o vento levar as outras velas que tinham, que era prejuízo para sua viagem, e salvação, que não havia na nau outras; e tais eram aquelas que traziam, que tanto tempo punham em as remendar, como em navegar. E uma das cousas por que não tinham dobrado o Cabo a este tempo, foi pelo tempo que gastavam em as amainar para coserem; e portanto o bom conselho era arribar com os papa-figos grandes ambos baixos, porque dando-lhe somente a vela de proa, era tão velha, que estava mui certo levar-lha o vento da verga pelo grande peso da nau, e ambos juntos um ajudaria ao outro. E vindo assim arribando, que seriam cento e trinta léguas do Cabo, lhe virou o vento ao nordeste, e ao lés-nordeste tão furioso que os fez outra vez correr ao sul, e ao sudoeste; e como o mar que vinha feito de poente, e o que o levante fez meteu tanto mar, que cada balanço que o galeão tomava, parecia que o metia no fundo. E assim correram três dias, e ao cabo deles lhe tornou o vento a acalmar, e ficou o mar tão grande, e trabalhou tanto a nau, que perdeu três machos do leme so-os polegar em que está toda a perdição, ou salvação de uma nau. E isto se não sabia de ninguém, somente o carpinteiro da nau que foi a ver o leme, e achou falta dos ferros, e então se veio ao mestre, e lho disse em segredo, que era um Cristóvão Fernandes da Cunha o Curto. E ele respondeu como bom oficial, e bom homem, que tal cousa não dissesse ao capitão, nem a outra nenhuma pessoa por não causar terror, e medo na gente, e assim o fez.

Andando assim neste trabalho, tornou-lhe outra vez a faltar o vento a lés-sudoeste, e temporal desfeito, e já então parecia que Deus era servido do fim que ao despois tiveram. E indo com a mesma vela arribando outra vez, lançando-lhe o leme à banda, não quis a nau dar por ele, e toda se pôs de ló; o vento que era bravo lhe levou o papa-figo da verga grande. Quando se viram sem vela, e que não havia outra, acudiram com diligência a tomar a vela de proa, e se quiseram antes aventurar a ficar de mar em través, que ficarem sem nenhuma vela. O traquete de proa não era ainda acabado de tomar quando se a nau atravessou, e em se atravessando lhe deram três mares tão grandes, que dos balanços que a nau deu lhe arrebentaram os aparelhos e costeiras da banda de bombordo, que não lhe ficaram mais que as três dianteiras.

E vendo-se com os aparelhos quebrados, e sem nenhuma enxárcia no mastro daquela banda, lançaram a mão a uns viradores para fazerem uns brandais. E estando com esta obra na mão andava o mar muito grosso, e lhes pareceu que por então era obra escusada, e que era melhor conselho cortarem o mastro pelo muito que a nau trabalhava; o vento e o mar era tamanho que lhe não consentia fazer obra nenhuma, nem havia homem que se pudesse ter em pé.

Estando com os machados nas mãos começando já a cortar vem supitamente arrebentar o mastro grande por cima das polés das coroas, como se o cortaram de um golpe, e pela banda do estibordo o lançou o vento ao mar com a gávea, e enxárcia, como que fora uma cousa muito leve; e então lhe cortaram os aparelhos, e enxárcia da outra banda, e todo junto se foi ao mar. E vendo-se sem mastro, nem verga fizeram no pé do mastro grande que lhe ficou, um mastaréu de um pedaço de entena bem pregada, e com as melhores arreataduras que puderam: e nele guarneceram uma verga para a vela da guia, e da outra entena fizeram uma verga para paga-figo, e com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer esta verga grande; e outro tanto fizeram para o mastro de proa; e ficou isto tão remendado e fraco, que bastava qualquer vento para lhos tornar a levar.

E como tiveram tudo guarnecido deram às velas com o vento su-suéste. E como o leme vinha já com três ferros menos, que eram os principais, não lhe quis a nau governar, senão com muito trabalho, e já então as escotas lhe serviam de leme. E indo assim, foi o vento crescendo, e a nau aguçou de ló, e pôs-se toda à corda, sem querer dar pelo leme, nem escotas. E desta vez lhe tornou· a levar o vento a vela grande, e a que lhes servia de guia; e vendo-se outra vez desaparelhados de velas, acudiram à vela da proa, e então se atravessou a nau, e começou de trabalhar: e por o leme ser podre um mar que lhe então deu, lho quebrou pelo meio, e levou-lhe logo ametade, e todos os machos ficaram metidos nas fêmeas. Por onde se deve ter grande recato nos lemes, e velas das naus, por causa de tantos trabalhos, quantos são os que nesta carreira se passam.

Quem entender bem o mar, ou todos os que nisto bem cuidarem, poderão ver qual ficaria Manuel de Sousa com sua mulher, e aquela gente, quando se visse em uma nau em Cabo de Boa Esperança, sem leme, sem mastro, e sem velas, nem de que as poder fazer; e já neste tempo trabalhava a nau tanto, e fazia tanta água, que houveram por melhor remédio para se não irem ao fundo a pique corta rem o mastro da proa que lhe fazia abrir a nau; e estando para o cortar lhe deu um mar tão grande que lho quebrou pelos tamboretes, e lho lançou ao mar sem eles porem mais trabalho que o que tiveram em lhe cortar a enxárcia; e ao cair do mastro deu um golpe muito grande no gurupés, que lho lançou fora da carlinga, e lho meteu por dentro da nau quase todo; e ainda foi algum remédio para lhe ficar alguma árvore; mas como tudo eram prognósticos de maiores trabalhos, nenhuma diligência por seus pecados lhe aproveitava. Ainda a este tempo, não tinham vista da terra, depois que arribaram do Cabo, mas seriam dela quinze até vinte léguas.

Desde que se viram sem mastro, sem leme, e sem velas, ficou-lhe a nau lançada no bordo da terra: e vendo-se Manuel de Sousa, e oficiais sem nenhum remédio, determinaram o melhor que puderam de fazer um leme, e de alguma roupa que traziam de mercadorias, fazerem algum remédio de velas, com que pudessem vir a Moçambique. E logo com muita diligência repartiram a gente, parte na obra do leme, e parte em guarnecer alguma árvore, e a outra em fazer alguma maneira de velas, e nisto gastariam dez dias. E tendo o leme feito, quando o quiseram meter, lhe ficou estreito e curto, e não lhe serviu; e todavia deram às velas que tinham, para ver se haveria algum remédio de salvação, e foram para lançar o leme, e a nau lhe não quis governar de nenhum modo, porque não tinham a bitola do outro que o mar lhe levara, e já então tinham vista da terra. E isto era aos oito de junho; e vendo-se tão perto da costa, e que o mar e o vento os ia levando para a terra, e que não tinham outro remédio senão ir varar, e por se não irem ao fundo, se encomendaram a Deus, e já então ia a nau aberta, que por milagre de Deus se sustentava sobre o mar.

Vendo-se Manuel de Sousa tão perto da terra, e sem nenhum remédio, tomou o parecer de seus oficiais, e todos disseram, que para remédio de salvarem suas vidas do mar, era bom conselho deixarem-se ir assim até serem em dez braças, e como achassem o dito fundo surgissem para lançarem o batel fora para sua desembarcação; e lançaram logo uma manchua com alguns homens que fossem vigiar a praia, onde dava melhor jazigo para poderem desembarcar, com acordo, que tanto que surgissem no batel, e na manchua, depois da gente ser desembarcada, tirarem o mantimento, e armas que pudessem, que a mais fazenda que do galeão se podia salvar, era para mais perdição sua, por causa dos cafres que os haviam de roubar. E sendo assim com este conselho, foram arribando ao som do mar e vento, alargando de uma banda, e caçando da outra; já o leme não governava com mais de quinze palmos de água debaixo da coberta. E indo já a nau perto de terra, lançaram o prumo, e acharam ainda muito fundo, e deixaram-se ir: e dali a um grande espaço, tornou a manchua à nau, e disse que perto dali havia uma praia onde poderiam desembarcar, se a pudessem tomar; e que tudo o mais era rocha talhada, e grande penedia, onde não havia maneira de salvação.

Verdadeiramente que cuidarem os homens bem nisto, faz grande espanto! Vem com este galeão varar em terra de cafres, havendo-o por melhor remédio para suas vidas, sendo este tão perigoso: e por aqui verão para quantos trabalhos estavam guardados Manuel de Sousa, sua mulher, e filhos. Tendo já recado da manchua, trabalharam por ir contra aquela parte, onde lhe demorava a praia, até chegarem ao lugar, que a manchua lhe tinha dito, e já então eram sete braças, onde largaram uma âncora, e após isso com muita diligência guarneceram aparelhos, com que lançaram fora o batel.

A primeira cousa que fizeram, como tiveram batel fora, foi portar outra âncora à terra, e já o vento era mais bonança, e o galeão estava da terra dois tiros de besta. E vendo Manuel de Sousa como o galeão se lhe ia ao fundo sem nenhum remédio, chamou ao mestre, e piloto, e disse-lhes, que a primeira cousa que fizessem fosse pô-lo em terra com sua mulher e filhos, com vinte homens, que estivessem em sua guarda, e após isso tirasse as armas, e mantimentos, e pólvora, e alguma roupa de Cambraia, para ver se havia na terra alguma maneira de resgate de mantimentos. E isto com fundamento de fazer forte naquele lugar com tranqueiras de pipas, e fazerem ali algum caravelão da madeira da nau, em que pudessem mandar recado a Sofala. Mas como já estava de cima, que acabasse este capitão com sua mulher, e filhos, e toda sua companhia, nenhum remédio se podia cuidar, a que a fortuna não fosse contrária; que tendo este pensamento de ali se fazer forte, lhe tornou o vento a ventar com tanto ímpeto, e o mar cresceu tanto, que deu com o galeão à costa, por onde não puderam fazer nada do que cuidaram. A este tempo Manuel de Sousa, sua mulher, e filhos, e obra de trinta pessoas em terra, e toda a mais gente estava no galeão. Dizer o perigo que tiveram na desembarcação o capitão, e sua mulher com estas trinta pessoas, fora escusado; mas por contar história verdadeira, e lastimosa, direi, que de três vezes que a manchua foi à terra se perdeu, donde morreram alguns homens, dos quais, um era o filho de Bento Rodrigues: e até então o batel não tinha ido à terra, que não ousavam de o mandar, porque o mar andava mui bravo, e por a manchua ser mais leve, escapou aquelas duas vezes primeiras.

Vendo o mestre, e piloto, com a mais gente que ainda estava na nau, que o galeão ia sobre a amarra da terra, e entenderem que a amarra de mar se lhe cortara, porque o fundo era sujo, e havia dois dias que estavam surtos, e em amanhecendo ao terceiro dia, que viram que o galeão ficava só sobre a amarra da terra, e o vento começava a ventar, disse o piloto à outra gente, a tempo que já a nau tocava: «Irmãos, antes que a nau abra, e se nos vá ao fundo, quem se quiser embarcar comigo naquele batel o poderá fazer», e se foi embarcar, e fez embarcar o mestre, que era homem velho, e a quem falecia já o espírito por sua idade; e com grande trabalho, por ser o vento forte, se embarcaram no dito batel obra de quarenta pessoas, e o mar andava tão grosso em terra, que deitou o batel em terra feito em pedaços na praia. E quis Nosso Senhor, que desta batelada não morreu ninguém, que foi milagre, por que antes de vir a terra o soçobrou o mar.

O capitão, que o dia antes se desembarcara, andava na praia esforçando os homens, e dando a mão aos que podia, os levava ao fogo que tinha feito, porque o frio era grande. Na nau ficaram ainda o melhor de quinhentas pessoas, a saber: duzentos portugueses, e os mais escravos; em que entrava Duarte Fernandes contramestre do galeão, e o guardião; e estando ainda assim a nau, que já dava muitas pancadas, lhes pareceu bom conselho alargarem a amarra por mão, por que fosse a nau bem à terra, e não a quiseram cortar por que a ressaca os não tornasse para o pego; e como a nau se assentou, em pouco espaço se partiu pelo meio, a saber do mastro avante um pedaço, e outro do mastro à ré, e daí a obra de uma hora aqueles dous pedaços se fizeram em quatro, e como as aberturas foram arrombadas, as fazendas, e caixas vieram acima, e a gente que estava na nau, se lançou sobre a caixaria, e madeira à terra. Morreram em se lançando, mais de quarenta portugueses, e setenta escravos; a mais gente veio à terra por cima do mar, e alguma por baixo, como o Nosso Senhor aprouve; e muita dela ferida dos pregos, e madeira. Dali a quatro horas era o galeão desfeito, sem dele aparecer pedaço tamanho como uma braça, e tudo o mar deitou em terra, com grande tempestade.

E a fazenda que no galeão ia, assim del-rei, como de partes, dizem que valia um conto de ouro: porque desde que a Índia é descoberta, até então não partiu nau ·de lã tão rica. E por se desfazer a nau em tantas migalhas, não pôde o capitão Manuel de Sousa fazer a embarcação que tinha determinado, que não ficou batel, nem cousa sobre que pudesse armar o caravelão, nem de que o fazer, por onde lhe foi necessário tomar outro conselho.

Vendo o capitão. e sua companhia, que não tinham remédio de embarcação, com conselho dos seus oficiais, e dos homens fidalgos, que em sua companhia levava, que era Pantaleão de Sá, Tristão de Sousa, Amador de Sousa, e Diogo Mendes Dourado de Setúbal. Assentaram que deviam de estar naquela praia, onde saíram do galeão. alguns dias, pois ali tinham água, até lhe convalescerem os doentes. Então fizeram suas tranqueiras de algumas arcas, e pipas, e estiveram ali doze dias, e em todos eles lhe não veio falar nenhum negro da terra; somente aos três primeiros apareceram nove cafres em um outeiro, e ali estariam duas horas, sem terem nenhuma fala connosco; e como espantados se tornaram a ir. E dali a dous dias lhe pareceu bem mandarem um homem, e um cafre do mesmo galeão, para ver se achavam alguns negros, que com eles quisessem falar para resgatarem algum mantimento. E estes andaram lá dous dias sem acharem pessoa viva. senão algumas casas de palha despovoadas, por onde entenderam. que os negros fugiram com medo, e então se tornaram ao arraial. e em algumas das casas acharam frechas metidas, que dizem que é o seu sinal de guerra.

Dali a três dias, estando naquele lugar, onde escaparam do galeão, lhe apareceram em um outeiro sete, ou oito cafres com uma vaca presa, e por acenos os fizeram os cristãos descer abaixo, e o capitão com quatro homens foi falar com eles, e depois de os ter seguros, lhe disseram os negros por acenos, que queriam ferro. Então o capitão mandou pôr meia dúzia de pregos, e lhos amostrou, e eles folgaram de os ver, e se chegaram então mais para os nossos, e começaram a tratar o preço da vaca, e estando já concertados, apareceram cinco cafres em outro outeiro, e começaram a bradar por sua língua, que não dessem a vaca a troco de pregos. Então se foram estes cafres, levando consigo a vaca, sem falar palavra. E o capitão lhe não quis tomar a vaca, tendo dela mui grande necessidade para sua mulher, e filhos.

Assim esteve sempre com muito cuidado, e vigia, levantando-se cada noite três e quatro vezes a rondar os quartos, o que era grande trabalho para ele; e assim estiveram doze dias até que a gente lhe convalesceu; no cabo dos quais vendo que já estavam todos para caminhar, os chamou a conselho, sobre o que deviam fazer, e antes de praticarem o caso, lhes fez uma fala desta maneira.

Amigos e senhores; bem vedes o estado a que por nossos pecados somos chegados, e eu creio verdadeiramente que os meus só bastavam para por eles sermos postos em tamanhas necessidades, como vedes que temos; mas é Nosso Senhor tão piedoso, que ainda nos faz tamanha mercê, que nos não fôssemos ao fundo naquela nau, trazendo tanta quantidade de água debaixo das cobertas; prazerá a ele, que pois foi servido de nos levar a terra de cristãos, e os que nesta demanda acabaram com tantos trabalhos, haverá por bem que sejam para salvação de suas almas. Estes dias, que aqui estivemos, bem vedes, senhores, que foram necessários para nos convalescerem os doentes que trazíamos; já agora, Nosso Senhor seja louvado, estão para caminhar; e portanto vos ajuntei aqui para assentarmos que caminho havemos de tomar para remédio de nossa salvação, que a determinação, que trazíamos de fazer alguma embarcação, se nos atalhou como vistes, por não podermos salvar da nau cousa nenhuma, para a podermos fazer. E pois senhores e irmãos, vos vai a vida, como a mim, não será razão fazer, nem determinar cousa sem conselho de todos. Uma mercê vos quero pedir, a qual é que me não desampareis, nem deixeis, dado caso que eu não posso andar tanto, como os que mais andarem, por causa de minha mulher, e filhos. E assim todos juntos quererá Nosso Senhor pela sua misericórdia ajudar-nos.

Depois de feita esta fala, e praticarem todos no caminho que haviam de fazer, visto não haver outro remédio, assentaram que deviam de caminhar com a melhor ordem que pudessem ao longo dessas praias caminho do rio, que descobriu Lourenço Marques, e lhe prometeram de nunca o desamparar: e logo o puseram por obra; ao qual rio haveria cento e oitenta léguas por costa, mas eles andaram mais de trezentas pelos muitos rodeios, que fizeram em quererem passar os rios, e brejos, que achavam no caminho: e despois tornavam ao mar, no que gastaram cinco meses e meio.

Desta praia onde se perderam em 31. graus aos sete de julho de cinquenta e dous, começaram a caminhar com esta ordem, que se segue: a saber Manuel de Sousa com sua mulher e filhos com oitenta portugueses, e com escravos, e André Vaz o piloto na sua companhia com uma bandeira com um crucifixo erguido, caminhava na vanguarda, e D. Leonor sua mulher, levavam-na escravos em um andor. Logo atrás vinha o mestre do galeão com a gente do mar, e com as escravas. Na retaguarda caminhava Pantaleão de Sá com o resto dos portugueses, e escravos, que seriam até duzentas pessoas, e todas juntas seriam quinhentas; das quais eram cento e oitenta portugueses. Desta maneira caminharam um mês com muitos trabalhos, fomes, e sedes, porque em todo este tempo não comiam senão o arroz que escapara do galeão, e algumas frutas do mato, que outros mantimentos da terra não achavam, nem quem os vendesse; por onde passaram tão grande esterilidade, qual se não pode crer, nem escrever.

Em todo este mês poderiam ter caminhado cem léguas: e pelos grandes rodeios, que faziam no passar dos rios, não teriam andado trinta léguas por costa: e já então tinham perdidas dez, ou doze pessoas; só um filho bastardo de Manuel de Sousa de dez ou onze anos, que vindo já muito fraco de fome, ele, e um escravo, que o trazia às costas, se deixaram ficar atrás. Quando Manuel de Sousa perguntou por ele, que lhe disseram que ficava atrás obra de meia légua, esteve para perder o sizo, e por lhe parecer que vinha na traseira com seu tio Pantaleão de Sá, como algumas vezes acontecia, o perdeu assim; e logo prometeu quinhentos cruzados a dous homens, .que tornasse em busca dele, mas não houve quem os quisesse aceitar, por ser já perto da noite, e por causa dos tigres, e leões; porque como ficava o homem atrás, o comiam; por onde lhe foi forçado não deixar o caminho que levava, e deixar assim o filho, onde lhe ficaram os olhos. E aqui se poderá ver quantos trabalhos foram os deste fidalgo antes de sua morte. Era também perdido António de Sampaio sobrinho de Lopo Vaz de Sampaio, governador que foi da Índia: e cinco, ou seis homens portugueses, e alguns escravos de pura fome, e trabalho do caminho.

Neste tempo tinham já pelejado algumas vezes, mas sempre os cafres levavam a pior, e em uma briga lhe mataram Diogo Mendes Dourado, que até sua morte tinha pelejado mui bem como valente cavaleiro. Era tanto o trabalho, assim da vigia, como da fome, e caminho, que cada dia desfalecia mais a gente, e não havia dia que não ficasse uma ou duas pessoas por essas praias, e pelos matos, por não poderem caminhar; e logo eram comidos dos tigres, e serpentes, por haver na terra grande quantidade. E certo, que ver ficar estes homens, que cada dia lhe ficavam vivos por esses desertos, era cousa de grande dor e sentimento para uns, e para outros; porque o que ficava, dizia aos outros que caminhavam de sua companhia, por ventura a pais, e a irmãos, e amigos, que se fossem muito embora, que os encomendassem ao Senhor Deus. Fazia isto tamanha mágoa ver ficar o parente, e o amigo sem lhe poder valer, sabendo que dali a pouco espaço havia de ser comido de feras alimárias; que pois faz tanta mágoa a quem o ouve, quanta mais fará a quem o viu e passou.

Com grandíssima desaventura indo assim prosseguindo, ora se metiam no sertão a buscar de comer, e a passar rios, e se tornavam ao longo do mar subindo serras mui altas; ora descendo outras de grandíssimo perigo: e não bastavam ainda estes trabalhos, senão outros muitos, que os cafres lhe davam. E assim caminharam obra de dous meses e meio, e tanta era a fome, e a sede que tinham, que os mais dos dias aconteciam cousas de grande admiração, das quais contarei algumas mais notáveis.

Aconteceu muitas vezes entre esta gente vender-se um púcaro de água de um quartilho por dez cruzados, e em um caldeirão que levava quatro canadas, se fazia cem cruzados; e porque nisto às vezes havia desordem, o capitão mandava buscar um caldeirão dela, por não haver outra vasilha maior na companhia, e dava por isso a quem a ia buscar cem cruzados: e ele por sua mão a repartia, e a que tomava para sua mulher, e filhos, era a oito e dez cruzados o quartilho; e pela mesma maneira repartia a outra, de modo que sempre pudesse remediar, que com o dinheiro, que em dia se fazia naquela água, ao outro houvesse quem a fosse buscar, e se pusesse a esse risco pelo interesse. E além disto passavam grandes fomes, e davam muito dinheiro por qualquer peixe que se achava na praia, ou por qualquer animal do monte.

Vindo caminhando por suas jornadas, segundo era a terra que achavam, e sempre com os trabalhos que tenho dito: seriam já passados três meses que caminhavam com determinação de buscar aquele rio de Lourenço Marques, que é a aguada de Boa Paz. Havia já muitos dias que se não mantinham senão de frutas, que acaso se achavam, e de ossos torrados: e aconteceu muitas vezes vender-se no arraial uma pele de uma cobra por quinze cruzados: e ainda que fosse seca a lançavam na água, e assim a comiam.

Quando caminhavam pelas praias, mantinham-se com marisco, ou peixe, que o mar lançava fora. E no cabo deste tempo vieram ter com um cafre, senhor de duas aldeias, homem velho, e que lhes pareceu de boa condição, e assim o era pelo agasalho, que nele acharam, e lhes disse, que não passassem dali, que estivessem em sua companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse; porque na verdade aquela terra era falta de mantimentos, não por ela os deixar de dar, senão porque os cafres são homens que não semeiam senão muito pouco, nem comem senão do gado bravo que matam.

Assim que este rei cafre apertou muito com Manuel de Sousa, e sua gente que estivera com ele, dizendo-lhe que tinha guerra com outro rei, por onde eles haviam de passar, e queria sua ajuda: e que se passassem avante, que soubessem certo que haviam de ser roubados deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira que pelo proveito, e ajuda que esperava desta companhia, e também pela notícia que já tinha de portugueses por Lourenço Marques, e António Caldeira, que ali estiveram, trabalhava quanto podia, por que dali não passassem; e estes dous homens lhe puseram nome Garcia de Sá, por ser velho, e ter muito o parecer com ele, e ser bom homem, que não há dúvida, senão que em todas as nações há maus, e bons; e por ser tal fazia agasalhos; e honrava aos portugueses: e trabalhou quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhe que haviam de ser roubados daquele rei com que ele tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis dias. Mas como parece que estava determinado acabar Manuel de Sousa nesta jornada com a maior parte de sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste reizinho, que os desenganava.

Vendo o rei, que todavia o capitão determinava de se partir dali, lhe pediu que antes que se partisse, o quisesse ajudar com alguns homens de sua companhia contra um rei, que atrás lhe ficava; e parecendo-lhe a Manuel de Sousa, e aos portugueses, que se não podiam escusar de fazer o que lhe pedia, assim pelas boas obras, e agasalho, que dele receberam, como por razão de o não escanda lizar, que estava em seu poder, e de sua gente; pediu a Pantaleão de Sá seu cunhado, que quisesse ir com vinte homens portugueses ajudar ao rei seu amigo; foi Pantaleão de Sá com os vinte homens, e quinhentos cafres, e seus capitães, e tornaram atrás por onde eles já tinham passado seis léguas, e peleijaram com um cafre, que andava levantado, e tomaram-lhe todo o gado, que são os seus despojos, e trouxeram-no ao arraial adonde estava Manuel de Sousa com el-rei, e nisto gastaram cinco ou seis dias.

Depois que Pantaleão de Sá veio daquela guerra em que foi ajudar ao reizinho, e a gente que com ele foi, e descansou do trabalho que lá tiveram; tornou o capitão a fazer conselho sobre a determinação de sua partida, e foi tão fraco, que assentaram que deviam de caminhar, e buscar aquele rio de Lourenço Marques, e não sabiam que estavam nele. E porque este rio é o da água de Boa Paz com três braços, que todos vêm entrar ao mar em uma foz, e eles estavam no primeiro: E sem embargo de verem ali uma gota vermelha, que era sinal de virem já ali portugueses, os cegou a sua fortuna, que não quiseram senão caminhar avante. E porque haviam de passar o rio, e não podia ser senão em almadias, por ser grande, quis o capitão ver se podia tomar sete ou oito almadias, que estavam fechadas com cadeias, para passar nelas o rio, que el-rei não lhes queria dar, porque toda a maneira buscava para não passarem, pelos desejos que tinha de os ter consigo. E para isso mandou certos homens a ver se podiam tomar as almadias; dous dos quais vieram e disseram que lhe era cousa dificultosa para se poder fazer. E os que se deixaram ficar já com malícia, houveram uma das almadias à mão, e embarcaram-se nela, e foram-se pelo rio abaixo, e deixaram a seu capitão. E vendo ele que nenhuma maneira havia de passar o rio, senão por vontade do rei, lhe pediu o quisesse mandar passar da outra banda nas suas almadias, e que ele pagaria bem à gente que os levasse; e pelo contentar lhe deu algumas das suas armas, por que o largasse, e o mandasse passar.

Então o rei foi em pessoa com ele, e estando os portugueses receosos de alguma traição ao passar do rio, lhe rogou o capitão Manuel de Sousa, que se tornasse ao lugar com sua gente, e que o deixasse passar à sua vontade com a sua, e lhe ficassem somente os negros das almadias. E como no reizinho negro não havia malícia, mas antes os ajudava no que podia, foi cousa leve de acabar com ele que se tornasse para o lugar, e logo se foi, e deixou passar à sua vontade. Então mandou Manuel de Sousa passar trinta homens da outra banda nas almadias, com três espingardas; e como os trinta homens foram da outra banda, o capitão, sua mulher e filhos passaram além, e após eles toda a mais gente, e até então nunca foram roubados, e logo se puseram em ordem de caminhar.

Haveria cinco dias que caminhavam para o segundo rio, e teriam andado vinte léguas quando chegaram ao rio do meio, e ali acharam negros, que os encaminharam para o mar, e isto era já ao sol-posto; e estando à borda do rio, viram duas almadias grandes, e ali assentaram o arraial em uma areia onde dormiram aquela noite; e este rio era salgado, e não havia nenhuma água doce ao redor, senão uma que lhe ficava atrás. E de noite foi a sede tamanha no arraial, que se houveram de perder; quis Manuel de Sousa mandar buscar alguma água, e não houve quem quisesse ir menos de cem cruzados cada caldeirão, e os mandou buscar, e em cada um dia fazia duzentos; e se o não fizera assim, não se pudera valer.

E sendo o comer tão pouco como atrás digo, a sede era desta maneira; porque queria Nosso Senhor que a água lhe servisse de mantimentos. Estando naquele arraial ao outro dia perto da noite, viram chegar as três almadias de negros, que lhe disseram por uma negra do arraial, que começava já entender alguma cousa, que ali viera um navio de homens como eles, e que já era ido. Então lhe mandou dizer Manuel de Sousa se os queriam passar da outra banda: e os negros responderam, que era já noite (porque cafres nenhuma cousa fazem de noite) que ao outro dia os passariam se lhe pagasse. Como amanheceu vieram os negros com quatro almadias, e sobre preço de uns poucos de pregos, começaram a passar a gente, passando primeiro o capitão alguma gente para guarda do passo, e embarcando-se em uma almadia com sua mulher e filhos, para da outra banda esperar o resto da sua companhia; e com ele iam as outras três almadias carregadas de gente.

Também se diz que o capitão vinha já naquele tempo maltratado do miolo, da muita vigia, e muito trabalho, que carregou sempre nele, mais que em todos os outros. E por vir já desta maneira, e cuidar que lhe queriam os negros fazer alguma traição, lançou mão à espada, e arrancou dela para os negros, que iam remando dizendo: «Perros, aonde me levais?»

Vendo os negros a espada nua, saltaram ao mar, e ali esteve em risco de se perder. Então lhe disse sua mulher, e alguns que com eles iam, que não fizesse mal aos negros, que se perderiam. Em verdade, quem conhecera a Manuel de Sousa, e soubera sua discrição, e brandura, e lhe vira fazer isto, bem poderia dizer que já não ia em seu perfeito juízo; porque era discreto, e bem atentado: e dali por diante ficou de maneira, que nunca mais governou a sua gente, como até ali o tinha feito. E chegando da outra banda, se queixou muito da cabeça, e nela lhe ataram toalhas, e ali se tornaram a ajuntar todos.

Estando já da outra banda para começar a caminhar, viram um golpe de cafres, e vendo-os se puseram em som de pelejar, cuidando que vinham para os roubar; e chegando perto da nossa gente, começaram a ter fala uns com os outros, perguntando os cafres aos nossos, que gente era, ou que buscava? Responderam-lhe que eram cristãos, que se perderam em uma nau, e que lhe rogavam  os guiassem para um rio grande que estava mais avante, e que se tinham mantimentos, que lhos trouxessem, e lhos comprariam. E por uma cafra, que era de Sofala, lhe disseram os negros, que se queriam mantimentos, que fossem com eles a um lugar onde estava o seu rei, que lhe faria muito agasalho. A este tempo seriam ainda cento e vinte pessoas; e já então D. Leonor era uma das que caminhavam a pé, e sendo uma mulher fidalga, delicada, e moça, vinha por aqueles ásperos caminhos tão trabalhosos, como qualquer robusto homem do campo, e muitas vezes consolava as da sua companhia, e ajudava a trazer seus filhos. Isto foi depois que não houve escravos para o andor em que vinha. Parece verdadeiramente que a graça de Nosso Senhor supria aqui; porque sem ela não pudera uma mulher tão fraca, e tão pouco costumada a trabalhos, andar tão compridos, e ásperos caminhos, e sempre com tantas fomes, e sedes, que já então passavam de trezentas léguas as que tinham andado, por causa dos grandes rodeios.

Tornando à história. Despois que o capitão, e sua companhia tiveram entendido, que o rei estava perto dali, tomaram os cafres por sua guia; e com muito recato caminharam com eles para o lugar que lhe diziam, com tanta fome, e sede, quanto Deus sabe. Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e como chegaram, lhe mandou dizer o cafre, que não entrassem no lugar; porque é coisa que eles muito escondem, mas que lhe fossem pôr ao pé de umas árvores, que lhe mostraram, e que ali lhe mandaria dar de comer. Manuel de Sousa o fez assim, como homem que estava em terra alheia, e que não tinham sabido tanto dos cafres, como agora sabemos por esta perdição, e pela da nau S. Bento, que cem homens de espingarda atravessariam toda a Cafraria; porque maior medo tem delas, que do mesmo demónio.

Despois de assim estarem agasalhados à sombra das árvores, lhes começou a vir algum mantimento por seu resgate de pregos. E ali estiveram cinco dias, parecendo-lhes que poderiam estar até vir navio da Índia, e assim lho diziam os negros. Então pediu Manuel de Sousa uma casa ao rei cafre para se agasalhar com sua mulher e filhos. Respondeu-lhe o cafre que lha dariam; mas que a sua gente não podia estar ali junta, porque se não poderiam manter por haver falta de mantimentos na terra: que ficasse ele com sua mulher e filhos, com algumas pessoas quais ele quisesse, e a outra gente se repartisse pelos lugares; e que ele lhe mandaria dar mantimentos, e casas até vir algum navio. Isto era a ruindade do rei, segundo parece, pelo que ao despois lhe fez; por onde está clara a razão que disse, que os cafres têm grande medo de espingardas; porque não tendo ali os portugueses mais que cinco espingardas, e até cento e vinte homens se não atreveu o cafre a pelejar com eles; e a fim de os roubar os apartou uns dos outros para muitas partes, como homens que estavam tão chegados à morte de fome; e não sabendo quanto melhor fora não se apartarem, se entregaram à fortuna, e fizeram a vontade àquele rei, que tratava sua perdição, e nunca quiseram tomar o conselho do reizinho, que lhes falava verdade, e lhes fez o bem que pôde. E por aqui verão os homens, como nunca hão de dizer, nem fazer cousa em que cuidem que eles são os que acertam ou podem, senão pôr tudo nas mãos de Deus Nosso Senhor.

Despois que o rei cafre teve assentado com Manuel de Sousa, que os portugueses se dividissem por diversas aldeias, e lugares para se poderem manter, lhe disse também que ele tinha ali capitães seus, que haviam de levar a sua gente, a saber, cada um os que lhe entregassem para lhe darem de comer; e isto não podia ser senão com ele mandar aos portugueses, que deixassem as armas, porque os cafres haviam medo deles enquanto as viam, e que ele as mandaria meter em uma casa, para lhas dar tanto que viesse o navio dos portugueses.

Como Manuel de Sousa já então andava muito doente, e fora de seu perfeito juízo, não respondeu, como fizera estando em seu entendimento; respondeu, que ele falaria com os seus. Mas como a hora fosse chegada, em que havia de ser roubado, falou com eles, e lhes disse: que nem havia de passar dali, de uma ou de outra maneira havia de buscar remédio de navio, ou outro qualquer que Nosso Senhor dele ordenasse; porque aquele rio em que estavam era de Lourenço Marques; e o seu piloto André Vaz assim lho dizia: que quem quisesse passar dali, que o poderia fazer, se lhe bem parecesse, mas que ele não podia, por amor de sua mulher e filhos, que vinha já mui debilitada dos grandes trabalhos, que não podia já andar, nem tinha escravos que o ajudassem. E portanto a sua determinação era acabar com sua família, quando Deus disso fosse servido; e que lhe pedia, que os que dali passassem, e fossem ter com alguma embarcação de portugueses, que lhe trouxessem ou mandassem as novas, e os que ali quisessem ficar com ele, o poderiam fazer; e por onde ele passasse passariam eles.

E porém que para os negros se fiarem deles e não cuidarem que eram ladrões, que andavam a roubar, que era necessário entregarem as armas, para remediar tanta desaventura como tinham de fome havia tanto tempo. E já então o parecer de Manuel de Sousa, e dos que com ele consentiram, não eram de pessoas que estavam em si; porque se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo, nunca os negros chegaram a eles. Então mandou o capitão que pusessem as armas, em que despois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade de alguns, e muito mais contra a de D. Leonor, as entregaram; mas não houve quem o contradissesse senão ela, ainda que lhe aproveitou pouco. Então disse: «Vós entregais as armas, agora me dou por perdida com toda esta gente.» Os negros tomaram as armas, e as levaram a casa do rei cafre.

Tanto que os cafres viram os portugueses sem armas, como já tinham concertado a traição os começaram logo a apartar, e roubar, e os levaram por esses matos, cada um como lhe caía a sorte. E acabado de chegarem aos lugares, os levaram já despidos, sem lhe deixar sobre si cousa alguma, e com muita pancada os lançavam fora das aldeias. Nesta companhia não ia Manuel de Sousa, que com sua mulher e filhos, e com o piloto André Vaz, e obra de vinte pessoas ficavam com o rei, porque traziam muitas joias, e rica pedraria, e dinheiro; e afirmam que o que esta companhia trouxe até ali, valia mais de cem mil cruzados. Como Manuel de Sousa com sua mulher, e com aquelas vinte pessoas foi apartado da gente, foram logo roubados de tudo o que traziam, somente os não despiu; e o rei lhe disse que se fosse muito embora em busca de sua companhia, que lhe não queria fazer mais mal, nem tocar em sua pessoa, nem de sua mulher. Quando Manuel de Sousa isto viu, bem se lembraria quão grande erro tinha feito em dar as armas, e foi força de fazer o que lhe mandavam, pois não era mais em sua mão.

Os outros companheiros, que eram noventa, em que entrava Pantaleão de Sá, e outros três fidalgos, ainda que todos foram apartados uns dos outros, poucos e poucos, segundo se acertaram, despois que foram roubados, e despidos pelos cafres a quem foram entregues por o rei, se tornaram a ajuntar; porque era perto uns dos outros, e juntos bem maltratados, e bem tristes, faltando-lhe as armas, vestidos, e dinheiro para resgate de seu mantimento, e sem o seu capitão, começaram de caminhar.

E como já não levavam figura de homens, nem quem os governasse, iam sem ordem, por desvairados caminhos: uns por matos, e outros por serras, se acabaram de espalhar, e já então cada um não curava mais que fazer aquilo em que lhe parecia que podia salvar a vida, quer entre cafres, quer entre outros mouros, porque já então não tinha conselho, nem quem os ajuntasse para isso. E como homens que andavam já de todo perdidos, deixarei agora de falar neles, e tornarei a Manuel de Sousa, e a desditosa de sua mulher e filhos.

Vendo-se Manuel de Sousa roubado, e despedido del-rei, que fosse buscar sua companhia, e que já então não tinha dinheiro, nem armas, nem gente para as tomar: e dado caso que já havia dias que vinha doente da cabeça, todavia sentiu muito esta afronta. Pois que se pode cuidar de uma mulher muito delicada, vendo-se em tantos trabalhos, e com tantas necessidades; e sobre todas, ver seu marido diante de si tão maltratado, e que não podia já governar, nem olhar por seus filhos? Mas como mulher de bom juízo, com o parecer desses homens, que ainda tinha consigo, começaram a caminhar por esses matos, sem nenhum remédio, nem fundamento, somente o de Deus. A este tempo estava ainda André Vaz o piloto em sua companhia, e o contramestre, que nunca a deixou, e uma mulher ou duas portuguesas, e algumas escravas. Indo assim caminhando, lhes pareceu bom conselho seguir os noventa homens, que avante iam roubados, e havia dous dias, que caminhavam, seguindo suas pisadas. E D. Leonor ia já tão fraca, tão triste, e desconsolada, por ver seu marido da maneira que ia, e por se ver apartada da outra gente, e ter por impossível poder-se ajuntar com eles, que cuidar bem nisto é cousa para quebrar os corações! Indo assim caminhando, tornaram outra vez os cafres a dar nele, e em sua mulher, e em esses poucos que iam em sua companhia, e ali os despiram, sem lhe deixarem sobre si cousa alguma. Vendo-se ambos desta maneira com duas crianças muito tenras diante de si deram graças a Nosso Senhor.

Aqui dizem que D. Leonor se não deixava despir, e que às punhadas, e às bofetadas se defendia, porque era tal, que queria antes que a matassem os cafres, que ver-se nua diante da gente, e não há dúvida que logo ali acabara sua vida, se não fora Manuel de Sousa, que lhe rogou se deixasse despir, que lhe lembrava que nasceram nus, e pois Deus daquilo era servido, que o fosse ela. Um dos grandes trabalhos que sentia, era verem dous meninos pequenos seus filhos, diante de si chorando, pedindo de comer, sem lhe poderem valer. E vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se erguer dali. Manuel de Sousa foi então a uma velha sua aia, que lhe ficara ainda uma mantilha rota, e lha pediu para cobrir D. Leonor, e lha deu; mas contudo nunca mais se quis erguer daquele lugar, onde se deixou cair, quando se viu nua.

Em verdade, que não sei quem por isto passe sem grande lástima, e tristeza. Ver uma mulher tão nobre, filha, e mulher de fidalgo tão honrado, tão maltratada, e com tão pouca cortesia! Os homens que estavam ainda em sua companhia, quando viram a Manuel de Sousa, e sua mulher despidos, afastaram-se deles um pedaço, pela vergonha, que houveram de ver assim seu capitão, e D. Leonor. Então disse ela a André Vaz o piloto: «Bem vedes como estamos, e que já não podemos passar daqui, e que havemos de acabar por nossos pecados: ide-vos muito embora, fazei por vos salvar, e encomendai-nos a Deus; e se fordes à Índia, e a Portugal em algum tempo, dizei como nos deixastes a Manuel de Sousa, e a mim com meus filhos.» E eles vendo que por sua parte não podiam remediar a fadiga de seu capitão, nem a pobreza, e miséria de sua mulher e filhos, se foram por esses matos, buscando remédio de vida.

Despois que André Vaz se apartou de Manuel de Sousa e sua mulher, ficou com ele Duarte Fernandes contramestre do galeão, e algumas escravas, das quais se salvaram três, que vieram a Goa, que contaram como viram morrer D. Leonor. E Manuel de Sousa ainda que estava maltratado do miolo, não lhe esquecia a necessidade que sua mulher e filhos passavam de comer. E sendo ainda manco de uma ferida que os cafres lhe deram em uma perna, assim maltratado, se foi ao mato buscar frutas para lhe dar de comer; quando tornou, achou D. Leonor muito fraca, assim de fome, como de chorar, que despois que os cafres a despiram, nunca mais dali se ergueu, nem deixou de chorar; e achou um dos meninos mortos, e por sua mão o enterrou na areia. Ao outro dia tornou Manuel de Sousa ao mato a buscar alguma fruta, e quando tornou, achou D. Leonor falecida, e o outro menino, e sobre ela estavam chorando cinco escravos com grandíssimos gritos.

Dizem que ele não fez mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali, e assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma mão, por espaço de meia hora, sem chorar, nem dizer cousa alguma; estando assim com os olhos postos nela: e no menino fez pouca conta. E acabando este espaço se ergueu, e começou a fazer uma cova na areia com ajuda das escravas, e sempre sem se falar palavra a enterrou, e o filho com ela, e acabado isto, tornou a tomar o caminho que fazia, quando ia a buscar as frutas, sem dizer nada às escravas, e se meteu pelo mato, e nunca mais o viram. Parece que andando por esses matos, não há dúvida senão que seria comido de tigres, e leões. Assim acabaram sua vida, mulher e marido, havendo seis meses, que caminhavam por terras de cafres com tantos trabalhos.

Os homens que escaparam de toda esta companhia, assim dos que ficaram com Manuel de Sousa quando foi roubado, como dos noventa, que iam diante dele caminhando, seriam até oito portugueses, e catorze escravos, e três escravas das que estavam com D. Leonor ao tempo que faleceu. Entre os quais foi Pantaleão de Sá. e Tristão de Sousa, e o piloto André Vaz, e Baltasar de Sequeira, e Manuel de Castro, e este Álvaro Fernandes. E andando estes já na terra sem esperança de poderem vir à terra de cristãos; foi ter àquele rio um navio em que ia um parente de Diogo de Mesquita fazer marfim, onde achando novas que havia portugueses perdidos pela terra, os mandou buscar, e os resgatou a troco de contas, e cada pessoa custaria dous vinténs de contas, que entre os negros é cousa que eles mais estimam; e se neste tempo fora vivo Manuel de Sousa, também fora resgatado. Mas parece que foi assim melhor para sua alma, pois Nosso Senhor foi servido. E estes foram ter a Moçambique a vinte e cinco de maio de mil e quinhentos e cinquenta e três anos.

Pantaleão de Sá andando vagamundo muito tempo pelas terras dos cafres, chegou ao paço quase consumido com fome, nudez, e trabalho de tão dilatado caminho, e chegando-se à porta do paço, pediu aos áulicos lhe alcançassem do rei algum subsídio; recusaram eles pedir-lhe tal cousa, desculpando-se com uma grande enfermidade, que o rei havia tempos padecia: e perguntando-lhes o ilustre português, que enfermidade era, lhe responderam, que uma chaga em uma perna tão pertinaz, e corrupta, que todos os instantes lhe esperavam a morte; ouviu ele com atenção, e pediu fizessem sabedor ao rei da sua vinda, afirmando que era médico, e que poderia talvez restituir-lhe a saúde; entram logo muito alegres, noticiam-lhe o caso, pede instantemente o rei, que lho levem dentro; e despois que Pantaleão de Sá viu a chaga lhe disse: «Tenha muita confiança, que facilmente receberá saúde», e saindo para fora, se pôs a considerar a empresa em que se tinha metido, donde não poderia escapar com vida, pois não sabia cousa alguma que pudesse aplicar-lhe; como quem tinha aprendido mais a tirar vidas, que a curar achaques para as conservar. Nesta consideração, como quem já não fazia caso da sua, e apetecendo antes morrer uma só vez do que tantas; ourina na terra, e feito um pouco de lodo, entrou dentro a pôr-lho na quase incurável chaga. Passou pois aquele dia, e ao seguinte, quando o ilustre Sá esperava mais a sentença da sua morte, do que remédio algum para a vida tanto sua como do rei, saem fora os palacianos com notável alvoroço, e querendo-o levar em braços, lhes perguntou a causa de tão súbita alegria; responderam que a chaga com o medicamento que se lhe aplicara, gastara todo o podre, e aparecia só a carne, que era sã, e boa. Entrou dentro o fingido médico, e vendo que era como eles afirmavam, mandou continuar com o remédio; com o qual em poucos dias cobrou inteira saúde; o que visto, além de outras honras puseram a Pantaleão de Sá em um altar, e venerando-o como divindade, lhe pediu el-rei ficasse no seu paço, oferecendo-lhe ametade do seu Reino; e senão que lhe faria tudo o que pedisse: recusou Pantaleão de Sá a oferta; afirmando lhe era preciso voltar para os seus. E mandando o rei trazer uma grande quantia de ouro, e pedraria, o premiou grandemente, mandando juntamente aos seus o acompanhassem até Moçambique.

Fonte: Naufrágio de Sepúlveda: história trágico-marítima, Bernardo Gomes de Brito. Lisboa, Parque EXPO 98, S. A., julho de 1996. ISBN: 972-6127-37-5

Título original: Naufrágio do Galeão Grande “São João” na Terra do Natal no Ano de 1552, Bernardo Gomes de Brito (compilação) (1735 e 1736), História Trágico-Marítima (2 Volumes), Lisboa, Officina da Congregação do Oratório.

 

 

Profecia do Adamastor (em Os Lusíadas, 1572) sobre o episódio trágico de Manuel de Sousa Sepúlveda e da esposa


O episódio trágico da morte da família Sepúlveda é relatado pelo Adamastor com algum pormenor. O destaque dado a este acontecimento justifica-se por ser uma história trágica de amor, realidade que se aproxima da experiência pessoal do gigante, dado ter vivido, também ele, uma história de amor infeliz. | Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013.

 

46

«Outro também virá, de honrada fama,

Liberal, cavaleiro, enamorado,

E consigo trará a fermosa dama

Que Amor por grão mercê lhe terá dado.

Triste ventura e negro fado os chama

Neste terreno meu, que, duro e irado,

Os deixará dum cru naufrágio vivos,

Pera verem trabalhos excessivos.

 

47

«Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gerados e nacidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos;

Os cristalinos membros e perclaros

À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,

Depois de ter pisada, longamente,

Cos delicados pés a areia ardente.

 

48

«E verão mais os olhos que escaparem

De tanto mal, de tanta desventura,

Os dous amantes míseros ficarem

Na férvida, implacábil espessura.

Ali, despois que as pedras abrandarem

Com lágrimas de dor, de mágoa pura,

Abraçados, as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão.»

 Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 46-48

 

Linhas de leitura:

 

- Síntese da história de Manuel de Sousa Sepúlveda e da esposa profetizada pelo gigante nas estâncias 46 a 48:

  • Manuel de Sepúlveda e sua família naufragam na região do Cabo (est. 46, vv. 1, 2, 3, 4 e 7).
  • Conseguem chegar a terra (est. 46, v. 6).
  • Os filhos de Manuel de Sepúlveda morrem (est. 47, v. 1).
  • Os nativos roubaram as roupas à mulher de Manuel de Sepúlveda (est. 47, vv. 3 e 4).
  • A mulher de Manuel de Sepúlveda sofreu com as condições climatéricas (est. 47, vv. 5 e 6).
  • O casal acabou por falecer na floresta (est. 48, vv. 3 e 4).

 

- Paráfrase:

  • Est. 46: Viria outro também bem-afamado, generoso, valente, enamorado, acompanhado da sua amada. Escapariam vivos a um naufrágio naquela costa para sofrerem suplícios extraordinários.

 

  • Est. 47: Veriam morrer os filhos à fome; veriam a dama, depois de longas marchas na areia escaldante, ser despida pelos Cafres cruéis e cobiçosos.

 

  • Est. 48: E os que escapassem deste desastre veriam os dois amantes desaparecerem no areal ardente e hostil. Ali, abraçados, as suas almas se libertariam da prisão do corpo, belo e desgraçado.

(Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto, Figueirinhas, 1978)

 

- Recursos expressivos:

  • Sinédoque: «os olhos», est. 48, v. 1 (sinédoque das pessoas que viram esta desgraça).
  • Eufemismo: «ficarem», est. 48, v. 3.
  • Personificação: «as pedras abrandarem», est. 48, v. 5 – comoverem.
  • Metáfora: «as almas soltarão / Da fermosa e misérrima prisão», est. 48, vv. 7-8 – o corpo é associado a uma prisão da alma, pelo que a morte permitirá a libertação da alma.

 

 

 

Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor De Sá Sua Mulher | Jerónimo Corte Real, 1594

 




CANTO I

RETRATO DE D. LEONOR DE SÁ

 

Criava-se Lianor, crescendo sempre

Em suma perfeição, suma beleza,

E crescendo só nela as outras graças

Por grandes fermosuras repartidas,

Produziam-se dos seus fermosos olhos

Efeitos mil, e extremos diferentes,

Que olhando davam vida, e outras vezes

Olhando cem mil vidas destruíam.

A branca cor do rosto acompanhada

De uma cor natural honesta e pura,

E a cabeça de crespo ouro coberta,

Lembrança do mais alto céu faziam.

Praxíteles nem Fídias não lavraram

De branquíssimo mármore igual corpo;

Nem aquele, que Zuxis entre tantas

Fermosuras deixou por mais perfeito,

Não se igualava a este, antes ficava

Abatido, e julgado em pouco preço;

Que mal pode igualar-se humano engenho

Co'aquilo, em que Deus tal saber nos mostra.

Da boca o suave riso alegra os ares,

Mostrando entre rubis orientais perlas

E sobre tudo, quanto a natureza

Lhe deu perfeito, a graça se avantaja.

No peito ebúrneo as pomas, que em brancura

Levam da neve o justo preço e a palma,

Apartando-se, deixam de açucena

Alvíssima um florido e fresco vale.

Quem pode (sem perder-se) louvar cousa

Onde não chega humano entendimento?

Oh, fortuna cruel, que fim tão triste

Guardaste para uma obra tão perfeita!

 



CANTO VI

MANUEL DE SOUSA PARTE DE COCHIM

 

Com vela inchada vai a nau cortando

O transparente campo de Neptuno,

Impelida por Zéfiro; atrás deixa

Um rasto de salgada branca escuma;

Foge-lhe a conhecida terra; fogem

Num momento a grão praia, o porto, a gente:

Altas frondosas árvores de vista

Se perdem já, e em névoa se convertem:

A costa já se vê toda confusa,

Mal distintos os montes e agras serras,

E quanto mais se aparta, tanto em grossos,

Turvos, densos vulcões, tudo se muda.

Ao norte deixa já todas as terras,

Do soberbo Idalcão Rei poderoso,

E deixa Baçaim, cidade insigne,

Soberba em outro tempo, humilde agora.

Da cidade Taná, pouco distante,

Deixa as grandes ruínas, que do tempo

(Amigo de mudar estados) foram

Convertidas em vil, triste dissenho.

Em três mil e trezentas casas, nela

Telas de ouro e de prata se teciam,

Com sedas outras mais de várias cores;

Agora já não tem mais que a memória.

Também deixa Salsete, e o animal fero,

Feito de pedra, igual a um alto monte;

E o estranho e admirável edifício

Debaixo de alta rocha fabricado.

Obeliscos gerais da natureza,

Sem artifício humano, aqui se mostram;

Obra, onde se vê claro o saber alto

E aquela alta divina omnipotência.

 

CANTO VII

A TEMPESTADE

 

Cobre-se ó céu de grossas negras nuvens,

Os ventos mais e mais cada hora crescem,

Já se escurece o céu, já. com soberba

Inchadas grossas ondas se levantam.

A nau começa já passar trabalho,

Já começa gemer, e em tal afronta

O apito soa, brada o mestre, acodem

Com presteza varões no mar expertos.

Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,

Levanta lá no céu furiosas ondas;

Austro bramando corre ali com fúria,

Dando um balanço à nau que quase a rende,

Vem com grande furor Bóreas raivoso,

Comete por davante, o passo impide,

Encontra as grandes velas, e, por força,

Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:

Rompe-se por mil partes o céu, e arde

Em ligeiro, apressado, vivo fogo.

Um rugido espantoso vai correndo

Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.

Arremessam-se lanças pelos ares

De congelada pedra em água envolta;

Com espantoso ímpeto, e rasgadas

As densas negras nuvens raios cospem:

De um golpe as velas vêm todas abaixo.

 

CANTO XVII

MANUEL DE SOUSA ENTERRA D. LEONOR NA PRAIA

 

Apartando co'as mãos a branca areia

Abre nela uma estreita sepultura

Torna-se atrás alçando nos cansados

Braços aquele corpo lasso e frio.

Ajudam as criadas as funestas

Derradeiras exéquias, com mil gritos.

Ai duro tempo! (dizem),como apartas

Para sempre de nós tal fermosura!

Na perpétua morada tenebrosa

A deixam, levantando alto alarido,

Com salgado licor banhando a terra,

Aquele último vale. todas dizem.

Não fica só Lianor na causa infausta,

Que de um tenro filhinho se acompanha,

Que a luz vital gozou, quatro perfeitos

Anos, ficando o quinto interrompido.

Ali co'a morta mãe o filho morto

Ambos com morto amor em cerra jazem,

Ela lhe nega o branco amado peito,

E ele o doce, materno, amado gosto.

Ambos na solitária praia ficam,

Junto das grossas ondas sepultados,

Deixando ao mundo um triste raro exemplo

De perversa, cruel, ímpia fortuna.

 

Naufragio e lastimoso sucesso da perdiçam de Manoel de Sousa de Sepulveda e Dona Lianor de Sá sua molher e filhos, vindo da India para este Reyno na nao chamada o galião grande S. Joâo que se perdeo no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a perigrinaçâo que tiverão rodeando terras de Cafres mais de 300 legoas té sua morte. Composto em verso heroico e octava rima por Jeronimo Corte Real. Na oficina de Simão Lopez, 1594.

 

Digitalização da edição de 1763 da Typografia Rollandiana, disponível em https://openlibrary.org/works/OL12449679W/Naufragio_e_lastimoso_sucesso_da_perdi%C3%A7am_de_Manoel_de_Sousa_de_Sepulueda?edition=naufragioelastim00cortuoft

 

 

As sombras da alegoria: trilhos para a exegese do poema de Leonor e Sepúlveda | Hélio Alves, 1999

 

4.4 […] A viagem de Sepúlveda inicia-se com bom tempo47 À medida que o galeão desce a costa oriental africana, porém, as condições de navegabilidade vão mudando, de tal maneira que, três dias adentro do signo do Touro, à vista do cabo da Boa Esperança, começa a manifestar-se o tempo que levará os protagonistas ao naufrágio48 Como avisa Corte-Real num dos poemas anteriores, o Segundo Cerco, deve ter-se em conta que, em grande parte do Indostão e na África subsaariana, as estações definem-se, em geral, contrariamente às da Europa:

 

... quando o Sol deixando Aquario

E outros humedos signos, que costumão

Grandes calmas causar naquellas partes,

Entrasse desde Tauro ao ardente Leo,

Trazendo ali bulcões, negros, horriveis,

Com aspero sembrante carregados:

Que aquella região toda ameaçam

Com fortes, & medonhas tempestades.

Quando nestes taes signos entra Apollo,

Entam fica da India mais vizinho,

E os seus ardentes rayos com mais força

Grossos vapores tiram para cima:

Os quaes reciprocados ja no meyo

Da região aerea, se convertem

Em ventos, que a mil partes vão lançando

Mil grossas negras nuvens, & as desatam

Em humido licór, & agua espessa.49

 

Corte-Real obrigava-se a adaptar a climatologia clássica aos espaços não-europeus em que as ações têm lugar50 O naufrágio de Leonor e Sepúlveda acontece, portanto, no começo da estação das chuvas, quando a evaporação é mais intensa e quando o ambiente que circunda as personagens humanas, o marítimo, é o mais propício a ela. Numa determinada fase do ciclo, os «Vapores» encontram-se na esfera do ar - na física antiga, superior à da água mas inferior à do fogo, esta invisível aos homens - e provocam movimentos que, por causa da peculiar intensidade da exalação nesse período e local, acabam por desencadear vento e chuva fortes.

Quando aparece pela primeira vez, Proteu possui a consistência física que as qualidades do mar permitem.51 Trata-se de um «marinho foro monstro». Nada aponta para a sua existência como aparição aérea e, muito menos, subjetiva. Ele emerge das águas e a gente do galeão «pello ver ao bordo se ajuntava», alvoroçada pelo aspeto da criatura. A alegorização é recordada:

Leonor

 

Olha o peito escamoso, a cor, & o rosto

A proporção, & o talho differente

Olha aquella figura estranha aos homens

Mas conhecida & usada á natureza.52

 

Ferido por amor, Proteu comporta-se corno certas espécies de baleias e golfinhos, atirando-se «aos tombos» na água. O deus suscita a curiosidade de Leonor enquanto fenómeno da vida marinha, mas também provoca a frieza dela e até a repugnância pela monstruosidade que, sendo-lhe estranha e nova, é, nos termos da alegoria física a explanar pelo fantasma mais tarde, «conhecida e usada à» Natureza. Sugerido pelo episódio do ardente desejo sexual de Proteu e da exposição de Angélica para futuro pasto da sua orca gigantesca no Orlando Furioso (VIII, 51-66 e X, 92ss.), o encontro do deus com Leonor, sendo evidentemente muito diverso, concretiza a fusão da mitologia com a natureza do animal respetivo. Em certo nível semântico, Proteu é de facto uma orca, apesar de tudo menos fantástica do que a de Ariosto, com «duas asas» (isto é, barbatanas)53 «espinhosas e grandes» e uma «disforme cabeça».54

Por outro lado, o poeta procura tirar o devido partido psicológico-moral do enfrentamento entre a mulher distante e desdenhosa, e o monstro sumido de desejo. No regresso ao contacto entre os dois planos da narração, mais adiante no Canto sexto,55 muitos outros seres marinhos acompanham Proteu para ver o galeão. No instante em que Leonor e o «Carpátio vate» voltam a encontrar-se, existe já uma relação psicológica e sentimental entre ambos. A mulher retrai-se «quasi anojada» em face das cortesias amorosas de Proteu. Como outra Angélica, Leonor repete o comportamento que havia tido com Sepúlveda, até Cupido lhe ter mudado a vontade. Mas agora é todo o Mar que Leonor rejeita na figura de Proteu e dos seus múltiplos acompanhantes. Os corpos possibilitados pela qualidade húmida e particularmente densa das águas marinhas, os deuses e ninfas que a Natureza criou, emocionam-se na presença da heroína, sentem paixão frustrada, ressentimento e inveja. Trata-se duma reação ao que eles entendem ser o desamor dos portugueses consubstanciado na atitude da protagonista. Esta, entretanto, privilegia um «amor casto» pelo marido,56 adaptado da castidade militante de Angélica,57 virtude que pode ter no Naufrágio uma conotação positiva muito importante, tão importante que, à semelhança da sua modelo ariostesca, o único momento em que Leonor sente paixão consuma-se contra a moral e acaba por inscrevê-la na lista dos castigados.58

O processo repete-se como signo de intensificação do desejo e dos extremos de autoaniquilação que o todo-poderoso amor inculca. Depois de Proteu, é a divindade que preside à selva, à terra africana, aquela que entra em contacto com Leonor. Agora, antes mesmo de ser fulminado pelos olhos da amada - Corte-Real não amplifica o tópico dos olhos fatais da mulher, da linguagem do amor cortês, como induz o leitor a fazer a analogia entre os «raios» que eles emitem e o «raio» com que Amor matou Falcão -, Pã sente a presença do sentimento amoroso e a «sombra escura» que este lhe traz ao coração.59 No início, o deus não é mais do que uma prosopopeia da terra silvestre atravessada pelos protagonistas humanos. Reminiscência de écloga, símbolo do próprio discurso pastoril,60 Pã depressa se torna em mais um fantasma que persegue, por uma paixão obnubiladora, a amada Leonor. O tópico do castigo da «mais fera que as raivosas/ ursas» torna-se mais explícito e acorde com o telos do poema: «tarde te tornarás piadosa, & a tempo/ que de tanto mal te fique a magoa».61

Mas Pã é também uma alegoria física, o resultado de processos naturais de embate dos elementos:

 

As estrellas no mais alto subidas

Do ceo meavão sua grão jornada

Subindo da segunda crusta aos ares

Delgados, & sotis secos vapores,

Que penetrando a Sphaera Aerea, chegão

Ao fogoso elemento, o qual se esforça

Pera lhe resistir, lançando estrellas

Veloces, contrafeitas, & fingidas.

Quando Pão que os amados passos segue

Alli chegado, toma (em fogo ardendo)

O sonoroso rustico instrumento...

 

Pã forma-se da resposta da esfera do fogo à exalação das águas (a «segunda crusta»). Como sinédoque alegórica das estrelas contrafeitas e cadentes, ele é, outrossim, uma «sombra vã» criada por esse mesmo fogo. Esta criação fátua da Natureza identifica-se então com o sentimento amoroso, de que o «fogo» é metáfora tradicional. Corte-Real concilia subtilmente os níveis físico e psicológico da alegoria com a ética da qualidade ilusória de Pã e demais deidades perante os seres humanos, e ainda com o dogma cristão da falsidade e demonicidade dos deuses pagãos.

Esta complexa formulação alegórica constrói-se, de novo, através da intimidade sentimental com as personagens humanas. Com Leonor, a relação evidentemente volta a falhar: os «suspiros» de Pã estavam longe de ser por ela ouvidos.62 E nisto Corte-Real, mais uma vez, coaduna a tópica do desprezo amoroso com a alegoria das aparições fantasmáticas:

 

Levantate senhora apressa o passo

Soccorreme que mouro, vem não tardes,

Por ultimo remedio só te peço

Que me vejas morrer ja que me matas.

Se em quanto vivi sempre te mostraste

A meu tão grave mal cruel, & esquiva

Agora ja no fim da vida triste

Permite que te veja mais piadosa.

E não cuides meu bem que cousas graves

Peço por galardão, do que me deves,

Não quero de ti mais que hum dizer, vai te

Alma, que de teu mal fico contente.

 

A frase que Pã imagina pronunciada de Leonor implicaria a perceção duma «alma», duma entidade formada do ar como espelho dos sentimentos culpados e viciosos da mente humana. Mas a protagonista não faz este reconhecimento, ao contrário dos desejos de Pã, porque é vítima inocente da turbação de Sepúlveda, do Amor e da respetiva viagem desorientada. Leonor não é suscetível às visões, ao tormento emocional com que a Natureza solidária acompanha o percurso dos humanos. A heroína sofre as inclemências dos Elementos, mas não é sensível a desejos e sentimentos negativos, e, portanto, rejeita, no Mar e na Terra, os fantasmas prenunciadores de morte.

Assim como Pã se autodesignou com o vocábulo «alma», assim Febo se autointitula «fantasma».63 Com a aparição deste terceiro e último deus apaixonado, a relação de Leonor com a Natureza encontra-se no cume da intensidade dilacerante. Com efeito, o tempo em que Febo declara, extremando a autoflagelação dos seus pares do mar e da floresta, que

 

O que te peço só (& me he devido

Por justo galardão de meu tormento)

He, que quando me vires mais perdido

Mostres, que disso te[n]s contentamento,64

 

é quando Leonor se encontra sentada na areia, no máximo esforço para se proteger da impiedade que a cerca, procurando, nua, cobrir-se «co dourado cabello».65 Na lógica sintagmática da alegoria, foi-se intensificando a disparidade entre a Natureza e a casta isenção da protagonista, de tal forma que o pudor conhecido do relato posteriormente incluído na História Trágico-Marítima torna-se significante de algo muito maior.66 As palavras de Febo, apesar da chegada da heroína ao ponto extremo de fragilidade, «do peito castissimo ficaram/ desprezadas por vãs e sem proveito». Tudo em Leonor resiste às ilusões que a Natureza reflete e devolve ao atormentado espírito humano.

 

4.5. Assim como os vícios se acham sinedoquizados no poder destrutivo do amor que os deuses fazem reverberar, as virtudes serão modeladas num símbolo capaz de vencer tais "almas" ou "fantasmas", as «sombras vãs» que acompanham os viajantes perdidos. É essa qualidade que torna verdadeiramente heroica a personagem de Pantaleão de Sá, o sobrevivente da tribulação e a promessa de futura correção ético-política dos portugueses.67 Enxertada no percurso vivencial do casal desafortunado, a viagem alternativa de Pantaleão sintetiza, qual redução autossemelhante, a viagem principal do poema. Ao mesmo tempo, porém, ela ilustra um percurso vivencial oposto, o do homem que abandona a estrada cheia de obnubiladores phantasmata para libertar o próprio espírito.

Assim, os «três dias»68 que o herói decide apartar-se dos seus companheiros para seguir o velho sábio começam pela chegada junto a

 

               hu[m]a cova escura

Que no fundo do valle entre penedos

E de frondosas arvores agrestes,

Cubertos de hum vapor espesso & turvo

Ao pé de alto rochedo se fazia.

 

Como tantas vezes no resto do poema, as formas vaporosas encontram lugar privilegiado para se acharem à vista, aliadas a «hum rumor, que o cabello ao ceo levanta/ e hum zombido terribel» que provinham de dentro da caverna. Tal não impede «àquele ousado peito/ que a natureza fez de medo livre» entrar no lugar que um letreiro indicava como vedado a «humana pranta». Pantaleão entrava num espaço conhecido apenas dos deuses alegorizados.

Como no resto do Naufrágio, as "almas" fantasmáticas formam-se a partir da perceção supersticiosa das forças da Natureza. Dentro da cova, o ar é escuro e revolto; as ondas furiosas, batendo contra rochas, retumbam «aquella voz confusa» por toda a parte; o vento, ao passar pelas alturas, resulta em «horrendas vozes». Tudo isto na presença duma «furna» que o herói, sempre em perseguição do velho, pretende atravessar. Avançando o português, dos mesmos fumos e vapores aparece um cavaleiro mudo que se apresta a dar-lhe batalha. Obrigado a vencê-lo, Pantaleão triunfa do cavaleiro que, quando tocado, se faz no fumo do qual tirava a forma. «Avante passa o Sà nada temendo» até que se vê forçado a escolher entre dois caminhos, ambos igualmente terríveis na aparência, e cada um com vozes que o avisam para não seguir o outro. Escolhendo um deles após vacilar um pouco, aquele em que lhe parecia ouvir o choque de armas, o herói, «quasi chegado ao meyo da caverna», acha as «duas vizões» mencionadas em Parte anterior deste estudo,69 que se vão retirando à medida que o português avança. Finalmente, atingidas pela sua espada, também estas se dissolvem e desaparecem. Pantaleão de Sá fica então mentalmente preparado para ouvir o velho explicar a genealogia histórica e panegírica de Portugal sem a interferência de vaporosas ilusões.

No desafio que este membro da comitiva de Sepúlveda faz às aparições e misteriosos ruídos que a Natureza, por um lado, e a sua humana falibilidade, por outro, lhe representam, estabelece-se a diferença crucial entre a viagem especial de Pantaleão e a viagem principal de Sepúlveda. Aquele vence os seus fantasmas, este sucumbe a eles. O herói verdadeiro triunfa sobre as sombras alegóricas, o falso deixa-se enredar por elas. As criações da Natureza são prenúncio de morte apenas para quem, como Sepúlveda, as imagina desse modo.70 Por isso, o marido infausto acaba por morrer perdido no arvoredo, carregando um filho moribundo nos braços e envolvendo-se no ar húmido com que a Natureza lhe trouxe as visões e as sonoridades que o derrotaram:

 

Cobriose o espesso bosque de cerrada

Sombra, fusca nuve, & no circuito

Que occupava o vapor turvo, se ouvirão

De Tygres, & Leões bramidos altos.71

 

Leonor permanece, entretanto, uma heroína ambígua. Ela efetivamente morre, castigada por se ter dado clandestinamente a um homem, por este ser moralmente vicioso - porque autor dum homicídio72 - e por ser altiva, desdenhosa, fria e áspera contra o Falcão e os deuses amadores. Como para Angélica, o casamento com Sepúlveda é já uma forma de punição que tem na morte, afinal, apenas o seu corolário mais radical.73 Ao mesmo tempo, todavia, ela personifica um outro amor, classificado pelo narrador de «casto», que a honra sob uma perspetiva diversa. Leonor não deteriora o seu amor ao casar com Sepúlveda. E a prova está na ação subsequente: ela resiste, de facto, aos assédios da Natureza e às fraquezas da mente, ambos, no fundo, aspetos diferentes do mesmo obstáculo. Assim, Leonor é arrastada para a morte, não porque as sombras da alegoria lhe tiraram a clareza de juízo, mas precisamente porque procurou conciliar a resistência que lhes obrou, com o amor que a pôs ao lado de Sepúlveda. No dilaceramento entre a resistência à Natureza, a um tempo amorosa e destruidora, e a fidelidade ao amor de Sepúlveda, afinal espelho humano da tirania escravizante do amor natural, reside a qualidade profundamente trágica da perdição e morte de Leonor.

 

4.6. O poema caracteriza-se pelas margens indistintas do seu universo alegórico, como se, nas palavras de Corte-Real, um «bulcão turvo» presidisse a toda a ação. A exceção, ainda assim parcial, é a das bodas - e festas a elas associadas - nos Cantos quarto e quinto.74 De resto, mesmo uma complexa alegoria como a da viagem do Amor - transformação semântica do estado de espírito de Sepúlveda - faz-se com realidades desfeitas, desorientação mental e «vapor turvo».75 É por causa desta base de sustentação incorpórea que o Naufrágio e Perdição de Sepúlveda e Leonor não possui os contornos nítidos, nem a perfeição volumétrica duma epopeia como a de Camões, regulada verticalmente pelas esferas ptolomaicas e horizontalmente pela linha contínua da História. Maravilhoso e relato histórico, não obstante a demarcação dos respetivos espaços sémicos, interagem, afetam-se reciprocamente ao nível dos sentidos e dos sentimentos das personagens, no poema de Corte-Real. Os seres humanos e os deuses que perseguem Leonor mergulham em plena irrealidade criada pela paixão, pela culpa, pelo desvairamento, num mundo em que tudo é vanidade ou «leve vento». A resistência a esse mundo é configurada nas pessoas de Leonor e Pantaleão, mas enquanto o segundo, vencendo figuradamente as ilusões, evita a «perdição» apenas ao separar-se do seu capitão,76 a heroína leva a imunidade perante os assaltos da Natureza até à morte, por uma eticamente ambígua fidelidade amorosa e matrimonial a Sepúlveda.

Deus tem presença marcada neste universo, não obstante o predomínio extensivo da Natureza e dos estados emocionais das personagens. Como é de regra na poesia épica portuguesa do século XVI, também aqui Ele não é representado. Tal não significa, porém, que não se reconheça a existência da Providência divina e da sua superioridade última sobre toda a representação. Os protagonistas cristãos oram a Deus e à Virgem.77 A beleza de Leonor é atribuída ao poder criativo do Supremo - sujeita que é à retórica do amor cortês – como perfeição superior às capacidades da Natureza. Os próprios deuses mitológicos, enquanto alegorias da Natureza e reflexos dos sentimentos negativos das personagens, invocam o nome de Deus e d'Ele dependem em último grau.78 E finalmente, a dialética do crime e da vingança, enquanto argumento hierarquicamente superior à concatenação alegórica dos phantasmata, acha-se ao nível dos secretos desígnios da Providência, sempre justos por definição dogmática, por mais contraditórios que pareçam à restrita perspetiva humana.79

Apesar dessa presença, todavia, o que predomina no Naufrágio é o silêncio de Deus. Excetuando a alma de Luís Falcão, bradando pela vingança a que tem direito segundo o «Tribunal» celeste, as preces dos viventes, algumas delas mesmo comoventes pelo fervor, perdem-se nos ares e têm como resposta apenas o vazio.80 Nenhuma divindade vem salvar os heróis, nenhuma outra procura destruí-los. São os mesmos heróis que, Pantaleão de Sá excetuado, se deixam autodestruir. Os deuses são afinal os reflexos dos vícios da mente dos culpados, dos vitia animi que Lucrécio e S.to Agostinho haviam procurado eliminar. Apenas às almas (as verdadeiras) se abre o caminho da salvação através do arrependimento, como se vê da aparição da Paciência, guiando Sepúlveda até à morte. Somente no Além futuro - de que o poema não trata senão na figura auspiciosa, mas bem terrena, de Pantaleão -, existe a possibilidade de corrigir e transformar o caminho perdido na vida sublunar.

Em vez do poder de Deus, sente-se no Naufrágio ostensivamente, por sobre homens e deidades, o poder do Amor. Não o amor universal e benevolente do cristianismo, mas o amor negativo, cruel e aniquilador da linguagem do desejo sexualizado. Daí que os Cantos II e III venham a constituir o fulcro do poema, como já pensava Ferdinand Denis.81 Vénus, ao aceitar os desígnios do seu filho mitológico - por sua vez, figura para as intenções cegas de Sepúlveda - e ao ensinar-lhe o caminho para o crime, inverte o sentido da estrutura tripartida que Lucrécio havia situado debaixo da jurisdição da deusa. Com efeito, se no De Rerum Natura a influência benéfica de Vénus presidia indiretamente ao mundo natural lucreciano, dividido nas suas três partes constituintes, Mar, Terra e Céu (mare, terra, caelum) que também dominam a Eneida "odisseica",82 na epopeia de Corte-Real a deusa do amor rege também à distância, mas em sentido oposto, as alegorias respetivas de Proteu (mar), Pã (terra) e Febo (sol-céu), a tríade de deuses que persegue Leonor e que acaba por lhe escrever o epitáfio.83 O poeta de Évora faz a reconversão semântica do modelo estrutural-discursivo lucreciano, tornando o nível dos deuses, como já se viu, numa conjura não premeditada das três partes do mundo contra os heróis.

Vénus paira, com Eros, por sobre toda a estrutura, simultaneamente poética e cosmológica, sujeitando homens e deuses à sua destrutiva tirania. O amor dissolve o universo em «sombra escura», a sombra que perfaz a diáfana alegoria do poema.

 

O Sistema da Poesia Épica Quinhentista - Camões, Corte-Real e os Contemporâneos, Hélio Alves, Universidade de Évora, 1999, pp. 798-811

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NOTAS:

47 Com vento «galerno e favorável», mas traiçoeiro (Obras de Jerónimo Corte-Real, a/ c M. Lopes de Almeida, col. "Tesouros da Literatura e da História", ed. Lello & Irmão, Porto, 1979, p. 591). Segundo o relato em prosa, a partida aconteceu a 3 de fevereiro de 1552; segundo o Naufrágio, quando o Sol «ja tinha corrido doze dias da casa onzena» (ibidem).

48 Canto VII; 1979: 627 («Tres dias avia ja que o grão Philesio» etc.).

49 Segundo Cerco de Diu, Canto II; 1979: 38-39.

50 Outro caso é o da Descrição de Malaca, possivelmente de António de Abreu: «Aqui, o Capro signo he temperado/ e o Leo, contra a antiga geografia,/ de boninas matiza o verde prado/ e a ribeira faz sempre sombria» (estrofe 18; Costa 1956a: 120).

51 Vide Canto VI; Corte-Real 1979: 599-601.

52 Canto VI; 1979: 600.

53 No comentário de FS ao Proteu d' Os Lusíadas, também se chamam "asas" aos órgãos natatórios das baleias.

54 Cf. Orlando Furioso, X, 101: 3-6.

55 Corte-Real 1979: 606-13.

56 Conotado positivamente pelo menos nos Cantos I, II, VIII e IX (Corte-Real 1979: 504, 524-7, 642 e 681); e negativamente pelos discursos dos deuses (Proteu, Pã e Febo, desde o Canto VI), numa espécie de eco dos desejos frustrados de Sepúlveda antes da morte de Luís Falcão (Canto I).

57 Vide Ariosto, Orlando Furioso, VIII, 41ss.

58 Vide Canto I, a propósito do casamento clandestino de Leonor com Sepúlveda (1979: 509ss).

59 Canto IX; Corte-Real 1979: 664.

60 Sobre o influxo da literatura pastoril no Naufrágio, vide Parte II, 6.5 e 6.8.

61 Canto IX; Corte-Real 1979: 671-2. A comparação da amada com uma fera pertence à tradição lírica renascentista; a comparação com tigres e ursas constitui uma amplificatio deste tópico muito comum no poema de Corte-Real.

62 Canto X; Corte-Real 1979: 693.

63 Canto XVI; Corte-Real 1979: 857.

64 Ibidem.

65 Canto XVI; 1979: 850.

66 «E vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até a cintura, sem mais se erguer dali» (Relação s.d:41).

67 Vide passagem do Canto XIV citada na Parte II, 6.4.

68 Canto XII; Corte-Real 1979: 739. A repetida referência ao número 3 e a tripartição estrutural de muitos elementos do Naufrágio permitem pensar num nível alegórico aritmosófico (repare-se também, por contraste, nos «quatro dias» que Proteu demora a chegar à corte de Neptuno no Canto VI; 1979: 601). A origem intertextual aparente das tríades deste universo épico será sugerida em 4.6.

69 Parte II, 6.6.

70 Santo Agostinho de Hipona, uma das fontes prováveis desta conceção (vide 4.2), tal como o fantasma de Corte-Real, considera os phantasmata como figmenta («falso» e «fingido» adquirem assim um novo significado no Naufrágio, não reduzido apenas a uma resposta à Inquisição) fáceis de trazer à mente e à memória, mas difíceis de discernir da verdade (De vera religione, X, 18; apud Petrarca 1992: 315 n142).

71 Canto XVII; Corte-Real 1979: 872.

72 Ao contrário do que insinuou Camilo Castelo Branco (1880: 211 e 218), Corte-Real expõe claramente o facto de Sepúlveda ter sido o assassino de Luís Falcão, o noivo de Leonor. E não é necessário ir até ao Canto XV, para o perceber; o Canto II é suficientemente claro (1979: 528).

73 Entre os imitadores de Ariosto, a morte, quando acontecia, recaía geralmente sobre a metade masculina do casal. Tanto Dolce quanto Brusantini representam a morte de Medoro. O castigo de Angélica toma outras formas, incluindo a possibilidade, às vezes, de regeneração moral. Corte-Real, vinculado à realidade histórica, aproveita a morte de Leonor para intensificar e tornar mais sofisticada a quaestio da personagem.

74 De facto, mesmo as bodas que pretendem fazer-se depois de dissipados os «turvos Orizontes» (Canto IV; 1979: 566) refletem os maus augúrios do tálamo (IV) e as sombrias cores do Inferno nas festas malabares (V).

75 A geografia é percorrida por Amor porque «tão colérico vai, que perde o tino/ do caminho que leva», tal como o pensamento de Sepúlveda de quem ele é aqui uma metáfora alongada (Canto II; 1979: 532; cf. resumo da narração na Parte II). Depois, Amor passa pelo velho Tempo descrito como obnubilador de «famosos e altos feitos» e vê a casa de Némesis coberta de «vapor turvo» (ibidem; 1979: 543-4).

76 Canto XVI; Corte-Real 1979: 848.

77 Sem preocupações de exaustão: Sepúlveda a Deus no Canto VIII (1979. 644-5); Leonor à Virgem no Canto IX (1979: 660); aqueles que se despedem do galeão à partida de Cochim no Canto VI (1979: 594) e o coletivo dos sobreviventes no Canto XIV (1979: 822-3).

78 Amor/ Ânteros aguardam a confirmação da «sentença» de morte ao Falcão pelo «Céu» (Canto III; 1979: 561); Proteu elogia Leonor como obra de Deus (Canto VI; 1979: 610) e invoca-Lhe o nome (ibidem; 1979: 612); Anfitrite (VII; 1979: 625) e Pã (IX; 1979: 675) fazem o mesmo.

79 Basta pensar que o Deus que castiga Sepúlveda pela morte de Falcão foi o que confirmou a sentença de morte ao mesmo Falcão. De facto, Ânteros «aguarda o termo em que a sentença/ Ia confirmada la no ceo seria» (III; 1979: 561). Ao contrário de Camões, Corte-Real não abre a possibilidade duma divindade intermédia (Júpiter) entre os deuses e Deus (há uma única referência a Júpiter, no Canto II a propósito da origem de Némesis; 1979: 530).

80 No Canto VI, «a Deos pedem que os leve a salvamento,/ e ao desejado Reino em paz os guie://mas não subirão tanto os pios rogos/ (Por causa de hir com culpas carregados)/ que chegassem ao ceo mostrando claro/ das divinas orelhas ser indignos:/ ficarão abatidos, & nos ares,/ espalhados & soltos sem proveito.» (1979: 594). Corte-Real, acrescentando o elemento teológico, amplifica moralmente o que se encontra já em Virgílio (Eneida, IX: 312-13) e fora fisicamente já explicado por Lucrécio (De Rerum Natura, IV: 568-9). A propósito de outra das preces do Naufrágio, escreveu-se já que «rien n'est plus touchant que la prière de ce père malheureux, qui, les yeux baignés de larmes, essaie d'apaiser le courroux céleste» (Denis 1826: 266-7). Uma parte do movere assim conseguido reside precisamente, a meu ver, no silêncio que tem como resposta.

81 Denis 1839: 105 e ss.

82 No poema de Lucrécio, «after hominum divumque voluptas in the first line (...) the three divisions of sky, sea, and earth are concisely introduced in lines 2-3, and then used recurrently to structure the description of the effects of Venus» (Hardie 1986: 170). Mais específica e exatamente, Lucrécio abre o De Rerum Natura com esta tripartição na ordem e termos que Corte-Real irá personificar e narrativizar: mar, terra e sol-céu (1: 2-9; tb., p. ex., IV: 723, já citado supra). No início da aula de Anquises referem-se as ditas três partes, céu, terra e mar («Principio caelum ac terras camposque liquentis»; VI: 724) como tríade ordenadora da própria metade primeira do poema (cf. Hardie 1986: 323).

83 Fá-lo literalmente com três epitáfios, um para cada deus ou parte do universo, no impressivo episódio final (Corte-Real 1979: 872-877) que F. Denis descreveu assim: «dans ce dernier hommage rendu au malheur, il y a quelque chose de noble et de touchant; d'ailleurs la poésie de Corte Real prend alors un tel caractere de grandeur qu'elle ne peut nous laisser insensibles. On l'éprouve au fond de l'âme: il y a là une dernière émotion que le poéte n'a pu complétement retracer, et qu'il laisse sentir au lecteur» (Denis 1839: 127-8).

 

 

 

Naufrágio de Sepúlveda (1552) | adaptado por António Sérgio (1934)

 




Vou contar-vos a história dos que embarcaram no Galeão1 Grande «São João» quando saiu da Índia em princípios de fevereiro de 1552.

Nos portos de Coulão e de Cochim2 recebeu o navio a pimenta com que devia de regressar a Portugal. Não se pode dizer que fosse muita: não passava, com efeito, de uma dúzia de milhares de quintais3; mas a carga ficou ainda demasiada, pelas outras mercadorias que se embarcaram. Foi este excesso nos carregamentos uma das grandes causas de tantos naufrágios. Junte-se o descuido na construção das naus, e, no caso do «São João», o péssimo estado em que se achavam as velas.

Manuel de Sousa Sepúlveda capitaneava a nau, e trazia a bordo sua mulher e três filhinhos. Embarcou também Pantaleão de Sá, cunhado de Manuel de Sousa.

Partiram pois a 3 de fevereiro e atravessaram o oceano Índico a leste da ilha de Madagáscar, que se chamava então de S. Lourenço. A cinco semanas da partida — a 11 de março — encontravam-se a vinte e cinco léguas, mais ou menos, do famoso Cabo da Boa Esperança. Saltou-lhes o vento na direção da proa, muitíssimo rijo, acompanhado de numerosos fuzis4. Ao cair da noite, o capitão chamou o mestre5 e o piloto, e perguntou-lhes que decisão tomar. Meterem de capa6 com os papafigos7 (responderam eles) e aguardarem tempo menos ruim.

Assim se fez. E, vindo arribando desta forma, já a uma centena de léguas do Cabo virou-se-lhes o vento para leste-nordeste, mais forte ainda, obrigando-os a correr outra vez para Sudoeste. O mar, feito do Poente até então, era batido agora do Levante: e tornou-se tão grosso e desencontrado que, a cada balanço que o galeão tomava parecia que as vagas o meteriam no fundo. Desta maneira se passaram três dias. Ao cabo deles, o vento acalmou; o mar porém ficou tão revolto, e tanto e tanto trabalhou a nau, que três machos do leme8 se perderam então. O carpinteiro, quando deu pela perda, comunicou o facto em segredo ao mestre. Este, com bom oficial e bom homem que era, recomendou que não o dissesse ao capitão da nau nem a nenhuma das pessoas que vinham a bordo, para evitar o alvoroço e o terror.

Saltou ao lés-sudoeste outra vez o vento, e cresceu com ele o temporal. Deixou o navio de obedecer ao leme, e pôs-se de ló9; nisto, viram rasgar-se toda a vela grande, e voar pelos ares. Acudiu a gente a tomar o traquete10; não estava ainda tomada a vela quando se atravessou a nau aos vagalhões enormes, e recebeu a fúria de três mares grossíssimos, que arrebentaram as enxárcias11 de bombordo. Lançou-se mão de viradores12, para com eles se fazerem uns brandais13; vendo, porém, que era impossível, decidiram cortar o mastro grande. Já estavam os homens de machado em punho quando, com a força do vento, estoirou o mastro. Tudo saltou por estibordo: mastro, gávea, aparelho, enxárcia. Cortaram esta e o aparelho, e tudo de cambulhada se foi para o mar.

Sobre o pé do mastro que lhes ficara, armaram mastaréu com um pedaço de antena, e do outro pedaço fizeram verga que guarneceram com tiras de velas velhas. Pouco depois, levou-lhes a ventania essa mesma vela, e em breve o galeão se atravessou outra vez. Nesta situação se encontravam eles quando se lhes quebrou o leme pelo meio. Já a água do mar invadira tudo. O mastro do traquete com os grandes balanços de um bordo a outro, punha a nau em risco de se lhe abrir o casco, e pareceu-lhes que o melhor era cortá-lo. A isso se dispunham, quando deu nele um tão grande mar que o quebrou logo pelos tamboretes14 e o lançou também para o meio das ondas, com o único trabalho de lhe cortarem a enxárcia.

Sem mastros e sem leme, iam impelidos na direção da terra, de que estariam distantes umas quinze léguas. Lançaram-se, então, a construir um leme de fortuna, e de alguma roupa fizeram velas com que se dirigissem a Moçambique. Nesses cuidados se gastaram dez dias. Acabado o leme, quiseram metê-lo; não serviu, porém, porque não tinha as dimensões que lhe cumpriam. Manuel de Sousa, como já se achassem bem perto da terra, tomou o parecer dos oficiais. Aconselharam estes que se deixassem ir, até se encontrarem com dez braças de  fundo; que com esse fundo ancorasse a nau, para lançarem o batel e desembarcarem. Entretanto arriaram uma manchua15 com alguns homens para irem explorar ao longo da costa e escolher o sítio para o desembarque. Já perto de terra, lançaram o prumo; acharam aí ainda muito fundo, e deixaram-se ir. Regressaram finalmente os da manchua, informando haver perto uma boa praia; tudo o mais era rocha a pique onde se não via modo de salvação.

Trataram, pois, de fazer navegar o galeão para o sítio indicado pelos da manchua, com os remedos de velas que haviam feito. Quando chegaram, lançaram prumo, e viram que tinham fundo de sete braças16. Largaram uma âncora nesse fundo e guarneceram os aparelhos para arriarem o batel, com o qual portaram, na direção da costa, uma segunda âncora.

Já a manchua conduzira para a praia Manuel de Sousa, sua mulher e filhos e uma trintena de pessoas mais (não sem se virar e se afogarem algumas), quando o vento e o mar cresceram tanto que impeliram o galeão para cima da terra. A tempo em que já esta estava próxima, embarcaram no batel o piloto, o mestre e cerca de quarenta dos passageiros. Tão grossas rolavam então as ondas, todavia, que despedaçaram o batel de encontro à praia, sem no entanto morrer alguém.

Ficaram a bordo umas quinhentas pessoas, das quais duzentos portugueses e trezentos escravos. Trataram estes de largar a amarra para se irem assim aproximando da terra. A quilha17 assentou; pouco depois, porém, com a força do mar, partiu-se em dois o galeão. Passada uma hora, esses dois troços fizeram-se em quatro. Arrombadas as cobertas, as fazendas e as caixas vieram acima, e todos os passageiros que se achavam a bordo se lançaram aos cepos18 e à caixaria, para flutuarem agarrados neles. Quarenta portugueses e uns setenta escravos morreram afogados neste lance; os demais conseguiram chegar a terra, alguns com ferimentos de gravidade. Quatro horas depois, todo o galeão desaparecera desfeito. Na praia acumulavam-se os seus destroços, arremessados pela fúria dos vagalhões.

Determinaram os náufragos manter-se ali, entrincheirados, até que convalescessem os mais doentes. Tinham dado com água naquele lugar. Passados dez dias, avistaram num outeiro uns sete cafres, que traziam consigo uma vaca presa. Por acenos, convenceram-nos a descerem até à praia, e foi o capitão falar com eles, acompanhado por quatro dos portugueses. Significaram por sinais que queriam ferro. Manuel de Sousa, percebendo-os, mandou que trouxessem meia dúzia de pregos, e lhos mostrou. Os cafres chegaram-se mais aos nossos, e discutiram o preço da sua vaca. Nisto, apareceram cinco negros em outro outeiro, e começaram a bradar aos sete primeiros que não dessem a vaca a troco de pregos. Foram-se então, levando a vaca, e sem dizerem palavra mais.

Uns dias ainda se mantiveram ali, com muito cuidado e vigilância, levantando-se o capitão para rondar os quartos três e quatro vezes durante a noite, o que era para ele trabalho grande. Convalesceram por fim os doentes e feridos; e, vendo todos já aptos a caminhar, chamou-os a conselho sobre o que deviam fazer.

Como não ficara do galeão com que pudessem construir uma jangada, decidiram caminhar ao longo das praias até ao rio de Lourenço Marques. Estaria este, ao que lhes parecia, a umas cento e oitenta léguas daquele local (31o de latitude sul), seguindo sempre a linha da costa; os que lá chegaram, porém, andaram mais que trezentas léguas, pelos muitos rodeios que foram fazendo para passar os brejos19 e cursos de água com que iam topando pelo caminho; depois tornavam à orla do mar; e nisto gastaram cinco meses e meio.

Partiram pois a 7 de julho (1552). Ia na vanguarda Manuel de Sousa com oitenta homens portugueses e escravos, com André Vaz, o piloto, que levava uma bandeira com um crucifixo erguido, e Dona Leonor em cima de um estrado, que era carregado por alguns escravos; ao centro, o mestre do galeão com a gente do mar e as escravas; na retaguarda, Pantaleão de Sá com o resto dos portugueses e dos escravos, que seriam cerca de duzentas pessoas. Orçava por quinhentas ao total.

Caminharam assim durante um mês, com muitos trabalhos, com fomes, com sedes horríveis, porque não tiveram de comer por todo este tempo senão aquele arroz que do galeão escapara e umas poucas frutas que no mato acharam. Haveriam andado uma centena de léguas (que fariam umas trinta, não mais, ao longo da costa), e tinham já perdido umas dez pessoas, que se deitaram no chão por não poderem mais. Um filho bastardo de Manuel de Sousa, de dez ou doze anos, vinha muito fraco por causa da fome; um escravo o trazia com muito custo, e ambos se deixaram atrasar. Manuel de Sousa não deu por isso, por supor que vinha na retaguarda com seu tio Pantaleão de Sá. Perguntando por ele, e não o encontrando, ficou como louco. Prometeu que daria quinhentos cruzados a quem voltasse atrás em busca  do filho: não houve porém quem lhos aceitasse, por se acharem já à boquinha da noite, em que os que se deixavam atrasar os devoravam os tigres e os leões.

Por vezes, tinham tido que lutar com bandos de cafres. Diogo Dourado, que sempre pelejara como bom cavaleiro, veio a falecer numa dessas brigas. Uma, duas, três pessoas, ficavam por dia naquelas praias, ou então metidas por meio dos matos, por já não poderem caminhar avante. Sabiam que os tigres ou as serpentes as haviam de devorar de aí a pouco, pois os havia ali em grande número; apesar disso, deixavam-se cair, porque já não podiam andar mais, e rogavam aos outros que os encomendassem a Deus.

Cerca de três meses, já agora, haviam decorrido nessa caminhada em busca do rio de Lourenço Marques, ou seja da Aguada da Boa Paz. Alimentavam-se de frutos, se acaso os achavam, e de ossos torrados. Quem topava coisa que se pudesse comer e que lhe fosse possível dispensar, vendia-a por preços exageradíssimos: um quartinho de água por dez cruzados, e por quinze cruzados, uma pele de cobra. Comiam mariscos quando passavam nas praias, ou peixe morto que o mar lançava.

Ao cabo deste tempo encontraram um cafre, velho senhor de duas aldeias, que os recebeu com alegria e muito bem. Pediu-lhes o reizete20 que não passassem dali. Deixassem estar na companhia dele (dizia) que trataria de os manter o melhor que pudesse.

Estava o velho em guerra com um rei vizinho, pelo qual passariam os Portugueses se continuassem o caminho na direção do norte: e desejava por isso o auxílio dos nossos. Afirmava-lhes que se insistissem em prosseguir seriam roubados por esse rei; de maneira que, em virtude da ajuda que esperava obter e também do conhecimento que dos Portugueses já tinha (por Lourenço Marques e António Caldeira, que ali haviam estado de uma outra vez) trabalhava o cafre quanto podia por que se demorassem os náufragos junto dele.

Em se determinar se detiveram seis dias. E, vendo o cafre que Manuel de Sousa continuava no desejo de seguir avante, pediu-lhe que o ajudasse, antes disso, com alguns homens da companhia, contra certo inimigo que lhes atrás ficara. Pediu o capitão a Pantaleão de Sá que quisesse ir ajudar o rei amigo com uns vinte portugueses da companhia. Foi ele, com efeito, com os vinte dos nossos e quinhentos cafres. Retrocederam umas seis léguas, tomaram ao inimigo todo o gado, e trouxeram-no ao arraial onde estava o rei, com Manuel de Sousa e os companheiros. Gastaram nisto meia dúzia de dias.

Tornou Manuel de Sousa a reunir conselho. Ficou decidido retomarem a marcha até àquele rio de Lourenço Marques, que havia três meses andavam buscando. Ora, a verdade é que já lá se achavam, sem o saberem. Com efeito, o rio que buscavam tem três braços, e Manuel de Sousa e seus companheiros encontravam-se na margem do primeiro. Cegou-os, porém, sua má fortuna, e não quiseram senão prosseguir. Pensou por isso o capitão em tomar sete ou oito almadias21 que ali viram fechadas com cadeias. O rei cafre, todavia, não lhas queria dar, pelo muito desejo de os ter consigo. Mas Manuel de Sousa tanto instou que o bom do rei, afinal, os deixou servirem-se das almadias e transporem-se nelas à outra margem, onde se ordenaram para caminhar. Passados sobre isto uns cinco dias, chegaram à beira do rio do meio, onde sofreram sede por ser salgado. Desejou o capitão mandar buscar água; ninguém o quis, todavia, fazer, a menos de cem cruzados o caldeirão.

Ao outro dia, perto da noite, apareceram uns negros em três almadias. Por uma negra do arraial, que começava a entender o falar dos Cafres, fizeram saber aos Portugueses que viera ali gente parecida com eles, tripulantes de um navio que partira já. Perguntou-lhes o capitão: quereriam passá-los para a outra banda? Os negros disseram que no dia seguinte, se lhes pagassem bem.

Ao amanhecer, com efeito, vieram os Cafres com quatro almadias, e começaram o trabalho combinado, pelo preço de alguns pregos.

No meio do rio, de repente, Manuel de Sousa arrancou na espada, e bradou para os negros:

— Perros, onde me levais?

Os Cafres saltaram à água; e os nossos, abandonados, estiveram em risco de se afundar.

Dona Leonor e os que iam com ela pediram-lhe que não fizesse mal aos homens, que com tal se poderiam perder. Manuel de Sousa, até ali, fora pessoa conhecida e admirada por sua brandura e discrição; quem viu aquilo, por isso mesmo, facilmente concluiu que perdera o  tino, pelas muitas vigílias e cuidados que naquela jornada padecera. O certo é que dali em diante nunca mais ele pôde governar a gente como até ali havia feito. Chegado à outra banda do rio, queixou-se muito da cabeça. Ataram-lha com toalhas, e ali se tornaram a juntar todos. Decidiam-se a caminhar, quando se aproximou um grupo de Cafres. Prepararam-se os nossos para a defesa, cuidando que viriam para os assaltar. Perguntados quem eram e que buscavam, os Portugueses responderam que cristãos e náufragos, e rogaram-lhes que os guiassem para um rio grande que sabiam situado mais além; se tinham mantimentos, lhos trouxessem, pois estavam decididos a comprá-los. Por uma cafra que de Sofala viera lhes disseram os negros que os acompanhassem, pois seriam agasalhados pelo seu rei. Deixaram-se pois conduzir por eles, até o local que lhes haviam dito. Uma vez chegados, mandou-lhes comunicar o rei dos Cafres que não entrassem naquele lugar e que se fossem postar ao pé de umas árvores, onde lhes enviaria de comer.

E, com efeito, receberam mantimentos a troco de uns pregos.

Assim se detiveram uns cinco dias, parecendo-lhes que poderiam ficar ali até à chegada de uma nau da Índia, segundo o que os negros lhes haviam contado.

O rei, porém, disse-lhes que não poderiam continuar juntos, por falta de mantimentos naquela terra. Ficasse o capitão com a mulher e os filhos e alguns dos companheiros que preferisse; e os outros se repartissem por aqueles lugares. Isto dizia com ruim tenção; não se atrevia, porém, a pelejar com os nossos, pelo medo que tinha das espingardas, de que havia cinco no arraial. Os Portugueses entregaram-se à sua fortuna e aceitaram a ideia do insidioso cafre, esquecidos do conselho daquele rei amigo que tinham anteriormente conhecido.

O negro, assente que os nossos se repartissem, acrescentou que tinha ali capitães seus, cada um dos quais se encarregaria de um grupo determinado de Portugueses, a fim de os alojar e sustentar; propunha, porém, que estes abandonassem as suas armas, porque os Cafres, com medo delas, os não tomariam enquanto as tivessem; e que ele as mandaria meter numa choça, para lhas restituir quando chegasse a navio.

Caíra o capitão, como já sabemos, gravemente enfermo, e não respondeu como o teria feito se se achasse na inteireza do seu juízo. Prometeu por então que falaria com os seus. Reuniu-os, pois, e disse-lhes que o rio de Lourenço Marques era aquele mesmo em que agora se viam, segundo André Vaz, o piloto, lhe havia afirmado; que quem quisesse poderia seguir; ele, porém, o não podia fazer, por amor de seus filhos e de sua mulher, que vinha debilitadíssima dos grandes trabalhos, e já sem escravas que lhe assistissem. Sua determinação, portanto, era acabar com sua família, quando disso fosse Deus servido. Pedia aos que seguissem seu caminho, e que achassem embarcação de Portugueses, que lhe trouxessem ou mandassem novas. Os outros ficassem, e, por onde ele passasse, passariam eles. Para sossegar os negros, todavia, e para não cuidarem que eram ladrões, seria necessário entregarem as armas. Era o que lhes cumpria agora fazer. Mandou portanto que as depusessem. Assim fizeram, contra vontade de alguns deles e muito mais de D.  Leonor. Porém, ninguém o contradisse senão esta, ainda que de nada lhe aproveitou. Exclamou ela então:

— Entregais as armas? Pois agora me dou eu por perdida, com toda a gente que aqui está!

Tomaram-nas os negros imediatamente, e logo as levaram para casa do rei.

Mal viram os Portugueses desarmados, caíram os Cafres sobre os desgraçados, apartaram-nos, bateram-lhes, roubaram-nos, arrastaram-nos por esses matos, cada um deles como lhe cabia em sorte. Chegados às aldeias, já os levavam completamente despidos; e com muitas pancadas os lançavam fora.

A Manuel de Sousa, sua mulher e seus filhos, ao piloto e a umas vinte pessoas, deixaram- nos ficar na companhia do rei, porque traziam joias, pedrarias, dinheiro. Assaltaram-nos, e de tudo os roubaram. Depois, disse o rei a Manuel de Sousa que se fosse em busca dos demais companheiros, que se não arriscavam a nenhum outro mal.

Os dos outros grupos se foram juntando. Seriam ao todo umas noventa pessoas. Muito maltratados, despojados de tudo, recomeçaram dessa forma o seu fadário. Cada um, não havendo já quem os comandasse, tomou o caminho que lhe apeteceu. E muitos dos desgraçados se perderam assim.

Manuel de Sousa, com sua mulher, os meninos, o piloto, o contramestre, e alguns companheiros que com eles ficaram, seguiram aquele grupo dos noventa náufragos.

Ao fim de dois dias, porém, tomaram os Cafres, deram neles, e despiram-nos completamente.

Dona Leonor não se deixou despir, defendendo-se às punhadas e às bofetadas; e então decerto acabaria a vida se não fossem os rogos de Manuel de Sousa, que lhe dizia que todos nascemos nus e que mostrasse resignação à vontade de Deus. Choravam entretanto os dois meninos, pedindo comer: e nada havia que lhes pudessem dar…

Vendo-se nua, lançou-se na areia, cobrindo-se toda com os seus cabelos. Fez uma cova e meteu-se nela. Ainda lhe deram uma mantilha rota; porém, nunca mais Dona Leonor  se ergueu dali.

Os companheiros, quando a viram assim e ao seu bom capitão, por piedade e vergonha se afastaram um pouco. E disse ela ao piloto, com voz fraquíssima:

— Bem vedes como estamos, André Vaz. Percebeis que não podemos passar daqui; aqui acabaremos os nossos pecados. Ide vós embora. Fazei por vos salvar, e encomendai-vos a Deus. Se puderdes ainda chegar à Índia, — e a Portugal, em algum tempo, — contai como foi que aqui ficámos.

Eles, vendo que não lhes podiam dar socorro, lá se foram errando por esses matos, em busca de remédio para as suas vidas.

Ficaram com Manuel de Sousa e com sua mulher o contramestre do galeão e algumas escravas que os acompanhavam. Destas últimas se salvaram três, que conseguiram chegar a Goa. Por elas se soube, mais tarde, como morreu D. Leonor.

Manuel de Sousa, ainda que maltratado do entendimento, não esquecia a necessidade de comer de sua mulher e de seus filhos; e, estando ainda manco de uma ferida que os Cafres lhe fizeram numa perna, entrou pelo mato a buscar frutas. No regresso, achou Dona Leonor muito enfraquecida, assim de fome como de chorar. Um dos meninos morrera já, e por suas mãos o enterrou na areia. No dia seguinte tornou ao mato, em busca de fruta. Quando voltou, Dona Leonor e o menino estavam mortos. Em redor, choravam e gritavam umas cinco escravas. Apartando as escravas, foi sentar-se o marido junto dela, com o rosto apoiado numa mão. Esteve assim a olhá-la, por meia hora, sem chorar nem dizer palavra. Por fim ergueu-se, escavou a areia com a ajuda das servas, e enterrou-a a ela e ao seu filhinho. Todo esse tempo se conservara mudo.

Depois de enterrada Dona Leonor, e sempre calado, embrenhou-se no mato e desapareceu.

Os que de toda a companhia conseguiram salvar-se seriam uns oito Portugueses, catorze escravos e três das escravas que acompanhavam a dama no momento da sua morte. E, andando por ali sem nenhuma esperança de chegarem a terra de gente cristã, sucedeu que  um navio, em que ia um parente de Diogo de Mesquita, foi ter àquele rio para comprar marfim. Tendo notícia de Portugueses perdidos, mandou procurá-los, resgatando-os pelo preço de algumas contas, que seria de dois vinténs por cada um. Embarcaram, pois, e chegaram a Moçambique a 25 de maio de 1553.

 

História trágico-marítima. Narrativas de naufrágios da época das conquistas, adaptação de António Sérgio. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1934

 

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NOTAS:

1 galeão: antiga embarcação de carga que portava maior tonelagem.

2 Coulão e Cochim: cidades no Sul da Índia (em Kerala), na qual os Portugueses estabeleceram feitorias. Cochim foi a capital da Índia Portuguesa até 1530.

3 quintais: unidade de medida, cerca de cem quilogramas.

4 fuzis: relâmpagos.

5 mestre: responsável pela navegação de uma embarcação; era, habitualmente, alguém que dominava muito bem a sua atividade profissional.

6 meter de capa: imobilizar a embarcação através do desfraldar das velas.

7 papafigos: velas redondas mais baixas, isto é, a vela grande e o traquete.

8 machos do leme: peças de ferro, pregadas no bordo vertical interior do leme, e que giram dentro de fêmeas pregadas na roda da popa.

9 ló: o bordo do navio onde vão as velas amuradas, e, portanto, o que recebe o vento (o lado do barlavento).

10 traquete: a mais baixa e maior vela redonda do mastro da proa. É um dos papafigos.

11 enxárcias: o conjunto dos cabos fixos que, para um e outro bordo, aguentam os mastros reais, descendo até às mesas.

12 viradores: cabos grossos, em geral destinados a gornir ao cabrestante para esforços grandes.

13 brandais: cabo que desce do calcês de um mastaréu até à mesa da enxárcia. Serve para segurar o mastaréu para os lados do navio.

14 tamboretes: pranchões com que se fortificam as aberturas que no convés e nas cobertas dão passagem aos mastros.

15 manchua: navio de carga à vela e remos, com um único mastro e vela redonda, muito usado na costa do Malabar.

16 braça: medida de oito palmos. A linha com que se sonda é dividida em braças

17 quilha: a peça do fundo do navio.

18 cepos: pedaços de madeira.

19 brejos: lugar frio e húmido; pantanal; matagal.

20 reizete: rei de um pequeno estado; régulo.

21 almadia: embarcação africana, esguia e comprida, feita de troncos de árvore

 

 

 

Manuel de Sousa Sepúlveda | por Fausto Bordalo Pinheiro, 1994

 



 

Que Deus te perdoe Sepúlveda

O que foste fazer

Sepúlveda

Abandonaste o teu filho bastardo no mato

O mais fraco da fome a morrer

Que Deus te perdoe

Deixou-se ficar tão pequeno

Sem um consolo, um afeto

Tão pequeno e sozinho

Muito quieto

 

Ajoelha-te ao menos Sepúlveda

Perdeste o entendimento

Sepúlveda

Aquele pranto é o teu filho entre os fenos

Comido pelas feras

Gemendo, gemendo

Ajoelha-te ao menos

Ficou para trás tão cansado

Soluçando por ti tão baixinho

Tão cansado a tremer de medo

O teu menino

Nas serranias

Nos lamaçais

Nas penedias

Nos matagais

Nos matagais

E a tua gente de costas viradas

Viradas as costas de pura vergonha

Vergonha pura pela tua nudez

Nudez pela tua miséria e peçonha

Peçonha e miséria de gente espancada

Espancada esta gente despida e calada

Não vendo em ti salvação os incréus

Entram pelos matos, buscam os céus

Vão indiferentes meio aluados

Mais indigentes, transfigurados

Encomendam-se aos santos

Lavados em prantos

Louvados

Sejam louvados

Louvados

 

Levanta-te agora Sepúlveda

Quem olha por Leonor

Sepúlveda

Foi a tua mulher pelos negros despida

Pela força rasgada pela dor

Levanta-te agora

E diante dela tão magoados

Choram os teus dois filhos mais tenros

Tão magoados

E acabrunhados dos assombramentos

O que foste pedir Sepúlveda

Leonor quer antes morrer

Sepúlveda

Rogaste que se deixasse despir

E despida ela ao menos pudesse viver

O que foste pedir

Se de vergonha ao ver-se tão desnuda

Se cobriu toda numa cova na areia

Tão desnuda que não mais se ergueu da terra já derradeira

Nas serranias

Nos lamaçais

Nas penedias

Nos matagais

Nos matagais

 

E a tua gente de costas viradas

Viradas as costas de pura vergonha

Vergonha pura pela tua nudez

Nudez pela tua miséria e peçonha

Peçonha e miséria de gente espancada

Espancada esta gente despida e calada

Não vendo em ti salvação os incréus

Entram pelos matos, buscam os céus

Vão indiferentes meio aluados

Mais indigentes, transfigurados

Encomendam-se aos santos

Lavados em prantos

Louvados

Sejam louvados

Louvados

Reza a tua oração Sepúlveda

Por Leonor e por Deus

Sepúlveda

Se nenhum caso fizeste dos teus filhos deixados

Agarrados à mãe que morreu

Reza a tua oração

Por aqueles matos tão adentro

Sem chorar nem dizer coisa alguma

Tão adentro

Partiste p’ra sempre sozinho

Sepúlveda

 

Sepúlveda

Que Deus te perdoe

 

Canção: "Manuel de Sousa Sepúlveda"

Autor: Fausto

Álbum: Crónicas da Terra Ardente

Data: 1994

 

Crónicas da Terra Ardente é o segundo álbum da trilogia Lusitana Diáspora, que inclui ainda os álbuns Por este rio acima (1982) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011).

O primeiro álbum da trilogia, Por Este Rio Acima, baseia-se nas viagens de Fernão Mendes Pinto, relatadas no seu livro Peregrinação (1614) enquanto que Crónicas da Terra Ardente foi inspirado pela História Trágico-Marítima (1735) reunida por Bernardo Gomes de Brito.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B3nicas_da_Terra_Ardente

 



CARREIRO, José. “O naufrágio de Sepúlveda (1552)”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/o-naufragio-de-sepulveda-1552.html


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