sexta-feira, 20 de maio de 2022

Pessoa. Uma Biografia, por Richard Zenith


Diz-se que Pessoa não teve vida fora da obra, mas Richard Zenith precisou de uma dúzia de anos e de 1200 páginas para escrever a sua biografia, agora lançada em português pela Quetzal, depois de a edição original em língua inglesa ter chegado à final do prémio Pulitzer. Sai-se deste livro, escrito numa prosa cativante e precisa, com a noção exacta de tudo quanto não sabíamos sobre o escritor central da literatura portuguesa do século XX.

 

Luís Miguel Queirós, 2022/05/20




Quando recebeu o Prémio Pessoa, em 2012, Richard Zenith já estava a trabalhar nesta biografia, cuja edição portuguesa foi apresentada esta quinta-feira na Gulbenkian. Lançada em Julho de 2021 no mundo de língua inglesa e recebida pela imprensa norte-americana e britânica com críticas poucos menos do que estratosféricas, esta obra monumental chega agora, com a ajuda dos tradutores Salvato e Vasco Teles de Menezes, à língua e à cultura portuguesas, que ao longo de mais de 70 anos – desde que João Gaspar Simões publicou, em 1950, a sua pioneira Vida e Obra de Fernando Pessoa – não se mostrou capaz de produzir uma biografia actualizada do seu mais importante escritor moderno. Uma lacuna genuinamente enigmática e que as anteriores biografias do espanhol Ángel Crespo e do francês Robert Bréchon não tinham verdadeiramente conseguido colmatar.

O próprio Zenith confessa aqui ter receado, quase até ao fim, que este Pessoa. Uma Biografia viesse apenas confirmar que o seu título propunha uma espécie de contradição nos termos e que não era possível escrever-se uma biografia satisfatória do elusivo criador de heterónimos. Afinal é. E a espantosa quantidade de pequenos factos desconhecidos, negligenciados ou esquecidos que muitos anos de pesquisas lhe permitiram reunir neste livro, ou a luz inteiramente nova que lança sobre o papel desempenhado por alguns familiares do biografado, como a prima-tia Lisbela ou o tio Cunha, ou ainda as notáveis páginas em que contextualiza o mundo em que o poeta viveu, de Durban a Lisboa, sendo alguns dos inquestionáveis méritos desta obra, não devem ocultar o seu triunfo principal, que é ter realmente conseguido contar-nos a história de Fernando Pessoa. É uma figura viva que emerge destas páginas, com uma existência exterior não tão monótona como nos fizeram crer, e uma das mais vastas e complexas vidas imaginadas que algum cérebro acolheu.

A sexualidade, os interesses esotéricos, as posições políticas, os preconceitos, tudo é tratado por Zenith com elegância e imparcialidade, evitando impor juízos ao leitor. Se esta biografia propõe uma tese é a de que Pessoa era “um implacável transformador de si mesmo” e que gostava de antecipar o que ainda não era para se obrigar a chegar lá. Foi assim que se tornou o génio que decidiu ser.

Nasceu em Washington, nos Estados Unidos, em 1956. Como é que veio parar a Portugal e descobriu Fernando Pessoa?
Vim com uma bolsa da Fundação Guggenheim para traduzir e organizar uma antologia de cantigas medievais. Publiquei então 113 Galician-Portuguese Troubadour Poems, de que acabou agora de sair, 25 anos depois, uma edição muito revista e ampliada. Mas o interesse por Fernando Pessoa é anterior. Tinha uma amiga em Chicago, onde vivi um ano, cujo namorado português lhe passou alguns poemas do Pessoa: um deles, lembro-me bem, era a Tabacaria. Como ambos sabíamos espanhol, conseguíamos perceber o que líamos. Ficámos fascinados.

Em que ano se passou isso?
Talvez em 1978. A seguir fui para o Brasil, onde estive três anos e aprendi português. Ainda hoje tenho algumas edições brasileiras do Pessoa que comprei na altura. Mas nunca imaginei que iria trabalhar sobre a obra dele. Só quando cheguei a Portugal em 1987, com a tal bolsa, é que li o Livro do Desassossego, que tinha sido publicado em 1982. Achei-o espantoso e montei um projecto para o traduzir para inglês.

Foi a primeira edição em língua inglesa?
Já havia traduções para espanhol, francês, alemão e italiano, mas não para inglês. Só que não fui o único a reparar nisso: mais três pessoas tiveram a mesma ideia e, em apenas seis meses, saíram quatro traduções: três em Inglaterra, incluindo a minha, e uma nos Estados Unidos.

Com quase 1200 páginas, Pessoa. Uma Biografia reúne uma quantidade fabulosa de detalhes, muitos deles desconhecidos, sobre a vida quotidiana do poeta, do percurso escolar, em Durban e Lisboa, às relações familiares, ou das amizades aos projectos comerciais. Quanto tempo lhe tomou este livro?
Trabalhei nisto 13 anos, mas fui fazendo outras coisas pelo meio. Contando apenas o tempo de pesquisa e escrita, talvez oito anos. Passei longas horas em vários arquivos e bibliotecas, entrevistei descendentes de familiares e outros que conheceram Pessoa, tive acesso a cartas e outros documentos inéditos, graças à colaboração de Manuela Nogueira, sobrinha do poeta e a única pessoa ainda viva que conviveu com ele, e viajei para Durban. O mais difícil, no entanto, foi a própria escrita. Ligar todas as informações numa sequência que fizesse sentido, que constituísse uma história fiel e ao mesmo tempo viva, dinâmica, deu-me imenso trabalho. Escrevo lentamente.

A ideia muito difundida de que Pessoa não teve propriamente biografia pode levar os leitores a pegar no livro com expectativas diminuídas de conhecerem muitos factos novos e expectativas aumentadas de encontrarem mais uma explicação de Fernando Pessoa. Não lhe parece que esta sua biografia se arrisca a conseguir frustrar ambas?
Espero bem que sim. Devo dizer, aliás, que a pesquisa e a escrita do livro frustraram as minhas próprias expectativas. O contrato que tinha era para escrever cerca de 160 mil palavras, e afinal o livro ficou com 360 mil, mais do dobro. Em parte porque incluí bastante contextualização, mas também porque Pessoa tinha muitos interesses: literatura, esoterismo, política, sociologia…

Todos esses detalhes biográficos que pesquisou ajudaram-no a perceber melhor a obra?
Muito. Fica-se a ver como a obra de Pessoa é, afinal de contas, bastante autobiográfica, embora de forma distorcida. Tudo o que sente, e ele sentia mesmo aquilo tudo, é de ordem pessoal, mas serve-lhe também imediatamente como matéria-prima para fazer arte. Os seres humanos comuns usam o que sentem e pensam para construírem a sua identidade. Pessoa transformava logo o que sentia e pensava em palavras, em obra. E é também por isso que é uma figura instável, que está sempre a mudar.

Esta biografia abre com uma lista de “dramatis personae”, autores fictícios inventados por Pessoa. São 47 entradas e, mesmo assim, não incluiu sequer todos os que figuram no livro. Tem ideia de quantos haverá no total?
É uma contagem difícil. Podemos dizer que há de certeza mais de uma centena de nomes que Pessoa inventou com a intenção de lhes atribuir textos ou traduções. E entre esses haverá talvez uns vinte e tal com obra significativa.

Essas minibiografias estão escritas num tom conciso e factual – arruma o Pessoa ortónimo em duas linhas –, que parece mais pensado para abrir o apetite do leitor do que para lhe satisfazer a curiosidade antes do tempo…
A minha ideia inicial até era pôr a lista no fim, mas a editora nos Estados Unidos achou que faria mais sentido a abrir o livro. E eu concordei: assim serve de referência ao leitor, que ao tropeçar num nome de que já não se lembra, pode ir ali ver. E usei a expressão “dramatis personae” para evitar designar todos como heterónimos, mas também porque numa peça de teatro a lista de personagens vem no início, e Fernando Pessoa defendia, com razão, que era um poeta dramático.

Nessa lista não distingue os heterónimos principais dos restantes. O que os separa de outros autores fictícios relevantes, como o Barão de Teive ou António Mora, é uma questão de grau, e não de natureza?
Até digo logo no início que Pessoa criou três heterónimos plenamente desenvolvidos, mas essa discussão sobre quem é e não é heterónimo parece-me ter pouca relevância. O interessante é o fenómeno da heteronímia. E para além dos três heterónimos principais, há outros com peso e substância, como esses que citou, mas também, por exemplo, Alexander Search. E depois até há alguns que aparecem nos papéis e que são apenas ideias de possíveis heterónimos, que se ficaram pelo nome. Incluo um deles…

…Refere-se a Gaveston, que parece ter sido uma espécie de projecto falhado de alter ego homossexual?
Exacto. Não tem textos ou projectos atribuídos, mas a assinatura dele aparece ao longo de vários anos, o que sugere que representava qualquer coisa para Pessoa.

Diz que tentou construir uma vida “cinematográfica”, como se tivesse uma câmara na mão e acompanhasse Pessoa na sua vida quotidiana. A opção de incluir um apêndice final com um resumo do que veio a acontecer às personagens principais depois de ele ter morrido também faz pensar no cinema…
Sim, é como nos filmes antigos. Foi deliberado, claro. Mas esse apêndice também me serviu para abordar a posteridade de Pessoa e a publicação da obra depois da sua morte.

Escolheu um modelo distintamente cronológico. Foi uma opção evidente desde o início?
Contemplei várias abordagens, mas uma vez que Pessoa é tão complexo e variado, pareceu-me que a cronologia poderia dar-me pelo menos um fio condutor seguro. Um dos desafios desta biografia, e só o percebi bem ao escrevê-la, é que quase todos os interesses e obsessões de Pessoa surgiram logo no início, em criança, e permaneceram até ao fim. Isso levou-me a escolher um modelo que é um pouco o da fuga, em sentido musical. Há vários temas que se entrelaçam ao longo do livro e que vão sempre regressando, com fases em que um ou outro – as preocupações políticas, a busca espiritual… – se torna predominante. E ainda bem que segui o método cronológico, porque cruzar a vida de Pessoa com o que ia acontecendo no plano político e social, e também com o que ele estava a escrever em cada momento, permitiu-me descobrir muita coisa.

Dedica muita atenção a figuras próximas de Pessoa que os biógrafos anteriores tinham abordado superficialmente, ou mesmo ignorado, como a prima Lisbela Pessoa Machado, que foi uma das suas financiadoras mais recorrentes, ou o tio-avô Manuel Gualdino da Cunha, cujos jogos com personagens inventadas podem ter ajudado a estimular no sobrinho a tendência para criar autores fictícios…
Essa Lisbela, uma prima direita do pai a quem Pessoa tratava por “tia”, vivia em Tavira e era uma figura importante na vida do poeta. Quanto ao tio Cunha, Manuela Nogueira publicou algumas cartas dele para Pessoa quando este estava em Durban, e através delas ficamos a conhecer os curiosos jogos que os dois mantinham. Inventavam personagens que depois tinham continuidade, como nas telenovelas. E o tio Cunha também levava o pequeno Fernando à redacção do jornal do Partido Progressista, o que pode ter inspirado Pessoa a criar, na adolescência, jornais escritos por uma série de autores fictícios. É difícil saber o que Fernando Pessoa teria sido sem este tio. Gaspar Simões menciona-o, mas diz que era praticamente analfabeto, o que não é de todo verdade.

Há também vários episódios que o leitor reconhece, mas que no seu livro parecem estar corrigidos. Penso, por exemplo, no célebre slogan para a Coca-Cola, que afinal seria um pouco mais comprido do que se pensava…
Quem primeiro mencionou a história da Coca-Cola foi o Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho de um dos patrões de Pessoa, num livro publicado em 1985. Mas não se lembrava bem do slogan, e também se enganou no ano. Fui pesquisar e descobri o anúncio nos jornais da época. O texto correcto é: “No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se.”

Tirando o pioneiro João Gaspar Simões, os poucos biógrafos de Pessoa têm sido estrangeiros. O espanhol Ángel Crespo, o francês Robert Bréchon, e agora o americano-português Richard Zenith. Além da falta de tradição local do género biográfico, será que o facto de escreverem para leitores das suas próprias línguas os desembaraça um pouco da ansiedade de estarem a contar coisas já conhecidas por muitos portugueses?
Há alguma verdade nisso. Sendo um outsider, escrevendo em inglês, sentia-me mais livre. A propósito, na edição portuguesa, eu próprio sugeri que eliminássemos algumas coisas que todos os portugueses sabem. Mas acho que a maioria não conhecerá assim tão bem o que conto desse período fascinante da transição da Monarquia podre para a República disfuncional, e depois para a ditadura militar e para o Estado Novo. Em relação à história americana, eu também ignoro muita coisa que acontecia nesses mesmos anos.

O que é que aprendeu com as biografias anteriores?
Em primeiro lugar, aprendi como é difícil escrever uma biografia de Fernando Pessoa! Difícil, sobretudo, captar o seu lado humano e quotidiano, porque a dimensão de escritor genial, essa está patente na obra. Cada uma das biografias anteriores tinha uma visão diferente, a começar pela de João Gaspar Simões, a primeira, cuja abordagem algo freudiana foi muito criticada, embora essa perspectiva até tivesse alguma razão de ser. Acaba por ser limitativa, porém, uma vez que Pessoa está sempre à frente de qualquer explicação, psicológica ou outra. Mas usei certamente informações da sua biografia. Embora ele raramente cite as suas fontes, é óbvio que falou muito com a irmã de Pessoa, Henriqueta, e há uma série de factos para os quais é a única fonte que temos. É sempre fácil criticar o trabalho já feito, mas Gaspar Simões tinha intuições certeiras. E se não conheceu a fundo o espólio de Pessoa é porque isso lhe teria exigido anos, e ele não tinha essa possibilidade: não era rico e precisava de ganhar dinheiro. Comecei a minha biografia num momento em que já existia um grande trabalho de investigação feito por muitas pessoas, eu incluído, e beneficiei disso. Mas também tenho de dizer que, em termos de abordagem, nenhuma das biografias anteriores me ajudou muito. Foram mais importantes, como modelo, algumas biografias ao estilo anglo-saxónico, como, por exemplo, as que Richard Ellmann escreveu sobre Joyce, Yeats ou Oscar Wilde.

Uma coisa que ressalta desta biografia, e que não me parece que fosse assim tão óbvio (e tão documentado) antes dela, é que, ao longo de toda a sua vida, Pessoa se rodeou de excêntricos. Atraía-os? Era ele que os procurava?
Pessoa conheceu dezenas e dezenas de pessoas, mas não quis confundir os leitores com tantos nomes e concentrei-me nos amigos que o seguiram realmente ao longo da vida. Reuniam-se em cafés e eram, realmente, bastante excêntricos. Vários tinham mesmo algum grau de loucura, e mais do que um chegou a ser internado. Penso que Pessoa sentia nessa excentricidade, mesmo quando não a percebia, uma visão diferente do mundo, alguma originalidade que o atraía. E, claro, ele próprio era completamente excêntrico, de modo que fazia sentido que convivesse com os seus semelhantes.

O substantivo excêntrico tem esse sentido de pessoa extravagante, mas o adjectivo indica o que se situa fora do centro. Esse grupo não era também constituído por gente que não pertencia ao mainstream, até no plano literário?
Sim, é bem visto. Pessoa, no seu percurso, tendeu a ocupar a periferia, onde estavam também os seus amigos. E é curioso ver como evoluiu, por exemplo, a sua relação com um escritor e artista como Almada Negreiros, que frequentou muito na fase de Orpheu. Mas depois disso, embora continuassem amigos, encontravam-se bastante pouco. Talvez porque Almada, sendo um artista que criticava a sociedade, era de certo modo mainstream, era muito conhecido. E os amigos que Pessoa mais frequentava eram sujeitos sem protagonismo público, com os quais provavelmente se sentia mais à vontade.

Mostra que Pessoa andou a vida inteira a dever dinheiro a toda a gente: familiares, amigos, comerciantes. Mas também se fica com a ideia de que nunca teve dificuldades materiais sérias. Era também isso uma espécie de jogo?
Penso que sim. Podia ter arranjado um emprego a tempo parcial, que até lhe deixaria mais tempo para escrever, em vez de andar a correr de um escritório para outro ou a fazer umas traduções aqui e ali. Mas sempre recusou tudo o que implicasse grandes responsabilidades e não conseguia assumir um emprego normal. Aliás, rejeitava as várias facetas que constituíam o que via como uma vida vulgar: ter um emprego certo, um casamento certo, tudo certo. Mas é curioso verificar que mantinha registos precisos de todas as suas dívidas, o que também tem o seu quê de lúdico. Pedia dinheiro emprestado do credor B para poder pagar ao credor A, do credor C para pagar ao credor B, e estava sempre nisto. De certa forma, talvez se divertisse com isso. O certo é que, apesar de todos os apuros, havia sempre familiares e amigos dispostos a financiá-lo.

Assegura que “Pessoa não copulou com nenhum homem ou mulher, não rezou a nenhum deus e não aderiu a nenhum partido político”. Não há qualquer dúvida de que morreu virgem?
Há apontamentos escritos no final da vida, alguns ainda não publicados, em que ele teoriza sobre a sua castidade e o que isso representa em termos espirituais, vendo nela uma vantagem para o seu caminho pessoal.

Evita definir a sexualidade de Pessoa, ainda que a dado passo arrisque que seria “androginamente monossexual”. Mas esse é um dos temas fortes desta biografia. Porque lhe pareceu relevante, ou também por se ter sentido genuinamente intrigado?
As questões da sexualidade eram muito importantes para Fernando Pessoa, mais do que eu imaginava. E a castidade não era, para ele, a negação do sexo, era a sua maneira de ser sexual. É difícil de explicar, mas a biografia tenta fazê-lo. Ele vivia pela escrita, e também o sexo era experimentado através de representações, como as que deixou nos poemas Antinous ou Epithalamium. Note-se que os heterónimos eram um clube de homens, todos solteiros, mas havia em toda aquela proliferação heteronímica uma espécie de energia sexual que depois era como que transformada em escrita. E Pessoa relacionava ainda tudo isto com a sua demanda espiritual.

Além do namoro com Ofélia, a biografia alude a dois vagos flirts com outras mulheres. Mas embora pareça provável que Pessoa se tenha sentido atraído por homens, não se lhe conhece nenhum entusiasmo semelhante dirigido a um homem concreto. Não acha isso estranho?
Há quem especule sobre a sua relação com Sá-Carneiro, mas isso não me convence. Pessoa tinha com certeza impulsos, mas era muito reservado, e é na sua obra literária que acaba por se exprimir e encontrar alguma compensação. Pode ser que se recusasse a admitir certas atracções, mas ele também dizia, embora não exactamente nestes termos, que não tinha uma libido forte. Talvez seja essa a explicação.

Quando cheguei às páginas em que aborda a relação com Mário de Sá-Carneiro, ocorreu-me que a escrita desta biografia deve ter sido o contexto ideal para se aperceber do potencial significado da perda das cartas de Pessoa ao amigo.
Resta uma que Pessoa copiou e conservou porque ponderava incluí-la no Livro do Desassossego. E ainda uma outra, inacabada, que não chegou a enviar. E é possível, até certo ponto, ler-se as cartas de Pessoa através das de Sá-Carneiro. Em todo o caso, não sei se teriam acrescentado assim tanto à biografia, até porque muitas eram altamente literárias. Mas haveria certamente outras com assuntos mais mundanos.

E sugere que essas cartas que teriam desaparecido da mala que Sá-Carneiro deixou no hotel onde se matou, em Paris, poderão afinal ter sido destruídas pelo seu pai.
Durante o período em que conheceu Pessoa, Mário de Sá-Carneiro passou três temporadas em Paris. E da última vez que partiu não teria certamente metido na mala todas as cartas antigas de Pessoa. O natural teria sido deixá-las em casa, em Portugal. Portanto, quando morreu, só deveria ter com ele as últimas cartas que Pessoa lhe enviara. Mas desapareceram todas, e não apenas essas. Um mistério...

Como vê o interesse de Pessoa pelo esoterismo e a sua renovação do mito do Quinto Império? Surpreendeu-me perceber que quase só fala disso nas últimas entrevistas que deu a jornais.
Há um jornalista, Luís Câmara Reis [fundador e director da Seara Nova], que escreveu que Pessoa tinha um ar de mago, o que não surpreende, pois dedicava-se ao estudo do esoterismo com muita paixão. Mas havia outro lado dele que era completamente céptico, e os dois podiam coexistir. Para mim foi difícil escrever sobre astrologia e outros domínios esotéricos, pois não é um assunto que me atraia naturalmente ou em que acredite. Mas era importantíssimo para Pessoa. Quis descrever tudo aquilo sem menosprezar, sem fazer um juízo. Quanto ao Quinto Império, é uma esperança e uma visão que Pessoa começa a nutrir em 1915. Como acontece com outras ideias que lhe eram caras, não a revela logo ao público. Vejo o Quinto Império não só como uma visão, mas como um poema. Um poema que, afinal de contas, não deu certo.

Ao longo do livro, vai contrastando a vida e a obra de Pessoa com as de autores como Joyce, Yeats, Whitman, Eliot, Pound, Rilke, Kafka ou Kaváfis. Como é que situa o poeta português nessa constelação da modernidade literária?
Quis mostrar que era um modernista, como Yeats, Pound ou Eliot, e que estava na periferia, como Kaváfis em Alexandria. A vários níveis, Pessoa tinha muito em comum com eles, mas quis também mostrar que, ao mesmo tempo, era profundamente diferente. Foi um modernista, certo, mas ia além do modernismo, a que só deu alguma importância na época de Orpheu, quando criou aqueles movimentos vanguardistas do paulismo, interseccionismo e sensacionismo. Há Ricardo Reis, que é classicista. E há Álvaro de Campos, que nasce como uma espécie de futurista, mas rapidamente abandona essa estética. Pessoa queria ser tudo, abranger tudo, e não podia encaixar-se num movimento ou corrente literária. Era e não era modernista.

Pessoa atrai leitores muito diversos, e creio que até os menos preparados sentem que o percebem, o que não será muito extensível a um Joyce ou um Eliot. Concorda? Acha que se deve ao facto de conseguir inovar sem grandes subversões linguísticas?
Um dos aspectos geniais de Pessoa é que consegue ser profundo e simples ao mesmo tempo. É extremamente erudito, mas essa sabedoria está entre parêntesis, não é exibida na obra. Tinha, por exemplo, um domínio fortíssimo do latim, mas mal se dá por isso.

Há um passo em que, aludindo aos contos que Joyce reuniu em Dubliners, sugere que Pessoa poderia ter escrito Os Lisboetas. Como vê a sua relação com a cidade onde viveu quase toda a sua vida?
Lisboa é central na obra de Fernando Pessoa. Identificamo-lo com Lisboa como identificamos Kafka com Praga ou Joyce com Dublin. No entanto, vejo a sua relação com a sua cidade de um modo um pouco diferente: creio que os habitantes de Lisboa são como uma família para ele. Pessoa não criou a sua própria família, mas no Livro do Desassossego, e também nos poemas, menciona muito essas figuras das camadas populares: os empregados dos restaurantes, os barbeiros, as costureiras, os moços de frete, que eram aqueles galegos que esperavam nas esquinas de Lisboa que alguém os contratasse para levar um recado ou transportar algum objecto. E há depois a sua relação com os escritórios de Lisboa e com quem lá trabalhava. Todas essas pessoas constituíam para Fernando Pessoa uma espécie de família. E são também muito importantes para ele o espaço, a topografia da cidade, que descreve com muito pormenor no Livro do Desassossego, e também o céu de Lisboa, as nuvens, o pôr-do-sol.

Acentua o facto de o seu biografado, até bastante tarde, ter querido ser um poeta inglês. Se o tivesse conseguido, acredita que teríamos equivalentes ingleses de Caeiro, Reis e Campos?
Está a misturar coisas diferentes, mas sim, Pessoa poderia ter criado heterónimos igualmente fortes em inglês se essa fosse a sua língua materna. Mas não era. Nabokov, que era russo, e Conrad, que era polaco, conseguiram escrever romances num inglês formidável. O inglês de Pessoa era muito bom, mas não a esse nível. É como se ele não conseguisse sentir em inglês. Costumo dizer que a melhor poesia inglesa de Pessoa foi escrita em português, por Caeiro e Campos. Detecto neles, como também no Livro do Desassossego, uma certa influência da língua inglesa.

O fenómeno da heteronímia aguçou o interesse por Pessoa, e não cessam de aparecer novas teses a tentar explicá-la. Essa proliferação enriquece a figura ou começa a ser um ruído, que perturba uma leitura mais limpa da obra?
Ambas as hipóteses são verdadeiras. Claro que a heteronímia enriquece a personagem, mas não vale a pena preocuparmo-nos excessivamente com ela. Pessoa foi um jogador, e este livro mostra que ele próprio acabou por se cansar desse jogo e que, no final da vida, já quase não existe esse desdobramento. Mas o fenómeno subjacente à heteronímia, essa falta de um ser uno e coeso, está sempre lá.

É correcto dizer que se situa a meio caminho entre os que acham que a heteronímia é um mero artifício e os que tendem a esquecer-se de que os heterónimos são textos, e não pessoas de carne e osso?
Há pessoanos que desdenham um pouco a heteronímia, mas a verdade é que muitos dos mais belos poemas de Pessoa não existiriam sem os heterónimos, porque os foi escrevendo em função deles. A ficção do heterónimo faz parte do poema assinado pelo heterónimo em causa. Ao escrever esta biografia, vi também claramente que as primeiras experiências de escrita, a criação de autores fictícios e o interesse por publicações, designadamente jornais, são coisas que nascem todas ao mesmo tempo e estão relacionadas.

Sabe-se que Pessoa projectou e atribuiu textos a um poeta pagão alguns anos antes do surgimento de Alberto Caeiro e dos restantes heterónimos principais. E que estes não terão nascido, como ele escreveu, num só “dia triunfal” de Março de 1914, mas foram ainda assim criados – e criaram um corpo de poemas significativo – num período muito curto e espantosamente criativo. Consegue ver o aparecimento deste trio de altos heterónimos, chamemos-lhes assim, como um episódio num processo que vinha de trás, ou há ali um salto quântico, um enigma que a pesquisa textual nunca explicará?
Ao escrever a biografia, o meu entendimento da heteronímia mudou um pouco. Enfim, já tinha mudado, mas tornou-se mais claro que a ideia de que a heteronímia surge com a obra de Caeiro não é verdadeira. Um amigo pessoano que leu a biografia em inglês achou que eu podia dar a impressão errada de que a heteronímia já funcionava antes de 1914. Mas a verdade é que acho mesmo que já estava completamente instalada quando Fernando Pessoa era bastante jovem, e mais ainda quando voltou a Lisboa para estudar na primeira década do século XX, altura em que criou uma série de personagens que escreviam em inglês, português, e até em francês. A existência de um grupo de amigos e colaboradores literários fictícios já era fundamental para a sua escrita. Em 1908, elaborou The Transformation Book, que era um projecto para organizar toda a sua obra em torno de autores inventados. Portanto, esse “drama em gente”, como Pessoa lhe chamou, não nasceu com Alberto Caeiro, mas também é verdade que Caeiro representa um salto, um mega-salto, e que sem esse conseguimento, essa capacidade de se tornar tão outro, tão diferente, o drama em gente teria tido pouco interesse e Pessoa não teria sido o grande escritor que conhecemos.

E a dívida de Caeiro a Whitman não ajuda a explicar esse salto?
Para lá da construção do drama em gente, havia todas as leituras que Pessoa fez em várias línguas, e que abarcavam uma série de movimentos, incluindo o simbolismo. Tudo isso estava em Pessoa, essa grande variedade de inputs. Eduardo Lourenço foi talvez o primeiro a realçar a grande importância de Walt Whitman para a existência de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Pessoa leu Whitman pela primeira vez por volta de 1906, e ficou espantado, mas não soube logo o que fazer com aquilo. No entanto, Whitman vai ser, mais tarde, o catalisador, a chispa que irá reagir com todos os conhecimentos que Pessoa já tinha, produzindo a admirável explosão dos três heterónimos maiores. Foi com Caeiro, o primeiro a nascer, que Pessoa revelou a sua capacidade dramática de se destacar totalmente de si próprio e ser inteiramente outro.

À discussão sobre o que Caeiro deve a Whitman e Teixeira de Pascoaes, cuja influência tem sido defendida por António Feijó, o Richard Zenith junta agora o nome de Cesário Verde.
Quando Caeiro estava a nascer, Pessoa foi redigindo vários poemas que ainda não eram de Caeiro mas estavam a caminho, já chegavam perto. Num desses manuscritos do Caeiro embrionário, ainda não completamente formado, Pessoa assinalou ao lado de um verso que este era puro Cesário. O que vemos nesses manuscritos é um conflito entre, por um lado, Pascoaes e o franciscanismo, e, por outro, Cesário e Whitman. Todas estas influências foram cruciais para a formação do Caeiro. Se com Whitman Pessoa aprendeu a inserir o corpo na escrita, foi Cesário quem lhe ensinou a concretude das coisas.

No final da vida de Pessoa, a produção heteronímica esmorece e quase se eclipsa, e embora continue a escrever bastante, parecem ir longe os poderes criativos que tinham gerado a Ode Marítima ou os mais talentosos trechos do Livro do Desassossego. No entanto, Pessoa estava na casa dos quarenta, não era um velho. É a confirmação de que a heteronímia era mesmo o motor da sua arte, e que sem essa energia também ela definhou?
É possível. Sem dúvida que os heterónimos estimulavam muito a sua criatividade. No final da vida, quando há de facto um desmoronamento do projecto heteronímico, Pessoa começa a escrever outros tipos de poesia, como as quadras populares ou os poemas políticos contra Salazar e o Estado Novo, mas também poemas íntimos, como o grande poema inacabado Un Soir à Lima, a primeira vez que lembra na sua poesia os anos que viveu na África do Sul e o relacionamento com a família. Mas é verdade que se só tivéssemos essa poesia final não teríamos razão para celebrar Pessoa como um grande escritor. O que não quer dizer que não tenha continuado a escrever alguns poemas que estão entre os seus melhores, como a última ode de Ricardo Reis, que abre com o verso “Vivem em nós inúmeros”, a única que escreveu no ano da sua morte. E é um poema curioso, porque embora tenha a forma clássica das odes de Reis, o narrador, que fala desses muitos eus que há dentro dele, parece ser claramente o próprio Fernando Pessoa. Apesar deste grande poema e de mais um ou outro que Pessoa escreveu em 1935, percebe-se que, perto do fim, há um cansaço a todos os níveis, e também como escritor. Se tivesse vivido mais vinte anos, teria continuado a escrever, mas não sei se a sua morte nos fez perder muitas obras geniais. Sei que há excepções, mas tendo a acreditar que os escritores morrem na altura certa.

Qual é o seu heterónimo preferido, incluindo o Pessoa ortónimo e Bernardo Soares?
O meu heterónimo favorito é normalmente aquele que estou a traduzir, ou acerca do qual estou a escrever no momento. Fico sempre seduzido pelo heterónimo de que me estou a ocupar. Mesmo Ricardo Reis, que tende a ser, talvez, o menos apreciado pelo público, deixa-me encantado quando o traduzo ou edito. E é assim com todos os outros. Mas diria que, na poesia, Álvaro de Campos é o heterónimo que acho mais fascinante. E é o que está mais perto de Fernando Pessoa. Parece ser muito diferente por fora – é exuberante, viaja imenso, tem amores, enquanto Pessoa é tímido e pouco ousado –, mas penso que representa o lado mais instintivo de Pessoa. Toda essa exuberância existia realmente dentro de Fernando Pessoa e a maneira de a exprimir chamou-se Álvaro de Campos. Na prosa, a sua obra mais genial é, para mim, o Livro do Desassossego, que se calhar até pode ser considerado poesia.

Nesta nossa época um pouco apaixonada por ruínas e fragmentos, tendemos a valorizar a irresolúvel instabilidade editorial do Livro do Desassossego. Mas suponha que Pessoa o tinha publicado em vida, como projectou fazer: consegue imaginar um livro acabado que fosse mais interessante do que esse não-livro que nos deixou?
Se ele o tivesse acabado, ficaria bastante mais curto, porque teria cortado o que achasse menos conseguido. Deixou apontamentos, aliás, a declarar essa intenção. O livro que resultasse desta revisão seria decerto de grande qualidade. Mas talvez fosse, não digo menos bom, mas menos interessante, porque todos os caminhos experimentados mas nem sempre seguidos pelo livro dão-lhe a dimensão de uma coisa infinita. E gosto de lembrar que se o desassossego do título é psicológico, referindo-se à inquietação do narrador, comporta também a ideia de que nada é estável, tudo está sempre em movimento.

Neste momento em que não se perdoam facilmente, mesmo a autores do passado, declarações racistas ou misóginas, inclui várias confirmações textuais de que Pessoa foi ambas as coisas, ainda que também mostre que evoluiu, no final, para posições mais humanistas e democráticas…
…Não há necessidade de defender Pessoa. É um escritor fabuloso e foi um homem da sua época. Não acreditava no chamado racismo científico, muito popular na altura, e não creio que tivesse sentimentos hostis contra os negros, mas percebe-se que era racista por alguns poucos comentários que surgem na sua escrita. Somos todos pessoas complexas, e a vantagem de se escrever uma biografia é que se tem espaço para se poder contextualizar tudo.

Sentiu-se aliviado quando viu a biografia impressa, primeiro em inglês e agora em português? Vai continuar a trabalhar em edições pessoanas?
À primeira parte da pergunta é fácil responder: sinto uma libertação enorme. Durante anos tive esta biografia em cima de mim, como um fardo. E, para ser honesto, durante a maior parte desse tempo tive dúvidas enormes. Sabia que poderia facilmente ultrapassar as tentativas anteriores, porque sabemos hoje bastante mais acerca de Pessoa e da sua obra, mas receava que a minha biografia, apesar de apresentar muitas informações novas, fosse confirmar a ideia de que é mesmo impossível retratar a vida de Fernando Pessoa. Só dois ou três anos antes de entregar o texto é que senti que tudo começava a encaixar-se e que ia conseguir contar a história como a queria contar. Agora vou acompanhar as traduções do livro, e também continuar a preparar edições da obra de Pessoa, mas quero ao mesmo tempo separar-me um pouco. Não digo um divórcio, que não me seria possível abandonar completamente Fernando Pessoa, mas gostava de fazer outras coisas, até porque há muitos pessoanos mais novos que estão a fazer um óptimo trabalho.

Esta não é uma biografia de tese, mas vai assumindo algumas convicções fortes. Uma das mais sedutoras e originais é a de que Pessoa decidiu ser um génio. E que estabelecer essa meta o levou a conseguir atingi-la.
Se lermos o que escreveu em criança, encontramos umas coisas curiosas, mas nada de realmente genial. Há outros escritores nos quais descortinamos esses sinais de grandeza na infância que não vemos em Pessoa. Mas ele sentia que tinha uma missão a cumprir que exigia dele que fosse um génio, e acho que isso fez com que viesse a sê-lo. Do mesmo modo que ao criar um heterónimo chamado Ricardo Reis se impôs a si próprio um papel que o levou a escrever quase 200 odes horacianas, Pessoa foi sempre estabelecendo metas para depois as cumprir. Veja-se o texto que escreveu para a Águia em 1912 a anunciar a vinda de um Super-Camões: também aí estava a lançar a si próprio um desafio, porque não tinha escrito praticamente nada que pudesse justificar a sua convicção de que viria a ser um tal poeta.

Traduziu muitos poetas portugueses contemporâneos e organizou uma antologia, 28 Portuguese Poets, que começa em Fernando Pessoa e fecha com Daniel Jonas. Como vê o impacto de Pessoa na literatura portuguesa? Encontra a sua marca em muitos poetas posteriores?
Pessoa e alguns dos seus amigos trouxeram o modernismo à literatura portuguesa, libertando-a de alguma rigidez e conservadorismo. E há estudos que mostram a influência de Fernando Pessoa em certos autores, mas a verdade é que, entre os grandes poetas posteriores, vejo muita originalidade e pouco epigonismo. Talvez a sua influência seja de outro tipo. Do mesmo modo que Pessoa, ao declarar a sua genialidade, estava a estabelecer uma meta que o empurraria para se tornar um génio, pode ser que a sua obra funcione como um estímulo para os poetas posteriores, como uma prova de que é possível criar grandes coisas. Um desafio, não para que façam como ele, mas para que façam tão bem como ele.

Talvez ligada a essa sua intuição de que Pessoa quis ser um génio, lança uma outra ideia, que exprime desta forma: “Nunca deixou de reconfigurar a sua identidade, e devemos ter o cuidado de não parar demasiado tempo em qualquer um dos seus pontos de descanso. (…) Mais do que um céptico de si próprio, Pessoa foi um implacável transformador de si próprio.” Se afinal sempre houver por aqui uma tese, não será esta?
Acho que sim. Não é por acaso que a biografia em Inglaterra se chamou Pessoa. An Experimental Life. Ele pega na sua própria vida e faz experiências. Tem uma curiosidade infinita, e também uma grande energia para tentar novos pontos de vista, novas teorias. Entre os textos dedicados à sua busca espiritual, o mais fascinante talvez seja o projecto de livro O Caminho da Serpente: a serpente, no seu caminho sinuoso, roça em todas as verdades sem parar em nenhuma. E quando chega a Deus, continua. É como aquele conjunto de poemas que escreveu em 1913 intitulado Além-Deus. Há sempre um outro além. Fernando Pessoa nunca pára.

https://www.publico.pt/2022/05/20/culturaipsilon/entrevista/fernando-pessoa-homem-decidiu-genio-2006572





Richard Zenith e Fernando Pessoa: o que revela a nova biografia do poeta português?

 

A biografia de Fernando Pessoa de Richard Zenith é um trabalho agregador importante que contribuirá para a divulgação da obra do poeta. Mas não inclui nenhuma descoberta verdadeiramente importante.

Quando, em 1950, João Gaspar Simões publicou a sua biografia de Fernando Pessoa ainda não se estampavam t-shirts com caricaturas do poeta, não havia conúbio post-mortem na sua cama, universidades com o seu nome, ainda o seu colo empedernido não aninhava turistas e do famoso baú ainda não se conhecia a imensa coleção de mascaradas.

O “drama em gente” tornou-se um drama em multidão, tanto aquela que Pessoa albergava como a que o aplaudia, pelo que se tornava cada vez mais necessária a presença de um condutor das massas. Gaspar Simões, que não conhecera o Livro do Desassossego nem muitos dos heterónimos ia-se afogando entre o barulho pessoano, e a obra e os estudos de Pessoa clamavam por uma nova voz organizadora, capaz de pôr ordem na arca.

Eis que aparece Richard Zenith; faz orelhas moucas às discussões políticas e ideológicas sobre a obra de Pessoa, não se deixa atemorizar pela confusão de personalidades e atira-se ao arquivo seguindo a máxima cartesiana: se um problema é complexo, divide-se em partes mais simples. Aponta novos heterónimos, distribui os textos por quem de direito, descreve personalidades e põe a vozearia pessoana a cantar afinada, num complexo coro de várias vozes.

É difícil ter noção da importância do trabalho de Zenith com a obra de Pessoa; uma das maneiras mais fáceis de a notar, contudo, passa por esta biografia e pela sensação de que ela não era completamente necessária. É claro que é bom ter a informação biográfica de Pessoa reunida num só volume, e que não deslustra a imagem do nosso maior poeta contemporâneo a existência de uma biografia de dimensões bíblicas. A sensação que se tem ao lê-la, contudo, é a de que não há aqui nenhuma descoberta verdadeiramente importante. É claro que Zenith tem informação nova, que há cartas que mais ninguém tinha lido ainda, pormenores sobre a família que não eram conhecidos; no entanto, o efeito ordenador que uma biografia costuma ter sobre a imagem de um poeta, a demonstração de uma coerência ou de grandes períodos criativos, não aparece propriamente nesta biografia. Isto não se deve a um mau trabalho de Zenith — deve-se ao bom trabalho anterior. O acesso que temos hoje à obra de Fernando Pessoa dá-nos uma imagem da sua personalidade fragmentada e uma consciência do jogo de estilos e personalidades que se devem, em grande parte, ao esforço organizador de Zenith. Se esta biografia não nos desse mais nada, dava-nos a consciência da importância do trabalho editorial que, nos últimos anos, foi feito em torno de Pessoa.

Não há nenhum leitor interessado em Pessoa que não conheça a questão da heteronímia e não saiba até que ponto esta fragmentação foi explorada por Pessoa; não há ninguém que não tenha consciência das contradições do poeta e que não saiba que o poeta também tinha consciência delas. Aquilo que Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos dele.

Aquilo que Zenith tem para nos dizer sobre Pessoa parece pouco, no muito da muita informação que nos traz, porque já no-lo disse da maneira mais generosa possível: ao fazer parecer que, na leitura de Pessoa, éramos nós que o descobríamos, como se a organização dos trabalhos do poeta não influenciasse a leitura que fazemos dele.

Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.

É bom, por um lado, porque se tornará, com certeza, um utilíssimo instrumento de trabalho. Zenith esforçou-se por ser, em certa medida, “generalista”. Isto é, a sua biografia de Pessoa não tem propriamente tese. É uma coleção de factos bem ordenados, sem grandes voos interpretativos, mais concentrada em apresentar todas as minudências sobre a vida de Pessoa do que em mostrar uma caudalosa veia hermenêutica. Quer isto dizer que qualquer pessoano futuro poderá colher daqui informação para as suas teses: Zenith não escolheu informação, preferiu deixar a porta aberta para qualquer um poder servir-se a trazer uma chave de leitura muito sofisticada.

E se isto será útil para estudos vindouros, tem também o reverso da medalha. Parece paradoxal olhar para esta biografia, tão organizada, tão informada, com um ar tão claro de conclusão de um trabalho de anos, como uma obra inacabada. Mas a verdade é que a grande utilidade desta biografia parece ser, precisamente por causa das suas qualidades, aquilo que ela não fez. A partir daqui podem surgir muitos olhares novos sobre Pessoa. Haverá quem retire de minudências biográficas significados complexos e quem corrobore teses com o conhecimento que Zenith tem das leituras de Pessoa ou das suas relações afetivas. Não foi esse o trabalho, contudo, que Zenith fez. A sua biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.

Esta biografia não foi escrita para o público português. Isso nota-se no modo como é exposto o contexto histórico, talvez um pouco básico para o leitor português, familiarizado com a vida política da I República ou do Estado Novo. Há um travo pedagógico no livro que, para lá daqueles assuntos em que parece despropositado para um português, tem as suas virtudes e os seus defeitos.

A biografia de Gaspar Simões, tão criticada e tão louvada ao longo dos anos, tinha pelo menos esta qualidade. Podíamos não concordar com a leitura psicanalítica que o crítico fez de Pessoa, podemos até saber que o próprio Pessoa desconsiderava a interpretação de Gaspar Simões; no entanto, é uma biografia que resiste ao tempo, mesmo que entretanto já se saiba muito mais sobre a vida de Pessoa, já se conheçam textos — alguns até dos mais importantes – que alteram obrigatoriamente a imagem do poeta e que a psicanálise já não esteja na moda. A ideia de ver o desdobramento heteronímico como um sintoma de uma personalidade mal integrada, de perceber o drama de Pessoa ortónimo como o da personalidade com consciência dessa incapacidade de integração, tem obviamente uma força poderosa que dá unidade ao livro.

Não estamos, com isto, a defender a necessidade de uma interpretação “original” só porque sim; é claro que as interpretações só têm utilidade na sua relação com a verdade dos textos. Isto é, de nada nos serviria uma interpretação psicanalítica de Fernando Pessoa se esta não aprofundasse os textos, se não nos desse uma maior consciência da complexidade pessoana mediante a leitura.

O que acontece com esta biografia de Zenith é, então, uma espécie de contenção no papel do intérprete que tira alguma força ao livro. É interessante saber muito sobre a vida de Pessoa? Certamente, mas no capítulo da curiosidade. A força maior de um livro destes passa por aquilo que pode dar à leitura de Pessoa. Ora, Zenith não parece querer dar muito. Contém-se, numa atitude que terá certamente os seus adeptos, que não quer ser parcial e que é também, em certa medida, generosa. Poderá gerar bons livros futuros sobre Fernando Pessoa, escorados em informação organizada por Zenith. Não deixa, contudo, de retirar alguma força ao seu livro.

A haver alguma “tese” na biografia de Richard Zenith ela passará, timidamente, pela noção de que aquilo que faz de Pessoa uma figura literária importante é a sua fragmentação. Não propriamente o desdobramento heteronómico, porque desse podemos encontrar antecedentes literários noutros autores, como (com uma série de diferenças impossíveis de elencar aqui) Kierkegaard; a grande obra de Pessoa passaria pela tentativa de manter sempre a sua obra fragmentada, contraditória, até, numa espécie de corpus no sentido medieval do termo (uma obra em remissão constante para si própria, fazendo uso de conceitos explicados noutros lugares), embora com uma diferença fundamental: a subsidiariedade desta obra não assentaria, no fim, sobre uma tese fundamental ou sobre uma qualquer ideia de verdade. Seria a própria fragmentação, a ideia de um “eu” plural o sustento de todas as vozes.

Nisto Zenith é, realmente, diferente de alguns dos principais autores que se dedicaram à ideia de alteridade em Pessoa, como Jacinto do Prado Coelho ou Pierre Hourcade. Hourcade é especialmente engenhoso porque associa a heteronímia (ou aquilo que ele podia conhecer da heteronímia) à sucessão de movimentos — paulismo, intersecionismo, futurismo — que caracterizam o modernismo português. Isto é, o que estaria em causa para Hourcade, mais do que uma ideia de alteridade, seria uma ideia de movimento, de uma obra em evolução constante, que ilustraria por isso mesmo a ideia de movimento.

A sua biografia, tão pedagógica em certos aspectos, tão voltada para o grande público, parece por outro lado não se lhe destinar precisamente por isto. Todas as grandes biografias têm alguma coisa a dizer. Esta, contudo, parece escusar-se a isso. Dá-nos o suficiente para que possamos dizer muita coisa sobre Pessoa; Zenith, no entanto, não parece ter muito a dizer sobre ele.

Com Zenith, contudo, aquilo que temos é um esforço de manter sempre a alteridade fora de uma corrente agregadora ou de uma ideia interpretativa principal, que unificaria a conceção artística de Pessoa. A ideia, de uma forma redutora, é a de que não há bem ideia, de que é preciso um esforço para resistir à tentação unificadora e que a personalidade e o jogo literário de Pessoa se concentram nessa resistência às prisões do sentido. Também isto, contudo, mostra como a utilidade do trabalho anterior e Zenith prejudica este trabalho biográfico. Se a fragmentação é o grande valor pessoano, a edição das suas obras é, de facto, o grande trabalho: é o único modo de as apresentar simultaneamente, sem precedências de umas sobre outras, de tal modo que se possam contradizer constantemente diante do leitor. Mas se é este, de facto, o grande valor, então a sua biografia também tem pouco interesse num mundo tão artificialmente construído, tão autoconsciente das limitações do eu, num esforço tão claro para se libertar do “empirismo organizador” que qualquer vida constitui.

Sejamos claros: é impossível um trabalho desta dimensão, de um estudioso tão conhecedor e tão arguto, não ter uma importância desmedida. É claro que tem: há uma importância social óbvia na existência de uma biografia de Pessoa deste género, por tudo o que trará para a divulgação da obra de Pessoa e da sua figura, pelo interesse que suscitará, pelos comentários e até pela projeção internacional do poeta. É também importante o trabalho organizador que uma biografia destas comporta, embora, como já o dissemos, Zenith já tivesse feito muito desse trabalho organizador. Mas se encararmos uma biografia como mais do que um apêndice ao biografado, se encararmos o trabalho também ele como “obra”, então esta completíssima biografia poderia dar um pouco mais.

Carlos Maria Bobone, “Richard Zenith e Fernando Pessoa: o que revela a nova biografia do poeta português?” in https://observador.pt/especiais/richard-zenith-e-fernando-pessoa-o-que-revela-a-nova-biografia-do-poeta-portugues/ , 2022-06-12

 


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



CARREIRO, José. “Pessoa. Uma Biografia, por Richard Zenith”. Portugal, Folha de Poesia, 20-05-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/pessoa-uma-biografia-richard-zenith.html


Sem comentários: