François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489) |
A designação «maldito»,
aplicada a artistas, não corresponde a uma censura nem a uma condenação por
parte dos críticos e historiadores. Pelo contrário, mostra que os
reverenciamos, que temos na conta de luminosa a obra que nos deixaram. O
artista maldito é quase uma personagem de tragédia, pelo muito sofrimento e
desconcerto que vida e obra revelam, e pelo valor que nós atribuímos a esses
factos. Foi o movimento romântico a criar o conceito. O romantismo pôs em cena
o poeta maldito para classificar artistas de muito valor e de vida conturbada.
Ao opor-se ao racionalismo clássico, ao valorizar o génio e a loucura, e com
estes a originalidade, o sentimento, a aventura longe das normas sociais, ao
trazer ao palco as lutas interiores do indivíduo com Deus e com o Demónio, o
romantismo também criou a figura do artista maldito.
Não espanta assim que os românticos tenham classificado como maldito François Villon, poeta do século XV, cujo poema «Balada dos enforcados» muito impressionou Herberto Helder – pelo menos duas vezes usou a abertura, no poema «A máquina de emaranhar paisagens» e no livro Servidões. Ladrão, boémio, amante de beber e de andar à pancada, Villon é considerado um precursor do romantismo.
Maria Estela Guedes, “Três autores malditos: Herberto Helder, Luiz Pacheco
e Manuel de Castro” - Palestra
na Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa. «Encontros Literários», 27 de
março de 2014. Disponível em https://www.triplov.com/estela_guedes/2014/malditos/index.htm
Em Servidões, Helder se refere
em alguns momentos a Villon[42], entre os quais destacamos um trecho
de poema em que o poeta deixa um recado aos futuros escritores:
“irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,/
não peço piedade, apenas peço:/ não me esqueceis só a mim, esquecei a geração
inteira,/ inclitamente vergonhosa, que em testamento vos deixou
esta montanha de merda:” (2014b, p. 688-89). Helder
já havia emaranhado Villon em A máquina de emaranhar paisagens:
“Irmãos Humanos que depois de nós vivereis,
não nos guardeis ódio em vossos corações. (François
Villon).” (2014b, p. 217).
O autor da “Balada dos Enforcados”, poema citado em A
máquina de emaranhar paisagens e
retrabalhado em forma de eco em Servidões, é símbolo da indisposição com
seu tempo, algo que podemos encontrar de maneira mais discreta no autor português.
Essa comparação em forma de autorrebaixamento denuncia a alta medida em que
estava Villon para Helder43. Não por
acaso também encontramos o vocábulo “testamento” no poema,
título do último livro do poeta francês, escrito em 1461. Ao final de O testamento,
encontramos “Outra Balada” (2000, p. 301-303),
poema em que ele se despede do mundo e se dirige a quem fica:
Aqui
se fecha o testamento
E se
finda o pobre Villon.
Vinde,
pois, ao sepultamento,
Quando
ouvirdes os carrilhões,
Em
trajes rubro-vermelhões.
Foi
mártir do Amor a servir,
Isso
jurou por seus colhões
Quando
do mundo quis partir.
E
julgo bem que ele não mente,
Pois
foi banido sem razões
Dos
amores, qual cão demente.
Tal
que daqui a Rossillon
Nem
espinhos nem esporões
O
pouparam, diz sem mentir,
De
ferir-se com aguilhões,
Quando
do mundo quis partir.
Assim
é, tão completamente,
Que
ao morrer só tinha rasgões;
E
mais, que morrendo, inclementes,
Picavam-no
meigos ferrões:
Mais
agudos que facões
Em
ponta, o faziam rugir
(O
que provoca exclamações!),
Quando
do mundo quis partir.
Falcão
gentil, príncipe bom,
Sabei
o que fez, antes de ir:
Emborcou,
firme, um morillon,
Quando
do mundo quis partir.
Outra
imagem de nascimento encontramos no poema abaixo; entretanto, neste caso, o sujeito
não se descreve “sôfrego e delicado e furioso”, “num sufoco”, “furiosamente”, diz-nos,
quer tomar “tudo em seu regaço” (2014b, p. 28):
e eu
que não sei através de que verbo arranquei ao fundo da placenta até a ferida
entre as coxas maternas,
e
roubei oxigénio todo à minha volta próxima,
furiosamente,
eu
que procuro o corpo a corpo o nada disso tudo,
não
sei nada,
digo:
olhar a morte incalculável,
toda,
agora
na hora próxima, súbito, atónito,
e
agarrado a tudo (2014b, p. 708)
Em pleno nascimento se vê obrigado a
“olhar a morte incalculável”, dando indícios de que ali se fala também da vida
(“A minha vida é incalculável” (2014b, p.
411), lê-se em Última ciência):
“agarrado a tudo”, o sujeito demonstra ter em si uma força para o trabalho de
parto, de conhecimento do mundo, e para o abraço à vida, “súbito, atónito”. Se
compararmos o poema anteriormente citado, em que o sujeito estremece diante da presença
da morte que o fita, e este em que a força e a fúria prevalecem, notamos que Servidões
está sob o jugo de dois ânimos que oscilam continuadamente.
Prevalece, entretanto, em Servidões,
o permanente retorno à morte como dilatação no tempo,
o que o poeta chamou “morte no gerúndio”: “traças devoram as linhas linha a linha
dos livros,/ o medo devora os dias dia a dia das vidas,/ a idade exasperada é
ir investindo nela:/ a morte no gerúndio” (2014b,
p. 693). Nesse poema, as “traças” e os “medos”
são equiparados em seu poder de devoração: enquanto o primeiro devora as linhas
dos livros, apagando a escrita do mundo, o medo devora os dias de uma vida, relegando
à imobilidade o sujeito que dele se tornou refém. O gerúndio, tempo verbal em
que a ação é dilatada para sinalizar sua duração, é emendado à morte, fazendo-a
não evento único, mas agonia que perdura e se estende por cima da vida, a
cobri-la, como o saco que envolve o poeta e o isola no
fundo dos “armazéns confusos” (2014b, p. 639):
já
não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,
talvez
me reste um tiro na cabeça,
e é
tão cinematográfico e tão sem número o número dos efeitos especiais,
mas
não quero complicar coisas tão simples da terra,
bom
seria entrar no sono como num saco maior que o meu tamanho,
e
que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,
e eu
de dentro o não pudesse desfazer:
um
saco sem qualquer explicação,
que
ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem amarrado
―
não um destino à Rimbaud,
apenas
longe, sem barras de ouro, sem amputação de pernas,
esquecido
de mim mesmo num saco atado cegamente,
num
recanto pela idade fora,
e lá
dentro os dias eram à noite bem no fundo,
um
saco sem qualquer salvação nos armazéns confusos
Rimbaud, figura poética reincidente na
poesia de Helder44, é aqui referenciado nominalmente e pela menção à
Abissínia, região da atual Etiópia, para onde o poeta francês foi quando
abandonou a poesia, passando ao comércio de armas e, suspeita-se, de escravos.
A admiração por sua figura é de tal modo relevante, que, em Photomaton &
vox, Helder diz que ele “principiou a ser
contemporâneo do futuro, melhor designado: ele é nosso irmão de sangue” (2006c,
p. 59). Sua figura é tão singular que fez o
poeta brasileiro Paulo Leminski apelidá-lo “poeta
roqueiro”45,
com seu contumaz humor. Em Estrutura da lírica moderna, Hugo Friedrich
se refere a ele como uma das três linhagens da poesia moderna europeia. Com uma
obra deveras curta, Une saison en Enfer e Les Illuminations,
Rimbaud marcou em definitivo a literatura europeia, com sinais de que foi além
disso. Friedrich (1978, p. 59), de maneira breve, faz um apanhado dessa figura
de todo conturbada:
Uma vida de
trinta e sete anos; uma atividade poética começando na adolescência e
interrompendo-se depois de quatro anos; o resto, um completo silêncio
literário, um irrequieto viajar por toda a parte: do que mais teria gostado
seria de chegar à Ásia, mas teve de se contentar com o Oriente próximo e a
África Central; dedicado a todo o gênero de ocupações em exércitos coloniais,
pedreiras, firmas de exportação e, por fim, no tráfico de armas para os Negus
da Abissínia; além disso, a relatórios para sociedades geográficas sobre
territórios da África até então inexplorados. Naquele breve período de
atividade poética, um ritmo furioso de evolução que, já após dois anos, tinha
feito ir pelos ares não só o próprio início, mas também a tradição literária
que se achava atrás deste e a criar uma linguagem que, ainda hoje, continua sendo
uma linguagem originária da lírica moderna: estes são alguns feitos da pessoa
de Rimbaud.
Ao contrário de Helder, Rimbaud
abandonou a escrita, sob a justificativa de se considerar maduro46,
muito cedo. Em “Adieu”47,
peça que encerra o conjunto Une saison en Enfer, temos essa espécie de
despedida da literatura, texto que ainda abriga a famosa
frase “Il faut être absolument moderne”,
retomada posteriormente por diversos teóricos e poetas, os “filhos de Rimbaud”,
dirá um deles, Al Berto. “Outono já!” (2015, p.
67), exclama o autor das Iluminações; “ao vento
deste outono/ avanço/ para que inferno?” (2014b,
p. 705), se pergunta Helder. De um lado, o jovem escritor que de pronto decide
tudo abandonar, de outro, o escritor velho que em pleno outono não tem ciência
de qual inferno/inverno irá recebê-lo. Esse aspecto é ressaltado por Francesc Parcerisas,
em prólogo às Cartas abissínias:
Assim, a vida literária de Rimbaud se
estende – no máximo –
dos dez aos dezenove anos. Os dezoito anos que restam até
sua morte são de silêncio, e toda sua maturidade parece vir a ser um anticlímax
se comparada com sua ascensão literária inicial. Étiemble escreveu lucidamente
sobre como a vida literária anômala de Rimbaud, sua precocidade, sua ambição,
seu minoratismo e sua aposentadoria deram frutos a vários mitos particulares,
que acabaram por nos dar essa enorme figura de letras
modernas que é hoje o ‘mito Rimbaud’. (tradução
nossa, 1980, p. 9-10)48
Voltando ao poema “já não tenho tempo
para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,”, encontramos
a imagem do sujeito em “um saco sem qualquer salvação nos
armazéns confusos”, um modo de escapar do mundo e do relógio que marca o tempo
a se esgotar. O poeta, em retrospectiva, analisa sua
vida e não lhe afere grandes acontecimentos. Como fez com Villon, Helder se
coloca em posição rebaixada à Rimbaud, que teria ganhado, entre os três itens
citados, a Abissínia. Não podendo fugir para a Abissínia, sem amor e sem
glória, segundo os critérios do autor, resta esperar a morte, posto que mesmo o
suicídio com tiro na cabeça é descartado49. Espera, então, a morte
como um evento nada cinematográfico, sem dores e sem grandes acontecimentos, ao
contrário do que aconteceu a Rimbaud ao ter a perna amputada e o câncer que lhe
limou a vida. Prevalece o desejo de esquecimento como o adentrar em um sono
profundo, sem as agruras da idade (“num recanto pela
idade fora”). Aqui, o desejo de uma morte indolor, que
de todo se assemelhasse ao sono, contrasta sobremodo com a vontade de conhecimento
da morte que encontramos, por exemplo em Última ciência: “Eu entrava na
morte, era o filho da estrela/ bárbara ― erguia-a
do meio dos diamantes.” (2014b, p. 419-20).
A “arte íngreme” do Herberto Helder de então, praticada também no sono, traz
um tratamento diferente do que encontramos em Servidões. Vejamos, a
seguir, um poema que se utiliza dos mesmos elementos, o sono e a morte, mas com
outro tratamento:
A
arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se
em
si mesma. A morte serve-a.
Serve-se
dela. Arte da melancolia e do instinto.
Quando
agarro a cara, a rotação do mundo faz rodas
a
olaria astronómica: uma cara
chamejante,
múltipla, luxuosa.
Deus
olha-a.
E a
arte alta do sono fica pesada:
―
Mel, o mel em brasa, a substância
potente,
elementar, ardente, obscura, doce de uma doçura
fortíssima,
o
mel,
arrebatada.
Uma arte inextricável que,
pela
doçura, enche as bolsas cruas
da
carne, embriaga, queima tudo, mata,
mata.
(2014b, p. 426)
O sono, nesse caso, em nada se
assemelha à fuga que lemos em Servidões. Se em Última ciência sono
e noite são espaços e temporalidades próprias dos momentos de inspiração e de
escrita, o sono tornado saco nos “armazéns
confusos” lembra
muito mais uma interrupção da escrita. Esse tom aparentemente apaziguado com a
proximidade da morte não é de todo unívoco. É esse o
mesmo sujeito que afirma sem pestanejar: “que se devoro o mundo também o mundo
me devora” (2014b, p. 636). Ou mesmo aquele que,
diante da virgem de “corpo tremulamente intacto”, avança com o “corpo de bode coroado/
fedendo a testosterona e sangue”, marcando “a fogo” a jovem donzela, donde jorra
novamente a possibilidade do canto (“os verbos soberbos cantem”), mas agora canto
feito de um “assombro novo”, pois “faz-se-me
tarde para o poema das frutas” (2014b, p. 635). A
imagem do coito e da criação novamente entrelaçadas, mas sob nova energia,
agora emanada pelo “corpo de bode coroado” do poeta. Resta-lhe,
enfim, arrematar: “cômo-te
antes que morra:/ e eu sei quanto depressa morro” (2014b,
p. 635). Em Letra aberta, livro póstumo com poemas do espólio escolhidos
pela viúva Olga Lima, os cornos desse “bode coroado”
retornam como parte da cabeça, onde o poeta guarda “uns poemas que pràqui
tenho” (2016, p. 14): “poemas que tanto pesam no meu desequilíbrio/
entre os dois cornos:/ pela direita vou sair à noite indistinta que me troca os
passos,/ pela esquerda vou entrar no dia múltiplo que me ofusca os olhos”
(2016, p. 14).
A força juvenil de rebentar “os selos”
(2014b, p. 635) convive com o desencanto trazido pela
consciência do fim. Mas lembremos que, segundo Edward Said, essa contradição é própria
do tardio: “Esta é a prerrogativa do estilo tardio: dar voz ao desencanto e ao prazer,
sem ter que resolver a contradição entre um e outro.”
(2009, p. 167). Já que “a morte iminente está próxima e não tem como ser
negada” (SAID, 2009, p. 29), resta a Helder “trabalhar a morte sempre tão
difícil” (2014b, p. 706), torná-la
“morte escrita” (2014b, p. 709).
Para Said, “Viver
essa condição tardia significa viver rumo ao fim, com plena consciência,
com plena memória e com total (e mesmo extraordinária) ciência do presente”
(2009, p. 34). Tendo em vista a consciência encontrada em seus últimos poemas,
é muito provável que este seja também o caso de Herberto Helder: ciente do presente
e de seu percurso poético, o escritor não hesitou em retrabalhar textos antigos
e dar a eles novo contexto, como é o caso, por exemplo, dos textos em prosa que
abrem Servidões. Entretanto, isso não impediu que o poeta nos deixasse a
imagem de uma “memória trémula”, o que também pode
ser entendido como mais um desejo de afastamento
do mundo, em vez da simples autodesignação de memória senil. O poema:
não
quero mais mundo senão a memória trémula,
quando
me perdi,
a
cidade, o rio camoniano, o ar,
era
como se os apanhasse de uma só vez,
um
dia inteiro para ver como acabava em noite,
não
quero senão perder-me nesse enigma:
um
pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro,
e a
minha vida como nota,
rápida,
ríspida,
nas
margens,
mas
tamanhas eram elas que não acabavam nunca,
notas
mais notas,
o
caos,
e eu
ali à espera da morte entre canções roucas,
eu
que, trémulo, não quero, digo, mais mundo,
eu
que me perdi,
não
tinham ainda começado o rio, o poema, o ar, a morte (2014b, p. 681)
Perdido, o sujeito se encontra no
desejo de exílio: do mundo quer apenas o que resta na memória, nisso incluído o
que por ela já foi inventado e reinventado, visto que o erro (a “memória
trémula” erra) é sua adjetivação primordial. Viver
à margem do mundo é uma das atitudes mais comumente atribuídas a Herberto
Helder, ele que, em carta a Gastão Cruz, assume a sua incapacidade em lidar com
perdas, como a de Carlos de Oliveira, e prefere esquivar-se ao mundo:
A morte do Carlos deixou-me uma tal
ferida que eu procuro agora não envolver-me demasiado com o que acontece aos
amigos ou a pessoas que estimo ou prezo. Neurótico como sou, não aguento para
além de um certo ponto. Tudo isso reanima essa grande dor infantil, incurável, que
foi a morte de minha mãe. Não se trata de sentimentalidade –
não sou sentimental –,
mas de uma catástrofe central da minha vida. A minha relação humana com o
Carlos era muito profunda, e a morte dele deixou um grande buraco. A diferença
é que, na infância, aquando da morte de minha mãe, eu não possuía nenhuma
estratégia, nenhuma saída. Agora sei – relativamente
– fugir. (2015c, p. 163)
Mas se, desde sempre, “é tudo só
memória inverossímil” (2014b, p. 664), temos que com
Herberto Helder aceitar que, “porque todos os poemas são trémulos” (2014b,
p. 698), o erro é matéria poética. O “enigma” dentro do qual o
sujeito se quer perdido tem a concisão de um “pequeno poema” ou da “vida como
nota”, imagens emblemáticas de que nos ocuparemos mais
à frente, mas que recuperam também a presença de uma “Bibliografia
dispensável”: “Les origines tragiques de
l’érudition. Une histoire de la note em bas
de page. Anthony Grafton (trad. Antoine
Fabre).” (2014b, p. 698). De todo modo, interessa
aqui, nesse poema, a imagem final: o poeta “à espera
da morte entre canções roucas”. Do corpo enquanto massa oca atravessado pelos
sopros50 –
“― De nome em nome passam por mim os sopros.” (2014b,
p. 423) –,
indistinto, encontramos este próximo à morte e rodeado de
“canções roucas”, mais um indicativo do que
aqui já consideramos um atenuamento da energia poética outrora mais próxima do
sublime. Se “roucas”, essas canções (no plural,
ressalte-se), supostamente sem corpo, não
vibram (“o verbo sibilante” (2014b,
p. 352)) mais como antigamente. O esgarçamento do canal e, por conseguinte, do
sujeito diferem do que mencionamos em Flash, em que ele se encontra
“Completamente vivo.” (2014b, p. 352). Aqui, à
espera da morte, memória e sujeito trêmulos, perdidos.
Noutro poema encontramos as imagens da
mão e da luz/energia em falta. A escrita do velho, a
olhar “o relógio que mede/ minha turva eternidade”, é nele também motivado pelo
registro dos momentos finais, do fim que se aproxima lentamente:
já
não tenho mão com que escreva nem lâmpada,
pois
se me fundiu a alma,
já
nada em mim sabe quanto não sei
da
noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio que mede
minha
turva eternidade
e
o tempo da terra monstruosa,
já
nada tenho com que morrer depressa,
excepto
tanta
hora somada a nada:
acautela
a tua dor que se não torne académica (2013, p. 73)
Corpo e alma em pane, o sujeito se
encontra à deriva, perdido como no poema anteriormente
lido, sem poder ver a “noite atrás da luz”. Ou, como encontramos em outro
poema: “agora se tivesses alma tinhas de salvá-la,
agora/ se tivesses génio tinhas de resgatar o pacto, agora/ que não tiveste
senão quotidiano terás de trazer muita da luz sumida/
pelo mundo fora à tua roupa [...]” (2014b, p. 666).
Sem poder trazer essa luz e com todas as opções
esgotadas, mesmo as de “morrer depressa”, resta-lhe
o conselho final: “acautela a tua dor que se não
torne académica”, que se repete em outro poema mais
ao final do conjunto com o mesmo ímpeto de encerramento (2014b, p. 703). Aqui, podemos
encontrar uma distinção entre o poema e o que dele fazem os acadêmicos e os críticos.
A postura do poeta é de proteger o poema de um suposto desvelamento da dor, como
a suprimir de sua matéria aquilo que pudesse oferecer ao acadêmico e/ou crítico
meios de intelectualizar algo da ordem do sentimento. É concebível pensar que
essa seja uma preocupação justa no último Herberto Helder. Entretanto, tornar
essa exortação parte do poema, principalmente de seu encerramento, muito mais
denuncia sua presença incontestável que o protege desse tipo de aproximação
acadêmica.
Há, em Servidões, outros tipos
de críticas como a que encontramos aos acadêmicos. É o caso,
por exemplo, dos “burrocratas”: “e ali em baixo com terra na boca e mãos atadas
atrás das costas/ alors qu’on peut écouter de la musique avant toute chose/
sob a força devastadora da poesia/ os burrocratas
os burrocratas” (2014b, p. 684). Nessa peculiar cena
em que os “burrocratas” estão enterrados e no plano superior impera “a força devastadora
da poesia”, a presença de Paul Verlaine e de sua “Art Poétique” são evocadas
para ressaltar o “terror da beleza” – da poesia,
da literatura – na “vida administrativa” (2014b,
p. 648): “administra a tua voz,/ mas administra a tua dor primeiro/ (a dor e a
voz administrativas?)” (2014b, p. 678), ecoando Ruy
Belo ao fundo, seu companheiro de geração: “Feliz
aquele que administra sabiamente/ a tristeza e aprende
a reparti-la pelos dias/ Podem passar os meses e
os anos nunca lhe faltará”. E arremata: “Mas, ó poeta, administra a tristeza
sabiamente” (2009, p. 161-62).
De outro lado, o poeta critica as
revistas de poesia, publicações coletivas que podem ou não servir a um
propósito comum. Se pensarmos que o autor não raro buscou se desfiliar de
movimentos agregadores, como o caso do Surrealismo em Portugal, não estranharemos
o poema em que desdenha desse papel mais social do circuito literário.
disseram:
mande um poema para a revista onde colaboram todos
e
eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque
nada
se reparte: ou se devora tudo
ou
não se toca em nada,
morre-se
mil vezes de uma só morte ou
uma
só vez das mortes todas juntas:
só
colaboro na minha morte:
e
elas entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,
que
o demónio o leve, e foram-se,
e
eu fiquei contente de nada e de ninguém,
e
vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e vazio poema de
sentido e de endereço e de razão deveras
só
porque sim, isto é: só porque não agora (2014b, p. 653)
A recusa em colaborar na revista serve
de imagem para este Helder mais intransigente. Sabemos que o poeta colaborou em
diversas publicações ao longo de sua vida literária: fez prefácios51,
textos de exposições52 e participou de revistas literárias53.
Porém, não deixou de ser senso comum sua caracterização como um autor da recusa
em participar do círculo literário. De toda forma, não deixa de ser patente
aqui a atitude de afronta a tudo e a todos, que se intensificou em A morte
sem mestre: “alheio aos mortos e aos vivos,/
ou afrontando-os a todos?” (2014b,
p. 687).
Continuando com a reflexão sobre a proximidade
da morte, encontramos ainda em Servidões o seguinte poema, que nos
oferece uma visão do autor sobre seus capítulos finais e os iniciais, em um
movimento de revisitação de sua poética nada animador:
releio
e não reamo nada,
a
minha vida abrupta é absurda,
a
arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora,
e
fiquei cego dentro da casa cuja, e pelo mundo, e na memória, e na maneira
das
palavras quentes que eu amava,
com
as costuras das gramáticas inventadas tortas mas tão amadas também elas,
nessa
língua das músicas,
e
desfaleço então de tudo e nunca mais ressuscito,
e
só a dor,
só
o pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas,
suas
mínimas corolas desirmãs que mexo
entre
os dedos aos nós, eruditos e ardentes,
e
os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,
e
a sopa e o pão meio comidos que nem esses sequer hei merecido nunca:
e
com estes míseros ofícios
morrerei
do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida
(2014b,
p. 680)
Se em Do mundo eram
os “poemas/ abruptos, sem autoria” (2014b, p. 518),
aqui é a vida do sujeito que é assim designada:
“a minha vida abrupta é absurda”. Não fica claro acima,
mas nos parece que a ação de releitura é direcionada para os próprios poemas do
autor, já que Helder é conhecido pelas reescritas que empreendeu ao longo de
seu poema contínuo, como aqui já apontamos. Em mais uma referência a
Rimbaud, que em muito esclarece a ideia de poesia como energia, luz,
iluminação. Porém, aqui, o autor tem a clara
percepção de que “a arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora”, demonstrando,
mais uma vez, o quanto não tinha na mesma conta de outrora a energia que
permeia estes últimos poemas. As “palavras quentes que eu amava”, ele diz
ainda, “com as costuras gramaticais inventadas todas tortas”, referindo-se
ao encadeamento de metáforas e de conexões inusitadas que tanto serviram para
caracterizar sua poética entre a crítica. Aqui, o sujeito poético fala disso em
tom saudoso, como se esse momento fosse agora
todo leitura e memória (“releio e não reamo nada”). A “língua das músicas” dá
lugar ao “pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas”, contrastando com a
“arte de roseira” e sua “fria/ inclinação das rosas contra os dedos/ iluminava
em baixo/ as palavras” (2014b, p. 438), que
encontramos em A última ciência. Os poemas não
são mais “rosas”, mas “rosetas bravas”, nos fazendo pensar no tom desafiador contra
tudo e todos que encontramos de modo mais intenso no próximo capítulo, dedicado
ao livro A morte sem mestre. Acreditamos que esse “ramilhete
de rosetas bravas” representa de modo claro como o autor enxerga esses poemas
escritos em tom sarcástico, irônico, que muito nos
ajudam a vislumbrar as nuances do Herberto Helder tardio, cujos poemas revelam
uma indisposição com a consciência da baixa energética. Convém
ressaltar ainda que o termo “roseta” serve para designar a parte da espora que pica
o cavalo, mostrando a riqueza polissêmica do léxico herbertiano. Ao final do poema,
encontramos mais uma vez o poeta declarando seu “muito terror” perante
a morte: “e os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,/
e a sopa e o pão meio comidos que nem esses sequer hei merecido nunca:/ e com
estes míseros ofícios/ morrerei do meu muito
terror e da nenhuma salvação da minha vida”. Lembremos que o primeiro
poema deste conjunto apresentava a cena do poeta olhado pela morte –
“agora sou olhado, e estremeço/ do incrível natural de ser olhado assim por
ela” (2014b, p. 702) –,
o que pode colaborar para entender o “muito terror” que
insiste em reaparecer em Servidões.
A noite, elemento comumente associado à
poesia em/por Herberto Helder, aparece em Servidões e não se furta de
resvalar nessa mesma ideia literária. Entretanto, não deixa de ser interessante
a maneira de tratamento desse elemento órfico, que tanto serviu para caracterizar
o primeiro Helder, de “O amor em visita”, ainda em 1958. É António Ramos Rosa
quem primeiro faz essa leitura, no ensaio “Herberto Helder ― poeta órfico”,
publicado em Poesia, liberdade livre,
de 1962: “O espaço órfico é o espaço terrestre
revelado como espaço interior, como o espaço da unidade essencial do espírito que
a si mesmo se encontra no Mundo e pelo Mundo” (p. 151). É neste mesmo ensaio que
o poeta e crítico amigo de Helder aponta “o seu poder visionário, o sentimento transfigurador,
a autenticidade dos seus temas cósmicos, o sentido do originário ou do poema
como realidade originária” (p. 154). Nuno
Júdice, por sua vez, aponta um “êxtase verbal de raiz
surrealista, mas controlado por uma lúcida
autoconsciência do jogo verbal e vocabular” (1997,
p. 90). Em Servidões,
“a noite que no corpo eu tanto tempo trouxe, setembro, o estio,” (2014b,
p. 644), diz o poeta, serve para marcar a capitulação
feita ao fim da vida: “que tudo acaba: canção, talento, alento, papel, esferográfica,”
(2014b, p. 644). Essa noite que há muito
habita o corpo do sujeito é justaposta a “setembro,
o estio”, o primeiro marcando o início do outono e o segundo uma
referência figurada à idade madura ou à velhice.
Essa vida repercutida nos poemas
herbertianos aparece no pensamento da morte para celebrá-la, tal como encontramos
no poema da agave54, planta que floresce uma vez na vida para de
pronto morrer. O belo poema de Helder volta a esse fenômeno da natureza para
transformá-lo em reflexão sobre o “sistema das
maravilhas”:
que
floresce uma só vez na vida, agaué! dez metros, escarpada, branca, brusca,
brava, encarnada,
e
lava a língua às crianças,
e
põe-lhes a fala cantante,
e
nunca esperes que se repita no deserto da vida,
não
esperes,
não
nunca esperes pelo regresso do sistema das maravilhas,
porque
morreu do mundo uma só vez prodigiosa,
e
adormeces e acordas,
e
a espera enche os dias,
e
quebram-se o ar e a água,
porque
rente à cara respirando do chão quente batem fundo como se água e ar se
amarrassem,
abecedária,
desamarrassem,
e
o sal e o ouro moído e a escarlata,
pousam
camada a camada ― e
giram
logo acima da pulsação da terra para que os colham e recolham,
e
o sopro unido vem à volta: estrelas, ondas,
trigos
às faíscas,
aberturas,
e
o teu rosto mortal iluminado e as pequenas artes do triunfo das palavras:
as
criaturas, e a sua morte,
e
os campos de trigo e orvalho e alumiação,
e
os grandes anéis das estações e os grandes animais,
e
a tua morte de alto a baixo e dentro e fora,
a
morte floral, dez metros de sangue compacto e espuma extraordinária,
fria
fria luz como uma guerra de lâminas,
fria
nas rápidas colinas tomadas pelo estio e a primavera,
pelas
estações vertiginosas,
agaué!
quando a luz as toma uma só vez na vida e as levanta até onde
ninguém
respira,
ninguém
brilha,
nunca
ninguém ressuscita, agaué! e amanhã e ontem e agora,
os
campos de trigo e orvalho e alumiação,
e
a sua morte (2014b, p. 646-47)
A “morte floral” da planta e, por
conseguinte, do sujeito são o motivo do poema. Tal qual o ser humano que morre
apenas uma vez, a agave “morreu do mundo uma só
vez prodigiosa”, revelando que, para ele,
essa morte tem algo de belo e de extraordinário em si.
Segundo Rosa Maria Martelo (2016, p. 39),
[...]
Herberto Helder usa várias vezes a palavra “agaué”, termo grego que significa
“notável” ou “admirável” e que poderá ter
origem numa outra palavra que significava
“exultar”. Agaué era, por isso mesmo, o nome
de uma das bacantes, aquela que no transe das cerimónias em honra de Dioniso
mata desgraçadamente o próprio filho sem o reconhecer. Mas, actualizado sob a
forma “agave”, também é o nome de
uma espécie de plantas que se faz notável pela floração altíssima [...].
Cumprida essa floração, morrerá. Herberto Helder fala do agave/agaué fazendo
confluir todos estes sentidos: exaltação, crime, elevação, floração, morte ―
e sugerindo que notável é também a “floração” da linguagem, pois envolve a
mesma violência, tão criadora quanto
mortífera.
Importa-nos aqui essa imagem da alta
floração que, findada, leva à morte o corpo vegetal: a vida floral cumpriu sua
servidão, com a beleza efêmera exposta ao mundo, e pode então dar-se por
encerrada. Podemos pensar que a flor da agave seria o equivalente a
encontrar o “poema perfeito prometido que não nunca” (2014b,
p. 670), não fosse ele, por muito explícito no verso, “não
nunca”: “¿oh será que um poema entre todos pode ser
absoluto?/ :escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na
perfeição de poucas linhas” (2014b, p. 660), eis o
desejo do poeta de encontro da perfeição, mas, lembremos, “morrerei
do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida” (2014b,
p. 680). A vida da agave, segundo o poema herbertiano, é salva pela servidão
cumprida.
Nesse contexto, a música aparece como
uma das possibilidades de salvação dessa vida extenuada, dedicada à servidão da
poesia, à busca do poema perfeito:
¿e
a música, a música, quando, como, em que termos extremos
a
ouvirei eu,
e
ela me salvará da perda da terra, águas que a percorrem,
tão
primeiras para o corpo mergulhado,
magníficas,
desmoronadas,
marítimas,
e
que eu desapareça na luz delas ―
só
música ao mesmo tempo nos instrumentos todos,
curto
poema completo,
com
o autor cá fora salvo no derradeiro instante
numa
poalha luminosa? (2014b, p. 658)
A imagem do poema revela de que modo a
música é comparada a um sopro poético, com a
profundidade desse sentido perceptível na reiteração do termo “música” no primeiro
verso: “e a música, a música,”. A figura do autor está curiosamente dentro e fora
do poema: ele é parte essencial para ouvir essa música, que será capaz
de salvá-lo “da perda da terra”, ou seja, da vida,
e, ao final, ele aparece “cá fora salvo no derradeiro instante”. “curto poema
completo” envolvido numa interrogação, portanto em suspensão, podemos dele
apreender o desejo de “ouvido absoluto para as músicas
sumptuosas do verso livre” (2b014,
p. 671).
Outra imagem de confronto com a
proximidade da morte encontramos em um poema com
eco kavafiano. A referência ao famoso poema de Konstantinos Kavafis, “À espera dos
bárbaros”55,
não deixa de aproveitar o aspecto intervenientemente político que alguns acusam
encontrar nos escritos do poeta alexandrino. Sobre isso, os tradutores, em nota
ao poema, referem os estudos de Marina Risva e José María Álvarez (2005, p. 433-34).
Não deixa de ser curioso, então, que Herberto Helder assim comece seu poema:
“profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,/ improvável poema,”
(2014b, p. 676). Tal surpresa também aparece
expressa nas palavras finais do poema “No
meio da praça”, que integra A sombra do mar (2015),
de Armando Silva Carvalho:
Estou
só no duro chão da praça solitária,
numa
terra de pesca que já nem cheira a pescado.
Chão
seco, sem ondas, sem lugar sequer
para
o meu arrepio de alma social.
E
nela deixo cair este verso:
profano,
prático, público, político, presto, profundo, precário,
dum
improvável, recente, poema
de
Herberto Helder. (2015, p. 36-7)
Esse improvável poema herbertiano
encerra-se com a exclamação: “oh nunca mais quero
viver no mundo!” (2014b, p. 677), um tipo de assertiva que só
poderia vir de um homem já em idade avançada e que, desiludido, não conserva
maiores esperanças para o mundo “prático”.
Leiamos o poema na íntegra:
profano,
prático, público, político, presto, profundo, precário,
improvável
poema,
contudo
nem
eu estava à espera dos bárbaros que viriam devastar a terra,
porque
éramos inocentes,
nós
que só queríamos o silêncio,
e
a voz diria que se fosse preciso traziam Deus,
e
é sim possível que trouxessem qualquer espectáculo com cristos nus e
saltimbancos de feira,
e
paus vermelhos,
paus
amarelos,
paus
virgens com linho e algodão pintado,
paus
compridos com petúnias como borboletas:
e
eu achava inadmissível,
e
tinha a meio da minha própria linguagem a dor sòzinha em que súbito se repara,
e
de que o poema se faz carregado e quente,
e
não explicava nada,
e
lá vinham os bárbaros como no episódio de Alexandria,
mais
uma vez depois de Cavafis,
incendiada
pelos soldados de César e do califa Omar,
por
franceses e ingleses e todos os outros bárbaros,
por
todos os incapazes da medida intrínseca,
a
densa meditação que conduz ao poema puro,
e
nunca, nunca mais a paixão,
e
então o centro mesmo do mundo é o centro de Alexandria,
livros,
música, mão calígrafa movendo-se ainda,
olhos
fechados víamos através das pálpebras a nossa vida ardente e muda e lenta,
e
a carne desde o imo desfazia-se num soluço,
magoada,
humana,
alexandrina,
e
o mundo era pequeno,
mais
pequeno com certeza que um poema de um verso único,
universo:
oh
nunca mais quero viver no mundo!
Essa crítica ao contemporâneo, atravessada
pela referência a Alexandria56, é pouco comum na poética
herbertiana, o que nos motiva a colocá-la entre os aspectos mais próprios de
sua última fase. Helder estabelece a distinção entre os que queriam silêncio –
os poetas, podemos pensar – e
os que eram “incapazes da medida intrínseca, a densa meditação que conduz ao
poema puro”. Ele parece nos levar a uma ideia de afastamento do mundo prático
para que a poesia tenha espaço: “lavorare stanca”57
(2014b, p. 688), diz em outro poema, que dialoga imensamente com esta
discussão:
irmãos
humanos que depois de mim vivereis,
eu
que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei
por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque
nestas idades já não nunca,
nem
leituras embrumadas,
nem
crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem
visitas
extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas,
cruas, sexuais, luminosas,
só
vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é
como trabalhar: stanca,
lavorare
stanca,
queríamos
tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,
e
só tínhamos que perder a alma,
hoje
talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim
esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
livros,
je les ai lus tous, e como de costume a carne é insondável,
estou
mais pobre do que ao comêço,
e
o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia
volta, e já era,
irmãos
futuros do génio de Villon e do meu género baixo,
não
peço piedade, apenas peço:
não
me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente
vergonhosa,
que
em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o
mundo como vontade e representação que afinal é como era,
como
há-de ser: alta,
alta
montanha de merda — trepai
por ela acima até à vertigem,
merda
eminentíssima:
daqui
se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada
qual obrando a sua própria magia:
merda
que há-de medrar melhor na memória do mundo (2014b, p. 688-89)
O colérico recado deixado à
posteridade, ecoando Villon e sua “Balada dos enforcados”, denuncia
a carga irônica presente de modo mais patente na última produção de Helder. O
peso da vida aos oitenta é sintoma de uma velhice mais atormentada que
apaziguada por uma possível sabedoria (“estou mais
pobre do que ao comêço”) – mesmo que ele tenha
lido todos os livros, repetindo a “Brise marine” de
Mallarmé: “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres.” –,
em que sente a ausência das visitas femininas, das “crenças”,
das “políticas das formas” e mesmo dos “poemas no futuro”, poemas esses que
seriam impensáveis – salvo
alguma ingenuidade ou inocência, que ele rejeita: “queríamos
tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,” – num
sujeito mais próximo da mortalha que na juventude.
As despedidas do mundo não deixam de se
mostrar de maneiras aparentemente discordantes na relação com a proximidade da
morte: por um lado, vemos o poeta a “olhar a
morte incalculável”, “[...] súbito, atónito,/ e agarrado a tudo” (2014b,
p. 708), e por outro a troçar do mundo e de quem nele há-de
permanecer: “o mundo como vontade e representação
que afinal é como era,/ como há-de ser:
alta,/ alta montanha de merda”. Notamos,
então, que em Servidões não poderíamos fixar uma atitude unívoca perante
a presença da morte, revelando o modo contraditório dessa relação na última
fase poética de Herberto Helder.
[…]
Ler mais em: Figurações do
tardio no último Herberto Helder, Roberto Menezes. Belo Horizonte, UFMG -
Faculdade de Letras, 2018
___________________
NOTAS
42 François
Villon (1431-?): órfão de pai, o menino é confiado pela mãe a Guillaume de
Villon, cônego de Saint-Benoît-le-Bétourné, em 1438, vindo a assumir o nome do
pai adotivo. De 1443 a 1452, Villon estuda na Faculté des Arts da Université de
Paris, tornando-se bacharel, licenciado e mestre em Artes. Em 1455, mais
precisamente no dia 5 de junho, numa rixa de rua, Villon fere mortalmente o
padre Philippe Sermoise, que morreu dois dias depois. Villon fuge. Em 1456,
consegue o perdão e volta a Paris. No mesmo ano, participa de um roubo de 500
escudos de ouro do Colégio de Navarra. O poeta evade-se mais uma vez, num
exílio de 6 anos. Delatado, Villon teve que se comprometer em devolver parte do
roubo. Mas sua vida boêmia e criminosa o levou a ser condenado à forca, em
1462. Depois de recurso ao Parlamento, Villon teve sua pena comutada em
banimento de Paris, depois do que desaparece completamente, sem deixar
quaisquer rastros. Informações retiradas da cronologia presente no volume: VILLON,
François. Poesia. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP,
2000.
43 Na poesia
portuguesa contemporânea, encontramos em Manuel de Freitas também uma correspondência
poética com François Villon, por exemplo, no poema “Cronofobia”, de SIC
(2002, p. 23):
Sou
contemporâneo de Villon
e
escrevo às vezes a Montaigne,
arguto
mas demasiado absorto
no
renome e na sabedoria instável
dos
seus livros anotados.
Ouvi
ontem, junto de Lady Nevell,
as
últimas composições de Byrd
para
virginal e pareceram-me
– a
primeira pavana, sobretudo –
uma
dádiva excessiva à posteridade.
Escrevo
estas linhas agora
outrora,
olhando de frente
o
crepúsculo e as poucas nuvens
que
toldam, por desfaçatez,
o
céu irremediável de Janeiro.
Corre
entretanto o boato de que
Castela
se apossou de Portugal
e
houve até um poeta obscuro
que
preferiu morrer antes disso,
em
versos de imponderável beleza.
Não
sei. O vinho cola-se-me uma vez mais
aos
lábios, cansados peregrinos do amor,
e um
galgo aproxima-se devagar
da
mão que nunca lerá José Saramago.
44 No livro
póstumo intitulado Poemas canhotos, de 2015, Herberto Helder refere-se
ao poeta francês como “mito
Rimbaud”: “(entra
um jovem sobraçando um maço de poemas cortados em diagonal pelo mito Rimbaud)
(2015, p. 30).
45
Assinalando a tradução de Ledo Ivo para os poemas de Rimbaud, Paulo Leminski
assim inicia seu texto: “Aí vem o primeiro
marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista
Jimi Hendrix, bissexual como Mike Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’,
como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta
francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’
quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma
precocidade poética extraordinária –
obras-primas entre os 15 e os 18 anos. De repente, largou
tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura e, cometa, se mandou
para a Abissínia, na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava,
levou a vida de mercador árabe, traficando armas, varando desertos nunca antes pisados,
vivendo a grande aventura infantil, pré-figurada em seu nome de rei lendário.
Breve durou esse Camelot. Da África, o rei Arthur voltaria à França para
amputar uma perna e morrer, de câncer, num hospital de Marselha, delirando
poesia, cercado por padres e sua irmã, ávidos pela confissão desse blasfemo.”
(2011, p. 311).
46 Sobre
isso, Enrique Vila-Matas, em Bartleby e companhia,
diz: “Um Rimbaud maduro – “O outono já!” –, um
Rimbaud maduro aos dezenove anos despede-se definitivamente da, para ele, falsa
ilusão do cristianismo, das sucessivas etapas pelas quais, até esse momento,
passara sua poesia, de suas tentativas
iluministas,
de sua ambição imensa.” (2004, p. 103).
47 “Outono já!
― mas por que lamentar um sol eterno, se estamos empenhados em descobrir a claridade
divina, ― longe dos que morrem com as estações.
O
outono. Nossa barca arvorada sobre as brumas imóveis se volta para o porto da
miséria, a cidade imensa cujo céu se mancha em labareda e lodo. Ah! os farrapos
já podres, o pão que a chuva empapa, a embriaguez, as mil paixões que me
crucificaram! Não terá mesmo fim essa lâmia rainha de milhões de almas e de
corpos que serão julgados! Estou a ver-me, a pele carcomida pela lama e
a peste, de vermes cheios os cabelos e axilas e um verme ainda maior no coração,
estendido entre desconhecidos sem idade, nem sentimentos... Podia ter morrido
ali... Horrenda evocação! Abomino a miséria.
E
temo o inverno por ser a estação do conforto!
―
Vejo às vezes no céu praias sem fim cobertas de brancas nações em júbilo.
Grande nave dourada, acima de mim, agita pavilhões
multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os
dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas
línguas. Acreditei-me possuído de poderes sobrenaturais. Pois bem! devo enterrar
minha imaginação e minhas lembranças! Bela glória de artista e prosador que lá
se vai!
Eu!
eu que me dizia mago ou anjo, eximido de qualquer moral, sou devolvido ao solo,
com um dever a cumprir e forçado a abraçar a áspera realidade! Aldeão!
Estarei
enganado? seria a caridade a irmã da morte, para mim?
Afinal,
pedirei perdão por ter-me alimentado de mentiras. E continuemos.
Mas
nem uma só mão amiga! e donde arrancar socorro?
____________________
Sim,
a hora nova é pelo menos severíssima.
Porque
posso afirmar ter alcançado a vitória: o ranger de dentes, o silvar do fogo, os
suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças imundas se esvanecem. Meus
últimos pesares se retiram; ― inveja dos mendigos,
malfeitores, amigos da morte, retardados de todas as espécies. Danados, se eu
me vingasse! Sejamos absolutamente modernos. Nada de cânticos: manter o terreno
conquistado. Dura noite! o sangue seco esturrica no meu rosto, atrás de mim só
tenho aquele horrendo arbusto!... O combate espiritual é tão rude quanto a
batalha dos homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus. É a vigília,
contudo. Acolhamos todos os influxos de vigor e de autêntica ternura. E à
aurora, armados de ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas. Falei
de mão amiga! Uma grande vantagem é que posso rir dos velhos amores mentirosos,
e cobrir de vergonha esses casais de mentira ― lá
embaixo eu vi o inferno das mulheres ―; e então me será lícito possuir
a verdade em uma alma e um corpo.” (2015,
p. 67-69).
48 No
original: “Así pues la vida literaria de Rimbaud se prolonga – como
mucho – de los diez
a los diecinueve años. Los dieciocho años que restan hasta su muerte son de
silencio, y toda su madurez parece venir a ser un anticlímax a su temprano
descollar literario. Etiemble ha escrito lúcidamente sobre cómo la anómala vida
literaria de Rimbaud, su precocidad, su ambición, su minoratismo y su retiro,
han dado fruto a diversos mitos particulares, que han acabado por darnos esta
figura enorme de las letras modernas que es hoy
el ‘mito Rimbaud’.” (PARCERISAS, 1980, p. 9-10).
49 Em Letra
aberta, encontramos um poema que retorna ao tema do suicídio, desta vez
comparando a profundidade do rio em Lisboa com a do rio em Paris, que, apesar
de ser mais raso, seria mais propício ao suicídio:
“o rio cego em Lisboa é bem mais fundo/ que o rio cego e largo e rápido em
Paris/ mas é bem mais longa e ilustre e interessante/ a
história suicida do rio cego lá fora/ do que a história do rio aqui/ em Paris
mal uma pessoa se angustia pensa em afogar-se nas modestas águas do rio ali à
mão/ mas em Lisboa com toda aquela massa sumptuosa e lenta e histórica/ as
pessoas pensam que não estão à altura de uma assim tão vasta morte/ as pessoas
então pensam: esta tão subida morte nunca me acolherá/ não a mereço/ e
voltam para a sua pequena vida desesperada/ mas em si mesma burocrática” (2016,
p. 30). Esse poema refere-se, provavelmente, ao suicídio
de Paul Celan, poeta romeno radicado na França depois de sobreviver ao
Holocausto, no rio Sena, em 1970.
50 Refiro-me
aqui, também, ao poema “Sei às vezes que o corpo é uma severa/
massa oca, com dois orifícios/ nos extremos:” (2014, p.
352), de Flash, já
citado no segundo capítulo desta tese.
51 Destacamos
os prefácios intitulados “Relance sobre a poesia de
Edmundo de Bettencourt” (HELDER, Herberto.
Relance sobre a poesia de Edmundo de Bettencourt. In: BETTENCOURT, Edmundo de. Poemas
de Edmundo de Bettencourt. Lisboa: Portugália, 1963. p. XI-XXXII.) e “Nota
inútil” (HELDER, Herberto. Nota inútil. In: FORTE,
António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceira A. M. Pereira, 2003.
p. 9-16.).
52 Referimo-nos
ao texto “Cena vocal com fundo visual de Cruzeiro Seixas”, retirado do catálogo
da exposição de Cruzeiro Seixas e republicado no jornal Diário
de Notícias: HELDER, Herberto. Cena vocal com fundo visual de Cruzeiro
Seixas. Diário de Notícias, Lisboa, 19 jun. 1980. p. 17.
53 Podemos
destacar, por exemplo, as recentes publicações nas revistas Relâmpago e Telhados
de Vidro.
54 Sobre esse
poema, indicamos ainda a reflexão de Patrícia Resende Pereira
presente no texto “‘e o sopro unido vem à volta’:
reflexões sobre o ato da criação em um poema de Servidões, de Herberto
Helder”, do livro
Sáfara safra: OLIVEIRA, Silvana Pessôa de; SOUZA, Isabella Batista de;
PEREIRA, Patrícia Resende (Org.). Sáfara safra: leituras da poesia de
Herberto Helder. Belo Horizonte: Tamanha Poesia, 2015.
55 Eis o
poema de Kavafis completo, em tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos
Pratsinis (KAVAFIS, 2005, p. 221-23):
– Quem
esperamos na ágora congregados?
Os
bárbaros hão-de chegar hoje.
– Porquê
tanta inactividade no Senado?
Porque
estão lá os Senadores e não legislam?
Porque
os bárbaros chegarão hoje.
Que
leis irão fazer já os Senadores?
Os
bárbaros quando vierem legislarão.
– Porque
se levantou tão cedo o nosso imperador,
e
está sentado à maior porta da cidade
no seu
trono, solene, de coroa?
Porque
os bárbaros chegarão hoje.
E o
imperador espera para receber
o
seu chefe. Até preparou
para
lhe dar um pergaminho. Aí
escreveu-lhe
muitos títulos e nomes.
– Porque
os nossos dois cônsules e os pretores
saíram
hoje com as suas togas vermelhas, as bordadas;
porque
levaram pulseiras com tantas ametistas,
e
anéis com esmeraldas esplêndidas, brilhantes;
porque
terão pegado hoje em báculos preciosos
com
pratas e adornos de ouro extraordinariamente cinzelados?
Porque
os bárbaros chegarão hoje;
e
tais coisas deslumbram os bárbaros.
– E
porque não vêm os valiosos oradores como sempre
para
fazerem os seus discursos, dizerem das suas coisas?
Porque
os bárbaros chegarão hoje;
e
eles aborrecem-se com eloquências e orações políticas.
– Porque
terá começado de repente este desassossego
e
confusão. (Como se tornaram sérios os rostos.)
Porque
se esvaziam rapidamente as ruas e as praças,
e
todos regressam às suas casas muito pensativos?
Porque
anoiteceu e os bárbaros não vieram.
E
chegaram alguns das fronteiras,
e disseram
que já não há bárbaros.
E
agora que vai ser de nós sem bárbaros.
Esta
gente era alguma solução.
56 Podemos
referir ainda ao poema “Alexandria”, de Pedro Mexia, que desenvolve uma
reflexão sobre o caráter mítico a ela atrelado pela
escrita kavafiana. Assim começa Mexia o seu poema, que fala de uma “Alexandria
do pensamento”, “unreal city”: “Lisboa não é Alexandria mas/ Alexandria não
passa de uma metrópole/ em versos subida e sublimada, a sua geometria,/ as
incisões do pequeno desespero.” (2016, p. 67).
57 Aqui podemos
sem medo apontar a referência ao título original do primeiro livro de poemas de
Cesare Pavese: Lavorare stanca, traduzido no Brasil por Trabalhar
cansa. Na seção “Cidade no campo”, encontramos
os poemas mais engajados do volume, com a aparição de camponeses e operários
que trabalham duro e se sentem cansados. O poema que carrega o título ali
aparece comparando vida adulta e infância:
“Travessar uma rua fugindo de casa/ só um menino o faria, mas este homem que
passa/ todo o dia nas ruas não é mais menino/ e não foge de casa”.
Contemplativo, o sujeito do poema se põe a
divagar sobre as ações no mundo, como é o caso das conquistas amorosas, citadas
no poema herbertiano e no de Pavese: “[...] Forçoso
é abordar uma mulher/ e falar-lhe e fazê-la
viver com você.” É notória a diferença entre os
dois poemas: uma visão matrimonial e uma visão sexual se chocam inevitavelmente.
CARREIRO, José. “Herberto
Helder, leitor de François Villon, ladrão, boémio, amante de beber e de andar à
pancada”. Portugal, Folha de Poesia, 31-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/herberto-helder-leitor-de-francois.html
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