domingo, 4 de setembro de 2022

Recônditas palavras, Luís Miguel Nava

 




Recônditas palavras

 

Inquietam-me as dedadas

de deus rente à raiz da carne, ao indeciso

equilíbrio da alma

na balança, à cicatriz

azul do céu sobre o destino.

 

O mar pneumático, ao sabor

do qual contra os sentidos se nos fazem

e desfazem as ávidas lembranças,

assalta-me os sentidos, tenebrosas

 

crateras escavadas

no espírito e através

das quais, incandescentes, as imagens

do mundo sobre ele próprio se derramam

 

como uma lava espessa, esses sentidos

que, como aéreos

estigmas, nos imprimem

na carne a cicatriz do céu, a indecisa

maneira de as imagens

 

do mundo se guindarem

mais alto do que a alma ou o alento

de quem dentro de nós

aviva a sua chama. O que nos sai

do coração vem a ferver.

 

A carne, ao rés

da qual o céu se encurva, báscula

que deus deixou nos arredores

dum qualquer lugarejo

 

a encher-se de ferrugem, cicatriz

pesada, combustível, com raiz

nas mais profundas trevas, a carne âncora

submersa no destino, ergue-se a pique

 

de novo onde as lembranças

se fazem e desfazem

com todo o azul do céu

lá dentro a procurar rompê-la.

 

Sentados no convés, como se fosse

já noite e nos soubesse

o pão ao ranço da memória, contemplamos

os rudes marinheiros.

 

Depois que pela encosta procurámos

em vão uma escada de que o último

degrau fosse já dentro da memória,

 

suspenso na memória,

desfaz-se-nos dos ossos

a carne, como seu quê de lírico e festivo,

em áreas portuárias onde o mar

nos sai do coração para galgar o molhe,

 

e, agora que começam

os anos a pesar

mais para trás que para a frente, acodem-nos

recônditas palavras aos ouvidos:

 

«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,

«Nas tuas mãos começa o precipício»

 

Luís Miguel Nava, Vulcão. Lisboa: Quetzal, 1994

 

Vulcão, Quetzal, 1994

 

Neste poema vê-se claramente a opacidade da linguagem naviana. Seu fecho explicita bem a vertigem que um corpo pode causar ao entrar em contato com outro. Há a sugestão de que o sujeito poético sabe que será (des)governado, como se caísse em um precipício. Nava cria outra imagem fantástica e extremamente plástica: o mar a sair de um coração. A função do mar, ou das águas, como ensinou Bachelard (1989), sexualiza a diegese do poema. O poema é por demais complexo e extenso para uma análise depurada no espaço deste artigo, no entanto, pode-se notar já nas primeiras leituras, a coesão desses versos com o que se pretende propor: o corpo que se escreve e se expande para a construção de um imaginário específico entre memória, sexo, amor; “estigmas, nos imprimem/ na carne a cicatriz do céu”.

 

Danilo Bueno “O corpo-escrito de Luís Miguel Nava”, in Vivência n.º 36, 2011

 



 

Em “Recônditas Palavras” o poeta traça finalmente esse sentimento existencial ambivalente e ambíguo: “Inquietam-me as dedadas/ de deus rente à raiz da carne, ao indeciso/ equilíbrio da alma/ na balança, à cicatriz/ azul do céu sobre o destino.” (Nava: 227). O lado mais frívolo e também emotivo é evidenciado através dos órgãos internos – “de quem dentro de nós/ aviva a sua chama. O que nos sai/ do coração vem a ferver" – associando-se à imagem vulcânica representada no poema – “crateras escavadas/ no espírito e através/ das quais, incandescentes, as imagens/ do mundo sobre ele próprio se derramam.” (Nava: 227) – mas também ao destino comprometido pelos restos ou despojos da carne, que já se precipita em face do abismo: “A carne, ao rés/ da qual o céu se encurva, báscula/ que deus deixou nos arredores/ dum qualquer///a encher-se de ferrugem, cicatriz/ pesada, combustível, com raiz/ nas mais profundas trevas, a carne âncora/ submersa no destino, ergue-se a pique”.

O poeta encontra finalmente a sua causa existencial e fica em face do dilema causado pelas memórias, desfazendo-se essas lembranças com o tempo, o inevitável tempo que condiciona o próprio destino, na versão do poeta: “desfaz-se-nos dos ossos/ a carne, com o seu quê de lírico e festivo/ em áreas portuárias onde o mar/ nos sai do coração para galgar o molhe.” (idem).

A sexualidade em Nava, ou se quisermos, o reflexo da sua homossexualidade brevemente comentada na sua poesia, trazendo nessa a confissão do amor naviano, é vastamente complexa e particular, através de um modo quase desconhecido, onde há um destinatário anónimo, que não se tem a certeza de quem é, porque não é dado a referência ao mesmo, pode-se ver ao longo de toda a obra poética um típico poético fluido e inconstante. Trata-se de um só destinatário ou de múltiplos destinatários? uma imagem masculina singular ou pluralizada? Quem era de facto este “rapaz”, tantas vezes mencionado, mas nunca evocado o seu nome? As indagações sugerem várias interpretações a saber se de facto tal “rapaz”, ou seja o “tu” é um destinatário de carne e osso ou, para além disso uma aparição poética, e quiçá somente esta última, que trouxesse ao “eu” o desejo contínuo em recordá-lo, enaltecê-lo numa espécie de amor platónico. Resta saber também, se é sempre o “rapaz”, enquanto o amado “tu”, o único destinatário da poesia de Nava, e no poema “Nos teus ouvidos”, o primeiro poema de toda a obra poética, é notório a invocação à mãe: “ que vai além desse, é a mãe, ou numa outra perspetiva dois destinatários que confluem para o mesmo poema e campo de análise, a mãe do poeta e o amado anónimo: “Nos teus ouvidos isto explode/ (…) na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos/ pensamentos nenhuns” (Nava: 37). A quem se dirige no fundo, Nava?

Na sequência da análise feita à poesia naviana há a considerar um teor poético notoriamente erótico, mas todavia fortemente existencial, qualquer poema de Nava que expressa o lado humano, é vinculado a tudo o que não é humano, quer no aspeto concreto ou abstrato, a tudo o que é matéria, cosmos, órgãos: a “pedra”, o “céu”, o “mar”, o “Sol”, as “rochas” – que faz parte a matéria, o abstrato nas ideias ou palavras: “as palavras que sufocam”. Não obstante, é uma poesia implícita, que procura atingir a profundidade interna, o interior existencial, com o objetivo de elevar este a qualquer aspeto categórico ou explícito.

 

Susana Bravo, A Fala do Corpo em Luiza Neto Jorge e Luís Miguel Nava. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2012

 



 

Nava introduz um universo de desordem, onde deus surge como elemento de desvio; o universo é desentranhado, escatológico, de modo que as imagens remetem imediatamente a um dos cantos de Contos de Moldoror, do Conde de Lautreamont, mais precisamente à cena em que um rapaz é esfolado e penetrado por Deus em um prostíbulo (Canto 3, Estrofe 4).

Em “Recônditas palavras”, temos a metáfora da “carne báscula”, isto é, a carne que à semelhança de uma ponte levadiça, tem um céu que se encurva e a recobre. Lembrando-nos que um dos livros de Nava teve por título O Céu sob as entranhas (1989), somos levados a pensar um ato de penetração dessa carne que se põe em riste, tal qual a ponte que se levanta, e é recoberta pelo céu que se encurva.

Na continuação da estrofe, a carne que penetra o céu, se encurva no entorno dela e se enche de ferrugem. De todos os excretas, sólidos e líquidos, do corpo humano, aquele que mais se assemelha à ferrugem são as fezes. Disso, decorre a sugestão de uma cena de sexo em que há penetração anal, como efeitos escatológicos, isto é, um corpo que sai das entranhas do próprio sujeito. No entreato, a carne se ergue ao pique, numa penetração “com raiz/ nas mais profunda trevas”.

 

Sinei Ferreira Sales, Desentranhando desejos e identidades: Uma leitura queer de Luís Miguel Nava. Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2015. Disponível também em https://www.academia.edu/48897242/Desentranhando_desejos_e_identidades_uma_leitura_queer_de_Lu%C3%ADs_Miguel_Nava

 


Luís Miguel Nava com o namorado, Paulo Silveira, em Zagora, Marrocos, 1987

 


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CARREIRO, José. “Recônditas palavras, Luís Miguel Nava”. Portugal, Folha de Poesia, 04-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/reconditas-palavras-luis-miguel-nava.html



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