domingo, 5 de janeiro de 2025

Estou à janela, Abel Neves

 

José M. A. Carreiro. Quatro Fábricas da Luz, 24-08-2021

ESTOU À JANELA


Estou à janela e não passa ninguém

e é melhor que não passe ninguém

sei não sei porquê que ao longe a macieira é universo 

uma vida simples acendida com poucas palavras   

é o que vai é o que levo

a esperança do toque de finados   

a arder e a beleza as flores que hão-de vir

com os seus pigmentos derramados na minha fronte

um ponto de astro

irei aqui e no éter

e duas ou três linhas hão-de chegar

dois ou três adágios bonitinhos 

escritos a dedo com o pincel

com pigmento de musgo e de alga na terrina

e que ninguém ouvirá porque 

a morada será silêncio

é quase isso por enquanto

a vida respira ainda


Abel Neves (1956)

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