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domingo, 2 de agosto de 2020

Emanuel Jorge Botelho: Dizeres de Atalaia



Emanuel Jorge Botelho: a asa batida sobre o medo

Em dois volumes, a obra poética completa de Emanuel Jorge Botelho.

Dizeres de Atalaia I

 

Emanuel Jorge Botelho (Ponta Delgada, 1950) é um poeta e uma personalidade singular. Talvez como todos os grandes poetas. Mas este mais. Pelo seu viver apartado das luzes da ribalta, pelo seu viver na ilha (S. Miguel), mas nesta se instala o mundo inteiro. Foi professor, fez parte do Grupo de Intervenção cultural Açoriano, fundou e dirigiu a revista Aresta e coordenou o suplemento cultural do jornal Correio dos Açores.

Publicou muito, e muito dispersamente desde sempre. Sempre bem acompanhado em edições ou editores menores (leia-se maiores): Frenesim, Black Sun’s, & Etc, Sistema Solar, Averno... muitas edições de autor. Esta última lançou em dois volumes a obra poética completa (cf. artigo neste jornal de Luís Miguel Queirós A poesia tornou-se um território de pequenas editoras, de 8/5/2020).

Como objecto, apetece manusear, e como conteúdo revela a dimensão maior de um autor. Em 2017, as crónicas já haviam sido reunidas em Letras Lavadas. Muitos textos dispersos surgiram em revistas (Telhados de Vidro, Cão Celeste), integraram antologias (Língua Morta, Companhia das Ilhas), surgiram em folhas de autor assinadas apenas por si ou com outro(s), sob vários pretextos. Pretextos que são, aliás, trampolins para o arvorar de um mundo de palavras. Palavras que se podem filiar na origem, tantas vezes explicitada, ou se desprendem e ganham fôlego, asas (palavra que o poeta reitera).

Manuel de Freitas, autor do posfácio, pega numa epígrafe de Luiza Neto Jorge que aquele usa para encetar a sua série Urbano (um dos maiores pintores açorianos) — ‘“Não podendo falar para toda a terra/ direi um segredo a um só ouvido’”. Freitas aproxima do poeta autores que se revelaram pelos anos 80. De Al Berto a Carlos Poças Falcão, Fátima Maldonado, Adília Lopes ou Rui Baião, entre outros, portadores de um modo nocturno, exausto e desolado de ser e de ver. Chama-lhe a “geração invisível”. Mas Emanuel Jorge Botelho é também um grande leitor — o que densifica a sua poesia e estende as redes. Herberto Helder, Ramos Rosa são presenças manifestas, Antero obviamente. Botelho firma uma poética de nomes próprios. Nomes que dão nome a um poema, ou poema dedicado a um poeta, ou personalidade, vivos ou mortos. Listando esses nomes que são sempre resultado de uma emoção tornada escrita, temos a constelação de influências e cumplicidades do autor. Quem ler, percebe o em-comum desse universo. Pavese, talvez o mais assíduo, Michaux, Genet, Artaud, mas também Jim Morrison. Vários autores portugueses convocados: Vítor Sousa Tavares, Santos Barros, António Barahona, Manuel de Freitas, Inês Dias, Rui Nunes, Fernando Guerreiro, Luís Manuel Gaspar, Urbano. Em comum, talvez, uma não cedência obstinada.

Dois exemplos, entre muitos possíveis, que podem ser considerados emblema da arte poética de Emanuel Jorge Botelho, da sua força motriz e do campo que ela levanta: não será por acaso que “asa” é no autor uma recorrência, por oposição a “chão” igualmente insistente. Essa força motriz ramifica-se rasgando a sombra, amortecendo o ethos disfórico de onde emerge. O primeiro exemplo pertence à sequência Lorena (2002), nome próprio da companheira amada: “eu tinha nos ombros/ um livro encerrado/ até os teus olhos/ me darem palavras// Contigo fui dando/ a tudo o teu nome/ em nome de nós/ por causa de mim.”

Recapitulando de um modo que por certo empobrece: a voz do sujeito poético emerge do peso e da sombra, da apatia, e será propulsionada por um TU, um Outro, mesmo uma cor, uma lembrança, propulsionada por algo de fora que mobilize o campo e semeia as palavras de que assim, incendiadas, o sujeito se apropria e devolve, generosamente, ao mundo tornando sensível à volta. O “tu” como a mulher amada que responde ao homem cheio de sombras: “ela olhou-o (...) e disse a noite só é negra se não for a véspera de outra noite”. E o ser sombrio devém não necessariamente luz, mas aberto. E é esse movimento de abertura e acolhimento de traços sensíveis que nutre afirmativamente esta poesia mesmo exibindo com doçura o recuo da instância do desejo, da vontade e do poder.

Os poemas são em geral curtos. O poeta usa, frequentemente, a duas, quatro ou seis mãos, o haiku. Assina com outros alguns textos. Num dos últimos poemas do segundo volume, quando a pressão do tempo esmaga, o sujeito sorrindo escreve, talvez com um sorriso de bolso, que só um poema longo à Ruy Belo ou Pascoaes seria capaz de domar o medo, o medo de tudo

Estilisticamente uma das suas características é uma espécie de colisão de campos imagéticos distintos. Afastados. Esse choque é um “coice” (metáfora recorrente), um safanão que abana o ser amortalhado (“sudário” é outra recorrência, a impressão que resta da rasura do corpo, a fímbria da cinza). A colisão de campos imagéticos diferentes, infamiliares, mantém palpável a estranheza da aproximação, o atrito, a coligação de campos semânticos à partida dissonantes: “colhi no chão de cada noite/ uma hera de trigo/ e um palmo de sorte”. Outro caso é a série de 2017, Ruídos da luz,conjunto de poemas que relê a criação do mundo, o encontro dos elementos, embora pouco “se saiba ou quase nada.”

Não se pode deixar de notar a intersecção de géneros, a transmigração de ferramentas de um campo para outro. O imaginário da pintura é evidente (“às vezes a cor sai da moldura/ e fala de ti como se fosse lábios”); assim como do teatro (“Avulsos de palco/para um acto de peça”), o mar como quarta parede, o sujeito lírico perante um palco.

No posfácio, às recorrências vocabulares do autor Freitas chama uma cartografia lexical que o tempo foi acumulando e dando espessura, sem, todavia, abafar a textura renovada e versátil do verso. Sem se pretender ser exaustivo, sublinhando-se a tensão: ardósia, bibe (a infância), asa, céu, chão, terra, pedra, cinza, lava, amanhecer, lume, luz, noite, branco, negro, recuo, rasura, tempo, morte, mas até ela está cansada...

Emanuel Jorge Botelho é um dos melhores poetas contemporâneos da língua portuguesa, que constrói uma obra com a conjugação de materiais muito nobres, elementares, esplendorosamente pobres.

Maria Conceição Caleiro, Público, 2020-07-29


Dizeres de Atalaia II Autoria: Emanuel Jorge Botelho (posfácio de Manuel de Freitas) Averno

Dizeres de Atalaia II

Autoria: Emanuel Jorge Botelho
(posfácio de Manuel de Freitas)
Averno
Ler excerto



CARREIRO, José. “Emanuel Jorge Botelho: Dizeres de Atalaia”. Portugal, Folha de Poesia, 02-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/emanuel-jorge-botelho-dizeres-de.html



terça-feira, 30 de junho de 2020

Variações da perda, Nuno Dempster




A ANCIÃ DE LUTO

Percorre devagar a passadeira,
mais velha que este burgo medievo.
Chega de muito além, toda de negro.
O sol que brilha, as belas raparigas,
as cores da gente, o trânsito,
os plátanos do hotel adormecidos
supõem-lhe o pesado encargo
de transportar aos ombros
recordações alegres.
Por isso, os passos lentos,
por isso, o luto, estranhos
ao sol nos vidros e ao bulício urbano.
Parece vir cobrar alguma dívida,
sem pressa e sem olhar
quem espera nos carros que atravesse.
Não a vi afastar-se,
escondeu-se em qualquer esquina.
Os sinos talvez dobrem na distância
e, se eu medir a erosão dos anos
no espelho do meu carro,
dobrarão de certeza e mais de perto,
e a velha voltará o rosto para mim.


DEPREDAÇÃO
1
Rochedo por rochedo, a aprendizagem,
o polvo de entre as pedras,
o mexilhão, o arroz de lapas,
e depois a sardinha, o sol no cais,
as brasas, os pimentos, as peixeiras na rua.

2.
País de pescadores sem trabalho,
não tardará que venha a grande máquina
sorver o mar da costa
e nesse chão caótico apareça
a evidência dos que ajudaram
ao saque das cidades e à devastação
dos campos e do mar.

Nuno Dempster, Variações da Perda
Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2020



CARREIRO, José. “Variações da perda, Nuno Dempster”. Portugal, Folha de Poesia, 30-06-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/06/variacoes-da-perda.html



quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto, Pedro Paulo Câmara


Porque os outros não têm, no ritmo do meu tatear, a aspereza do teu rosto.
Porque os outros não se encaixam em mim quando o frio bate à portada.
Porque os outros não se engasgam enquanto dormem e me colocam de sobreaviso.
Porque os outros não me fazem estremecer ao de leve quando a eles me recosto. 
Porque os outros não soletram palavras sérias em conversa demorada.
Porque os outros não sabem onde mora cada meu sentimento e cada sorriso.

Porque não é o teu cheiro que resiste na almofada quente quando outros se levantam.
Porque não é o teu rugido que se impõe para chamar à noite o meu nome.
Porque não é o teu toque que passeia por entre os meus pelos ouriçados.
Porque não é o teu suor que saboreio quando outros porta fora se ausentam.  
Porque não é o teu segredar que ouço pronunciar cada alcunha, mimo, e cada cognome.
Porque não é o teu andar que sinto ao meu lado quando contemplo sonhos passados. 

Saliências, Pedro Paulo Câmara
Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

***

A ilha, os outros, tu e eu

 

Quatro frações que de tão intimamente comungadas se confundem.

As ilhas em cada um de nós. Ou outros que povoam cada nosso soturno íntimo.

O pedaço oceânico reclama cada fôlego como espólio seu

E as vontades estendem-se voluntariosas até que praias desertas se inundem

De olhos que perscrutam o horizonte colossal, sorumbático, longínquo.

 

Hesitam em mim anelos de vindimar o teu nome.

Oscilam em mim anélitos de ceifar a voz dos outros.

Titubeiam em mim anseios de degolar o grito da ilha.

Porém, se a esperança vive e subsiste,

Todas as poeiras e tempestades, todas as areias e terramotos não vencem.

Moras em mim. Alimentas-te de mim. Rendi-me a ti.

 

Há notas que me emocionam, páginas que me chocam, palavras que me contagiam.

Há toques que me amedrontam.

E existes tu.

 

O teu toque intimida-me.

Os outros cobiçam-me.

A ilha aprova-me.

 

Sem vós não existo.

 

Saliências, Pedro Paulo Câmara

Lisboa, Pastelaria Studios Editora, 2013

 



PEDRO PAULO CÂMARA (1980)
Entrevista

Correio dos Açores: Quando foi que te apercebeste que a poesia entrara na tua vida? Como surgiu a motivação para seres escritor e se alguém te influenciou?
Pedro Câmara: Apercebi-me que a poesia tinha entrado na minha vida bastante cedo, pois quando ainda era pequeno li alguns textos manuscritos que a minha avó possuía, organizados nuns velhos livrinhos rectangulares amarrados com cordel e que ainda hoje preservo. A minha avó materna tinha uma compilação de escritos tradicionais, nomeadamente de poemas de cariz popular, cantigas tradicionais, entre outros, que me influenciaram sobejamente, podendo, assim, dizer, que a pessoa que mais me influenciou neste sentido foi ela.

Que achas da poesia em si?
O que mais aprecio na poesia é o facto de não ser estanque e de ser plurissignificativa. Cada leitor oferece a sua própria interpretação e roupagem às palavras que lê. Aquilo que leio e vejo num poema poderá não ser o mesmo que outro leitor leia ou veja, o que permite que a poesia possa apresentar mil cenários diferentes. Ou seja, para mim poesia é ser o que quero ser, sem que os outros saibam o que sou realmente… Tudo é poesia. Basta estar disponível.

O que pretendes transmitir pela poesia?
Sou um afortunado se conseguir fazer desabrochar uma centelha de emoção naqueles que lerem o que escrevo. Através da poesia desejo despertar emoções, sejam elas de que natureza forem. Não me importo de gerar controvérsia, não me importo que surjam sorrisos ou nasçam lágrimas, ou cresça uma saudade extrema ou um grito de raiva rubra. Quero é que nasçam, pois acredito que a poesia se alimenta disso mesmo, da capacidade de fazer brotar e insurgir sentimentos e emoções em seres alheios ao autor.

Onde vais buscar a inspiração? Escreves todos os dias?
É mais fácil iniciar a resposta pela segunda questão. Não escrevo todos os dias e quando o faço nem sempre escrevo poesia. Todavia, tudo aquilo que me envolve, desde o marulhar do mar ao grito do cagarro, é provocador e inspirador. Assim, não vou buscar inspiração, a inspiração é que vem até mim. Ela pode surgir a qualquer instante, de uma frase proferida por um amigo ou aluno, de um cruzar de rua vendo a azáfama da cidade, de um milhafre pousado numa árvore solitária e de tantas outras formas. É por isso que carrego sempre um pequeno caderno, companheiro de jornada, que me acompanha para todo o lado.

Para ti, quais os maiores nomes da poesia nos Açores?
Felizmente são muitos. Tal como acontece com as nossas planícies que são férteis e luxuriosas, também a literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas na literatura nacional e internacional. Responder a esta questão sem referir os incontornáveis Antero de Quental, reflexo de um pensamento sublime, e Natália Correia, senhora de uma poesia mordaz e desinibida, seria um lapso tremendo. Contudo, creio que o arquipélago viu nascer ao longo dos anos diversos escritores de qualidade invejável, tanto na área da prosa como na poesia.

Qual foi o melhor poema que já escreveste?
O meu melhor poema ainda está por escrever. Porém,  para  não  escapar  totalmente  à  questão, embora seja difícil escolher um único poema, escolho um, não por considerá-lo o melhor, mas talvez pela reação que normalmente provoca quando os leitores se deparam com ele pela primeira vez, intitulado: “A Ilha abre as pernas ao mundo”, presente no Saliências.

Os poemas de que mais gostas são os preferidos dos teus leitores?
Não. Cada leitor encontra em cada poema algo diferente. E cada leitor busca algo diferente, também, em cada poema. O que acontece é que, regra geral, passo a amar mais os meus poemas quando os ouço na voz de alguém que não eu. Creio, até, que os redescubro, e neles encontro coisas que nem eu sabia lá estarem.

Preferes poemas líricos, sociais, românticos sensoriais ou os políticos?
Escrevo vários tipos de poemas, mas ultimamente os que mais me aprazem são os poemas de cariz social e político, pelas várias temáticas que proporcionam, por nos obrigarem a estar despertos para a realidade e por serem, por norma, densos, apimentados e cáusticos. Na verdade, tudo tem o seu tempo e há dias, momentos e gentes que provocam outro tipo de poesia.

Consideras que a nossa sociedade ainda valoriza a poesia?
Ah sim, claro que sim! Como não poderia valorizar se a põe em prática todos os dias? O dia-a-dia frenético de cada ser humano é ritmo e poesia. A poesia não é, exceptuando um grupo de leitores ávidos, a primeira opção de compra dos leitores, sei bem disso, mas sim, acredito que a poesia é valorizada e prezada. No entanto, é necessário promover mais o gosto pela escrita e pela leitura, bem como divulgar (ainda mais) os poetas, os que agora começam a afirmar-se e as velhas glórias inspiradoras.

Com que idade escreveste a tua primeira poesia?
Não consigo precisar, mas sei que, enquanto adolescente, escrevi e escrevi muito. Tenho consciência que, inicialmente, preocupei-me mais em ler e memorizar alguns poemas.

Qual o livro mais marcante que já leste até hoje?
As velas ardem até ao fim, de Sandór Marai, é verdadeiramente sublime e penetrante. Intimidador, até.

Qual é a sensação quando te deparas com alguém a ler um livro escrito por ti?
Fico imensamente feliz e estranhamente embaraçado. Já vi várias pessoas conhecidas com o meu livro, alunos e desconhecidos, alguns até estrangeiros que procuram produto açoriano. Consigo lembrar-me de uma situação, num consultório médico, onde na sala de espera, enquanto aguardávamos pela consulta, vi um senhor que estava a ler o meu romance “Cinzas de Sabrina”. Apesar de não conhecer o dito indivíduo, senti uma enorme alegria ao ver que o meu livro, neste caso o romance histórico publicado em 2014, circula e capta a atenção dos leitores. Tenho, inclusivamente, sido contactado várias vezes pelas redes sociais por pessoas que ouviram falar no meu livro, perguntado onde o podem adquirir e outras, que postam fotografias,  identificando-me,  dando,  também  assim, a conhecer os meus livros a outras pessoas. Todo este reconhecimento, para além de me deixar mui- to agradado, impele-me e motiva-me a continuar a escrever e a partilhar as minhas palavras com os leitores.

O que sentes quando encontras os teus livros à venda numa livraria?
É sempre uma emoção significativa quando encontro um dos meus livros numa livraria, principalmente quando os vejo, como já aconteceu, ao lado de Vitorino Nemésio ou Onésimo.

Quando estás a escrever um livro, partilhas com alguém o seu conteúdo para te aconselhar, por exemplo um amigo ou familiar?
Sim, partilho os meus escritos com alguns amigos chegados e com familiares. Tento auscultar as primeiras impressões e proceder a ajustes que possam aconselhar. Sou um afortunado por estar rodeado de pessoas com sensibilidade.

É difícil conseguir publicar um livro?
Existe um número cada vez maior de editoras, mas isso não é sinónimo de que exista uma maior facilidade para edição de um livro. O mercado, cada vez mais agressivo, faz com que a publicação de uma obra seja, em alguns casos, muito dispendiosa para o autor, o que provoca, muitas vezes, com que os criadores se retraiam e acabem por deixar os seus manuscritos guardados na gaveta. Na verdade, isso só acontece porque existem muitas gráficas disfarçadas de editoras. Logo, a haver disponibilidade financeira, é fácil publicar. Assim, quantidade nem sempre implica qualidade.

Escrever e publicar livros alterou o teu rumo de vida?
Sim, sem dúvida. Hoje sinto-me mais realiza- do porque cumpri este sonho e também porque me abriu novas portas, possibilitou-me novas experiências. Conheci outras realidades, outros autores e outros artistas, muito devido ao facto de já ter publicado. Posso, por exemplo, referir as três edições do Azores Fringe Festival nas quais tive o prazer de participar. Sem publicar, não seria esta pessoa que agora sou. Não enriqueci financeiramente, mas emocionalmente, psicologicamente, sou muito mais rico.

Publicarás algum livro este ano?
Confesso que tenho alguns manuscritos que já estão terminados e penso que talvez no final do ano, ou início do próximo publique algo, mas desta feita no campo da poesia. Existe também produção na aérea da prosa, mas essa demorará mais algum tempo até ver a luz do dia.  

“A literatura nos Açores é abundante e tem nomes que dão ou deram cartas no país e no estrangeiro”, Pedro Paulo Câmara entrevistado por António Pedro Costa, Correio dos Açores, 2015-10-18.
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A ave que passa

Georges Braque, “A Bird Passing Through a Cloud”, 1957

XLIII

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

7-5-1914
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993).
  - 66.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, n.º 4. Lisboa: Jan. 1925.



***

Como passar sem deixar rasto (vestígios da morte)? Como ser levado pelo vento e não ser apenas terra perdida desde sempre já na terra? Como passar? Aquilo que o poeta lança ao vento, aquilo que em atrito lhe cede, é o seu distanciar‑se da terra, o voo, o canto, que é como quem diz, o amor, a alegria, a dor. Na sua casa imaterial, feita da matéria e do imaterial que são as palavras, o poeta confunde‑se com a passagem e o desejo de passar. Passagem de palavra em palavra que gera a constelação de figuras (ideias, sensações), o vento do pensamento, imortal, secreto, sem rasto, fecundo.

Silvina Rodrigues Lopes, "Como quem num dia de Verão abre a porta de casa", Colóquio/Letras, n.º 178, set. 2011, p. 9-21.

***

O poema XLIII apresenta uma gradação de planos, que vai da espécie (a ave, o animal) ao plano mais geral, a "Natureza", de onde recua no verso final, novamente para a espécie (ave) até atingir o particular (e ensina-me a passar). É no centro do movimento, no momento em que atinge o plano geral, que há o clímax do poema. Ali, há o porquê justificador dos quatro outros períodos afirmativos e do imperativo que constituem o poema. Todo o pensamento e razão do poema giram em torno de "a Natureza de ontem não é Natureza", ontem que poderia ser tomado numa acepção ampla, alegórica, de uma ordem anterior à atual (uma outra constituição do mundo físico ou um mundo das idéias, por exemplo), não fossem as afirmações tanto de caráter geral, quanto particular, situarem essa temporalidade num agora. Imediatez que é proposta principalmente pelo passar da ave enquanto atualidade de um vôo, não enquanto espécie de ser vivo, que mesmo depois de extinta fica, tal como o animal terrestre, para o paleontólogo. A "natureza" está associada a um agora onde todo recordar é traí-la, pois é lançar sobre a natureza de agora uma outra natureza.

Mario Queiroz, “Idéias de Natureza em Alberto Caeiro”, Revista Terceira Margem, v.10, n. 14 (2006). Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/15176/0




A AVE QUE PASSA

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto (...)*),
que um mar por descobrir ou um céu por rasgar.
Ao longe, no fim das águas, uma linha convexa que a ave nunca alcança;
Lá, onde nasce o firmamento, despeja-se um mar inteiro para tingir o céu de azul e infinidade.
Mas o mar, que é ardiloso, encobre um leito convulso, uma terra que se excede e desponta à superfície em ressaltos de lava arrefecida - nove montanhas do mar que a ave sobrevoa e a distraem da viagem. É então que pica o voo para poder ver que é verdade.
Por entre as coroas de nuvens, descobre que a terra sossegou, que a lava afinal frutificou. Vista de perto, a neblina, as fumarolas, o cheiro a peixe e a enxofre, o verde dos prados a espraiar-se nos taludes, os cedros e as acácias, as águas sorrateiras das caldeiras; mar, céu e terra esborratados em nove pinceladas, moradas temerárias de um povo que se atreve a um mar sem termo.
Mas a ave insiste e mergulha sempre a pique. Há homens descalços na praia. Então ela pousa e desiste do seu voo. Ainda mais perto, nota-lhes a pele curtida, o linguajar enredado como a malha carregada sobre os barcos, o sotaque inusitado e soberano de um povo que é dono do seu querer.
Os homens, esses, não dão por ela.
Prendem garrafas vazias de cerveja com a ponta dos dedos e o que dizem é à vez. Sem deixar de olhar para o mar, talvez não falem do mar; talvez falem de cidades, não de sete mas de mil em qualquer lugar do mundo; e, em cada uma, haverá sempre outra praia, sempre um outro açoriano que lhes devolve o olhar. Não passes, ave, fica, e ensina-me a ficar!**)

João Pinto Coelho, 12-05-2018
my plan magazine, n.º 14, julho-agosto 2018. Revista de bordo da SATA/Azores Airlines disponível em: https://www.sata.pt/sites/default/files/n14_MY-PLAN_2.pdf

*) verso transcrito do poema «XLIII - Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto», de Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”. 1.ª publ. in Athena, no 4. Lisboa: jan. 1925.
**) adaptado do mesmo poema.



 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 




CARREIRO, José. “A ave que passa”. Portugal, Folha de Poesia, 08-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-ave-que-passa.html



sábado, 14 de setembro de 2019

Com Navalhas e Navios, de Urbano Bettencourt

Urbano Bettencourt

Urbano Bettencourt, poeta e escritor com várias obras publicadas, nascido no Pico, licenciado em Filologia Românica, colaborador de vários jornais, revistas e televisão, vai lançar a 27 de Setembro, em Ponta Delgada, “Com Navalhas e Navios”, mais um rasto, como ele diz nesta entrevista, de uma longa caminhada na escrita.

“Com Navalhas e Navios”, a publicar  no final deste mês, o Urbano Bettencourt cumpre cinco décadas de escrita. A nova obra é o retrato desta longa caminhada?
Comecei a  escrever e a publicar nos jornais, alguns anos antes de chegar ao primeiro livro em 1972, que já não incluiu todos os meus poemas da altura. 
E neste novo livro procedo a mais uma selecção e deixo  apenas aquilo que eu pretendo venha a ficar como o rasto dessa caminhada, embora em processo inacabado: além dos poemas banidos do conjunto, deixei de fora os textos em prosa poética e algumas narrativas curtas que integravam os livros originais; vou reuni-los em livro próprio e então aí estaremos mais próximos do que foi a minha escrita poética ao longo deste tempo.



Porquê este título? Leva-nos aonde?
O título recupera e adapta a expressão colhida no  poema «Pastagem com homens dentro»,  que pode passar  como glosa,  um pouco bruta e cruel,  ao mais célebre poema de Pedro da Silveira; leva-nos por isso à Califórnia, mesmo que  nalguns casos  esta  se manifeste apenas como objecto de desejos anavalhados, mas,  numa perspectiva  mais pacífica  também pode trazer-nos de lá aquelas «navalhinhas» que vinham na bagagem dos  regressados para presentear amigos mais próximos. 
No contexto mais vasto do livro, é possível que as navalhas tenham passado já à categoria de  «armas brancas», indissociáveis, portanto,    da violência que em diversos momentos o livro  acusa poeticamente. 

“De raiz de mágoa” a “Que paisagem apagarás” vai uma grande distância apenas na duração ou também no estilo?
O tempo faz-nos crescer e divergir, a nossa  compreensão do  mundo altera-se,  a relação que mantemos com a linguagem torna-se mais aprofundada, mais exigente e também  permeável ao contacto com a escrita do mundo –  e essas coisas reflectem-se no modo como em cada momento olhamos para a nossa própria escrita e para aquilo que pretendemos com ela. 
Razões mais do que suficientes para excluir poemas iniciais, em relação aos quais me sinto  desconfortável, incomodado mesmo com o seu excessivo voluntarismo, embora isso não me impeça de  reconhecer que há um certo ponto de vista crítico e irónico que vem desde o início e que alguns temas se prolongam no tempo sob discursos diferenciados entre si. 

A poesia hoje está diferente?
A minha está, seguramente. E,  no geral, está diversa, como o  comprova a recente antologia A Garganta Inflamada, que reúne poemas de 33 autores de língua portuguesa editados pela Companhia das Ilhas entre Maio de  2012 e Maio de 2019. 
Aspectos já referidos na resposta anterior, bem como a função atribuída por cada um à poesia e ao seu lugar na sociedade e no espaço público justificam essa diversidade. 

Temos que publicar mais antologias de autores açorianos?
Podemos pensar em termos individuais e em termos colectivos. 
No primeiro caso, importa referir o que tem acontecido quanto à  obra de autores já falecidos e que vão sendo recuperados lentamente. 
 No ano passado saiu na Companhia das Ilhas a «Poesia Reunida», de José Martins Garcia, no âmbito da reedição da obra completa deste autor picoense. 
Há cerca de quatro ou cinco anos, a SREC promoveu  a edição da Obra Completa de Emanuel Félix; já este ano a Imprensa Nacional publicou «Alexandrina, como era», todos os poemas de J. H. Santos Barros, o grande poeta da minha geração que andou demasiado tempo arredado dos leitores. A Companhia das Ilhas em parceria com a Imprensa Nacional está a reeditar a obra de Vitorino Nemésio. E o IAC acaba de apresentar «Fui ao mar buscar laranjas», que reúne a poesia completa de Pedro da Silveira, uma iniciativa de grande alcance  em virtude da qualidade literária do autor.  
Em termos colectivos, e no âmbito dos Colóquios da Lusofonia, a Calendário das Letras editou a antologia 9 ilhas 9 escritoras – organizada por  Helena Chrystello e Rosário Girão, responsáveis também pela Antologia Bilingue de Autores Açorianos e ainda pela Antologia de Autores Açorianos Contemporâneos (dois volumes de poesia e prosa).
Tudo isto já representa um contributo importante para a divulgação e conhecimento do cânone literário açoriano, mas há nomes que precisam de ser de novo trazidos ao contacto do público, como o do poeta J.H. Borges Martins, para referir apenas um nome de momento. 
Em termos de modelo antológico, parecem-me uma boa solução os Cadernos de Santiago,  projecto desenvolvido na Madeira por um grupo de professores e escritores: cada autor antologiado tem espaço para uma sequência poética representativa e coesa, seguida de uma leitura crítica feita por um convidado, o que significa um avanço a vários níveis em relação ao  modelo habitual, com ganhos literários e de leitura. 

“Uma cidade ama-se. Ou odeia-se. E compreendê-la?” (“Algumas das Cidades”, 1995). Um homem do Pico, da Ponta da Ilha, é universal? Compreende a Cidade onde vive ou a nostalgia dos lugares inspira?
Creio que a vida me tornou imune ao complexo do universalismo e ao, ainda mais doentio, complexo do cosmopolitismo. 
Apesar do espaço e do isolamento, a  Ponta da Ilha ficava a um palmo de S. Jorge e a um pouco mais da Terceira, avistável em dias de luz crua. E tirando bem o rumo a leste podia ainda chegar-se a  S. Miguel, donde viera o meu bisavô Rebelo e a que eu acabaria por aportar duas vezes, a segunda tornada definitiva. 
No Calhau passavam barcos e gentes, vozes diferenciadas   como outros tantos sinais da diversidade do mundo, chegavam os jornais da comunidade açoriana na Califórnia prolongando o espaço insular para lá do horizonte e estabelecendo uma espécie de proximidade e de convívio virtual.    E de um lado e de outro do território  havia ainda os universos especiais da Calheta e de Santo Amaro, entre a baleação e a construção naval, pretexto de viagens,  em suma. 
Tudo isso atravessa a minha poesia como sombra dos lugares e se articula com a sombra de outros lugares mais extensos e abertos, mais violentos também, por vezes; é a matéria residual que em parte a alimenta. 
Mas em termos puramente empíricos  sou um homem de  cidades, em cujas dinâmicas (paradoxais, por vezes) me formei,   e sem grandes nostalgias de um campo que já não existe senão como memória desfigurada de nós próprios.

 Como vai ser apresentado e divulgado “Com Navalhas e Navios”? 
Para já, com uma sessão na Livraria Solmar, a 27 de Setembro ao fim da tarde. Além das intervenções protocolares, o meu amigo e poeta Fernando Martinho Guimarães apresentará a sua leitura, interpretação,  do livro,  e os meus amigos José Carlos Jorge e Maria Fátima de Sousa lerão alguns poemas, à semelhança do que já fizeram, em contexto mais alargado,  na apresentação de África frente e verso. O resto será um processo em desenvolvimento. 

“A minha poesia está diferente, seguramente”, Redação do Diário dos Açores, 2019-09-14


RECENSÕES CRÍTICAS


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Fernando Martinho Guimarães



Uma apresentação de Com Navalhas e navios


Fernando Martinho Guimarães



Com Navalhas e Navios é uma colectânea, uma antologia, uma «poesia reunida», que compreende parte da produção poética de Urbano Bettencourt, desde o volume inaugural de 1972, Raiz de Mágoa, até ao livro África e Verso, de 2012. Encontramos, ainda, no seu fecho, uma série de 5 poemas dispersos. E em nota final, diz-nos o autor que deixou de fora um conjunto de poemas, principalmente dos seus dois primeiros livros, o já referido Raiz de Mágoa e o Marinheiro com Residência Fixa, de 1980. Mais nos diz que, na recolha de poemas que constitui este Com Navalhas e Navios não está a maior parte dos seus textos poéticos em prosa e algumas narrativas breves. Promete-se, nesta nota, que em devido tempo virão a lume, reunidos e reorganizados. O prometido é devido e ficamos nós, seus leitores, a aguardar.

O presente livro conta, ainda, com um Prefácio do poeta Carlos Bessa. Carlos Bessa identifica e reconhece os aspectos mais significativos que, na criação poética de Urbano Bettencourt, simultaneamente o aproximam de um imaginário comum a muitos dos seus contemporâneos e o afastam, constituindo-se como voz própria, tanto no ritmo, cadência e tom que imprime aos seus textos poéticos, como no que exprime das e nas circunstâncias a partir das quais a poesia aparece. E que são todas as circunstâncias, cabendo nelas as que, no poema, é o seu fazer – a arte poética.

O título, Com Navalhas e Navios, é a expressão adaptada de um verso do poema «Pastagem com homens dentro» e que, conforme esclarece o poeta em entrevista ao Diário dos Açores (14-09-2019), «pode passar como glosa, um pouco bruta e cruel, ao mais célebre poema de Pedro da Silveira».

Uma transumância da palavra, uma pastorícia do sentido na incessante procura dele. Um «inventário de reciprocidades», como nos diz Javier Fernandez no prólogo à edição espanhola, canarinha, deste Com Navalhas e Navios.

«Os pastores são os depositários plenos dos planos de viagem,
adormecem a dor medem amarrados à estaca entre a erva
e o esterco. (…)
Com navalhas por dentro e navios nos olhos eles assinam
assim o ponto no dorso da ilha e cavalgam as aves as nuvens
com elas fogem para oeste à frente da fome e do frio (…)» (Pág. 30)

Também o poeta quer pôr ao seu cuidado a linguagem e o que nela é sempre o oeste de onde se está, de onde se fala. Na diligência que empresta ao ofício das palavras, na advertência e desvelo com que toma as palavras a sério, encontramos a inquietação do subverso, a ameaça do adverso. Por isso a poesia, o poema, não é, em Urbano Bettencourt, uma forma entre outras de dizer o mundo. É o mundo que se dá em aliterações, de sílabas, de sons e de sentidos, que no próprio acto de ecoarem se desdobram, produzindo o diverso no mesmo que nos persegue – a infância, a ilha e as ilhas, a guerra, a saudade, alguns nomes circunstansiados, Gaspar Frutuoso, Pedro da Silveira, Roberto Mesquita, Ivone Chinita, Santos Barros, a vida, a morte, o que se queira do que a poesia é feita:

«Fazer versos dói? Não! (…)
O que dói é arrancá-los

assim ao próprio sangue como se um filho fora, erguê-los
à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever
a nossa morte. A nossa vida.» (Pág. 79)

Assinala Carlos Bessa, no Prefácio, que a obra poética de Urbano Bettencourt atravessa – e é atravessada –, por geografias e circunstâncias várias em que a luz e a sombra, a alegria e a dor, a exaltação e o desencanto, eros e thanatos, afluem ao dizer poético, para nele se transfigurarem em modo de redenção, de ascese, como ilha que, sem nunca se deslargar do seu fundo, do seu chão, quer continuar elevando-se como corpo insulado e insuflado – por forças vulcânicas, já se sabe –, numa cadência de aliterações e metonímias – nos versos e na vida.

Uma poesia, diz Lélia Nunes, de regressos e reencontros. Neste sentido, o poema é um exercício de celebração, mas também de redenção. Quer se trate de momentos, circunstâncias que o simples facto de existir inevitavelmente comportam, de geografias que o verso quer dizer como se elas apenas o fossem pelo seu dizer, sentimentos que, ao permanecerem, viram afectos, rememorações de tempos sofridos na primeira pessoa, como os da guerra na Guiné, ou mesmo os que não são estritamente nossos, como acontece no poema sobre a Urzelina de 1808, a poesia de Urbano Bettencourt dá a ver o que já não nos olha.

O que há de autobiográfico na escrita? Com o quê ou com quem se identifica o autor? Com os advérbios, dizia Umberto Eco. O desconcerto desta resposta reforça a constatação de que, nos advérbios, quaisquer que eles sejam, há sempre um tempo, o do autor, o das personagens e o do leitor também, a partir do qual se procura encontrar um sentido para tudo o que cabe numa vida, a vivida, a pensada e a dita. O que há de autobiográfico na escrita – na escrita poética –, de Urbano Bettencourt? Tudo. E, acima deste tudo, a sua escrita. Existe mundo para além do que se escreve? É claro que sim, na condição de que se possa dizê-lo. O silêncio e a sombra não são os limites com os quais a palavra poética se confronta, mas é desse confronto que o dizer poético retira o seu impulso, a urgência do dizer, ou, como se pode ler num poema do livro Lugares Sombras e Afectos, cujo incipit é «Crescem os deuses»:

«E quando a memória queimar de mais, chamarei
a mim a sombra das figueiras bravas. Sem figos,

como nos rebenta a boca? Olho as ruínas,
os escombros da cal e acolho um pássaro
de melancolia
vindo da névoa e de um ardido Setembro.» (Pág. 105)

Para o leitor que se auto-satisfaz em o ser, e que, do ponto de vista do autor, é o máximo que, intencionalmente, o move, os poemas, como é o caso presente, não são apenas fulgurações projectadas ao e no mundo, a solicitarem derivas interpretativas, diferâncias di-versificadas, quantas as leituras que se fazem dos leitores que o livro encontra. São, também, realidades que no seu dizer enunciam a própria condição de possibilidade do que enunciam. Não é deste ou daquele lugar que se fala, não é a partir desta ou daquela geo-grafia que o poema se desenvolve, encandeando (ou não) o olhar do leitor. É com os lugares, reais ou imaginários, que os poemas de Urbano Bettencourt instauram um diálogo, um ajuste de contas, como que edificando um mundo da escrita e uma escrita do mundo. Neste sentido, o poema vale por si mesmo, tem uma vida própria.

A paisagem como espaço, como lugar ou lugares com gente dentro. Uma estética da territorialidade, diria Vamberto Freitas. Espaço, ilha, Urzelina, Angra, Porto, Canárias, ilha, Mafra, Guiné, Cabo Verde, Ponta Delgada, ilha, Lisboa, Piedade, Pico, La Gomera, ilha, lugares nos quais e pelos quais a pulsão poética se entretece a fazer e a desfazer memórias, a fiar e a desfiar sentimentos e emoções, a compor e a descompor imaginários que, pela própria natureza das palavras, são sempre outra coisa, eco, espelho, labirinto, da qual o verso limpo, essencial, de uma delicadeza magoada, procura dar conta, enunciar o seu exacto dizer.

Victor Rui Dores, em texto sobre o livro Outros Nomes, Outras Guerra, uma antologia de poemas publicada em 2015, identifica, justamente, na produção poética e ensaística de Urbano Bettencourt, a íntima ligação entre a vida e a escrita, e em que o poeta, [cito], «decifra o enigma dos dias e viaja da ilha para o mundo, funcionando a ilha como uma alegoria ou uma metáfora do mundo».

Assis Brasil, num ensaio sobre outra colectânea de Urbano Bettencourt, Que Paisagem Apagarás, de 2010, traça o itinerário do espaço, uma topologia, um programa de leitura dos espaços poéticos no percurso criativo do poeta. Suportando-se na topo-análise proposta por Gaston Bachelard no livro A Poética do espaço, Assis Brasil destaca, muito justamente, a natureza do espaço poético como a condensação imagética de objectos, lugares, situações, pessoas, que, na matéria das palavras em si mesmas, se tornam outra coisa, realidades com vida própria e, até certo ponto, independentes daquilo de que elas são o dizer. É a natureza das palavras. Ao permitir-nos falar do que não está sob os nossos olhos, do que já não está ou ainda não está, a palavra poética consome-se na actualização do que nunca está presente ao nosso olhar.

É, aliás, da consciência desta impossibilidade, deste desligamento, desta ausência, desta distância, que o olhar poético de Urbano Bettencourt se institui e constitui como símile da condição humana. O poema é, aqui, um exercício de restituição que, incessantemente, se faz e refaz a partir da consciência daquela impossibilidade. Veja-se, por exemplo, o poema inserto no livro Naufrágios Inscrições, de 1987, cujo incipit pergunta como afrontar a erosão do gesto:

«Como afrontar a erosão do gesto? Algumas
das palavras flutuam depois de mortas mas o verbo

as dissipa, lhes disseca a emoção de breves corpos sobre
a margem. Entretanto simularás aqui a construção da frase
língua a língua enunciada, o rumor do verbo no ventre
das baías.»      (Pág. 63)

Por isso, a ironia e o humor ocupam um lugar e função importantes na poesia de Urbano Bettencourt. É que elas lembram, permanentemente, ao leitor que o verso, no regresso sem fim a si mesmo, nunca se reencontrará no lugar de onde partiu. Só por facilidade é que se diz que numa ilha, independentemente do seu recorte, acaba-se sempre por regressar ao lugar de partida.

O reverso, como a sombra, não é o negativo que se quer anular, mas sim realidade que o poema integra, fazendo dela matéria do seu dizer e desdizer. Pela ironia e pelo humor, o «pássaro da melancolia» não nos permite nunca pausarmos em definitivo em contentamentos celebratórios do que na vida acontece – a estritamente nossa ou a que fazemos com os outros. A guerra, os desencantos e as perdas, que na poesia de Urbano Bettencourt são presenças indeléveis, não autorizam lirismos versificados ou rimas encantatórias, metrificadas como deve ser, auto-satisfeitas na exibição da técnica, na ostentação da competência linguística ou na eufórica amostração do que, na literatura e na cultura, é enleio do que é «nosso». É, vejam mal, «apenas nosso». A ironia ou é disfórica ou não é. E Ernesto Gregório, que apesar de não estar, explicitamente, em Com Navalhas e Navios, sempre aparece no verso que desencaminha do sentido aparente ou na subversiva mestria com que o poeta sabe «fechar» um poema.

É avisado o parágrafo em que Carlos Alberto Machado, em texto de apresentação de Que Paisagem Apagarás, nos alerta para o facto de que, no mundo das ilhas de Urbano Bettencourt, os vulcões, magmas, nuvens, neblinas, baleias e baleeiros não são adornos, ornamentos ou enfeites em que o verso funcionaria ao modo de legenda para bilhete-postal, ou segundo a moda dos facebooks, de que o paraíso é aqui e viver é belo porque é o contrário de estar morto.

Uma antologia é um exercício de recolha e de escolha. Junta-se e ordena-se um conjunto de coisas – tanto as que, na natureza, constituem o mundo, como as que, na cultura, constituem os projectos humanos, colectivos e individuais.Com Navalhas e Navios é uma antologia de poemas, melhor, de livros de poemas, dos quais o autor recolheu alguns que, levando à letra a letra da palavra crestomatia, procura organizar e comunicar o que há de exemplar e de significativo num saber ou num saber fazer.

Com esta colectânea, fica acessível ao leitor um percurso poético de 50 anos em que, ao virar da página, se dá a ver a poesia como um [cito]

«Regresso dos nomes e lugares
destes versos. Não direi, porém,

a exacta dimensão em que me tenha perdido
ou encontrado.
Pouso no peitoril a túnica
das palavras, o secreto sal dos seus caminhos,
e escuto
a lenta respiração
do mundo
.»   (Pág 106)


Texto da apresentação pública do livro na Livraria Solmar, Ponta Delgada, setembro de 2019.




   


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Leonardo Sousa


A propósito de Navalhas e Navios. Considerações sobre a poética de Urbano Bettencourt

Leonardo Sousa


Conta-se que, ao deparar-se com um exemplar de Outros Nomes Outras Guerras, deitada ao prelo pela Companhia das Ilhas em 2013, alguém confundiu a antologia de poemas de Urbano Bettencourt com um passaporte. Tratava-se, pois, de um objecto de tal forma discreto, de tal forma despojado de aparato, uma selecção de poemas que reduzira a pouco mais de quarenta páginas uma obra que percorre meio século, que a ninguém se poderia atribuir culpa pelo equívoco. Seria mesmo um equívoco? Face à transformação de um motivo antológico num objecto de bolso, pondera-se se aquele que se enganou não terá, na verdade, sido certeiro na sua sentença.

Seis anos depois, com carimbo ainda da mesma editora sediada na ilha do Pico, da qual o poeta é também oriundo, será mais difícil fazer a mesma analogia. Com Navalhas e Navios acrescenta poemas a quase todos os livros antologiados e introduz novas sequências que haviam sido excluídas de Outros Nomes Outras Guerras. Longe, contudo, de meramente engordar o volume, esta mais recente colectânea confirma a harmonia, a coerência, a consistência, do trabalho poético de Urbano Bettencourt, quando muito alargando a diversidade formal das suas manifestações. Por outro lado, se sobrevivem apenas dois poemas de Raiz de Mágoa (1972), assinalando o mesmo apuro criterioso, indicando por si só estarmos perante uma reflexão crítica em torno de uma produção certamente mais vasta, é também igualmente verdade que as linhas temáticas e formais desta poética podem ser identificadas já nas primeiras composições.

Em “Quadras da Ilha”, a “mágoa de estar vivo/ de estar vivo junto ao mar/ com meus olhos de partir/ em meu corpo de ficar” constitui desde logo uma representação da vivência insular, ritmada ao gosto popular, isto é, inserindo-se formalmente no âmbito de uma experiência comum a um colectivo; do ponto de vista temático, na tradição literária açoriana, a “dor de ser cais” traduz o conflito colectivo da viagem, da partida de um lugar materno cercado por fronteiras marítimas, em tempos de impossível transposição, e que, dizem os mitos, nos insulares resulta numa experiência existencial persistentemente melancólica aonde quer que se fixem, situada entre o desejo de novos caminhos e a latente consciência de que “os barcos desejados/não regressam nunca mais”.

Os poemas de Urbano Bettencourt viriam sempre a reencontrar-se com esse diálogo entre um sujeito e os tempos e os espaços que atravessa. Ele, porém, demarca-se, coloca-se na posição de quem constantemente revê as circunstâncias da sua acção e afirma, com certa distância, a sua voz individual.  Isto é visível em versos como, no poema seguinte, “Mafra é Mafra/ e eu sou livre”; ou: “não pretendo lançar no futuro/a minha história que os outros construíram”. A liberdade, aqui, circunscreve-se aos limites – geográficos, históricos, culturais – a que ninguém pode escapar, por melhor que se iluda. A consciência individual dessa liberdade chega-lhe, afinal, carregada de memórias que pertencem também a outros – e só detrás desse pano, nos bastidores, o indivíduo se reconhece, “por detrás da máscara/ (…)/despido”.

Tal não significa que o sujeito não procure um olhar autónomo (lembra-nos: “nem porei a cabeça no alvo que procuras”) –  a dicotomia entre si e o colectivo e, daí, a representação vívida, por vezes crua, da guerra colonial, a “persistência da memória” que, por via do acto poético, se transfigura, nisto abarcando a experiência dos lugares – que se estendem das ilhas açorianas, às ilhas de Cabo Verde, à Guiné, a Lisboa – e a experiência dos tempos históricos – desde o Estado Novo, atravessando a revolução dos cravos e desaguando já nos nossos dias de estabilidade (?) democrática –, são motivos que sempre habitam as estruturas da obra aqui em visita. Fortificam-se e diversificam-se os seus meios, a sua forma de canto, mas manifesta-se o que sempre se pode entender como a mesma matéria poética. Trata-se da revisitação, da melancolia retrospectiva de quem se ressente do peso das incontáveis folhas rasgadas do calendário, do efeito da passagem do tempo que “sobre os corpos actua e se transmuta, neles depondo/os resíduos” e dos quais sobra meramente “a intocável poeira das palavras”, ela própria agente de transposição da memória que, no último poema do livro, nos surge como uma “arte de montagem”. Uma fotografia torna-se o mecanismo que serve “a pequena glória do técnico”: “a de inventar-lhes uma história/ anulando a distância que vai de um natal dele/ sobre o Sado, em 70,/ à ilha dela e a um outro estúdio/ que o tempo baniu do mapa da cidade”.

Nisto imiscui-se um tom elegíaco, mas não necessariamente – ou explicitamente – trágico. Mesmo quando se o pode intuir, sobressai-lhe frequentemente o pendor irónico, ainda quando assuma contornos dolorosos. Em “Baía do Canto” pode ler-se: “dizia/ meu avô que das figueiras colhesse/ o fruto, nunca a sombra. Morreu dependurado numa”. Perpassa um tom desencantado por uma vasta parte desta poética, que se dirige ao espectro das promessas e dos sonhos por cumprir (“Castos até no incesto alguns de nós perderam/a fé a esperança em vinhas prometidas”), que invoca âmbitos sociais e políticos (“os estivais calores de 75”, numa elegia dirigida aos “turistas que pastam ao sol poente”), ou que se resigna a este que talvez seja, ainda assim, “o melhor dos mundos” – mais não seja porque é o único.

Este “Agostos”, que conduz o leitor de um Agosto longínquo, de uma paisagem vívida de guerra, até um Agosto presente, onde uma tranquilidade exterior – que o discurso poético, com a sua serena gravidade, reflecte eximiamente – “vibra nos telhados” e “as guerras trazem outros nomes,/outros donos”, é representativo do esplendor desta voz, que intersecta memórias, cruza tempos e espaços díspares, fazendo-as confluir em construções líricas onde não deixam de se envolver o gosto pelo comentário alusivo e pela assonância, nelas operando reflexões de inclinação céptica e/ou pessimista. Decerto porque a memória  é ainda macerada pelos fantasmas de uma guerra que, se aparentemente terminou, legou inesquecíveis marcas a quem a viveu. Em Remuniciar o Tempo, temos disso exemplos vários: a mulher que, “violada pela milésima vez”, permanece “teimosamente virgem”; o poeta que “aborta os versos de gerações massacradas”; os companheiros com os quais perdeu tudo “excepto o instinto animal de gatilhar”. Quando se reencontra com Bolama, em Algumas das Cidades, a raiva, o “cansaço de estar nu”, que se lêem nos poemas da Guiné, décadas antes, são invocados com ironia e até, surpreendentemente, com humor: “Tenho viajado muito/nem sempre na melhor altura”. A viagem, o lugar que se vivenciou ou o lugar onde se está e se confunde com a memória de outro, é, com frequência, nos poemas deste autor, o ponto de partida para a composição poética. Porque o poema “afronta a erosão do gesto” – recupera, por via da imagem, do ritmo, do som, uma circunstância temporal ou espacial, registando-a segundo uma língua comum a todos nós, mas individualizada. Gera-se, assim, um discurso ou um canto que, para o leitor, se torna um passaporte para o universo que procura reportar e transformar.

Como assinala Vamberto Freitas, a poesia de Urbano Bettencourt, ainda assim, “requer o nosso reencontro de tempos a tempos” – a leitura que dela fazemos adensa-se e adquire novas ligações entre si. Reconhecem-se-lhe diálogos com Camões, com Emanuel Félix, com Santos Barros, com Nemésio, quer explicitamente quer ao nível da construção, mas que sempre confirmam a unidade fundamental, orgânica, da voz que nos conduz do primeiro ao último poema de Com Navalhas e Navios. Ainda espaço haveria para se discorrer sobre a influência que Eros (como relembra Carlos Bessa no prefácio) exerce sobre esta obra. Sobretudo na forma como se religam as ideias de casa, natureza e ventre, a atribuição à palavra de uma função fertilizadora (por exemplo, o verbo “penetrar” ressurge assiduamente) resulta frequentemente numa composição na qual o “marinheiro com residência fixa” recupera e reconstrói os lugares, as sombras, os afectos, que atravessaram a sua existência e (des)orientam o seu sentido.


Leonardo Sousa, Atlântico Expresso, 2019-10-14



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Luiz Antonio de Assis Brasil



Os motivos de Urbano Bettencourt

Luiz Antonio de Assis Brasil


            Não desdenho a plurivalência semântica do vocábulo “motivo” do título, ora declinado no plural; mas como uma resenha deve ser esclarecedora e não agente de confusão, apresso-me a esclarecer que aqui, ao falar nos motivos de Urbano Bettencourt, estou a pensar nas fontes culturais de sua escrita, encontráveis na antologia de seus poemas saída na Primavera de 2019, nominada Com Navalhas e Navios – poesia reunida 1972-2012, mas não só: penso, também, nas razões interiores que o levaram a escrever poesia no decorrer das quatro décadas que começam por Raiz de Mágoa [1972]. Como as razões interiores pertencem à reserva íntima do poeta, posso, entretanto, adivinhá-las sob a proteção das reflexões do autor acerca da nossa humanidade, trazidas à luz em poemas escolhidos da obra em pauta. Advirto que pretendo fazer, aqui, um corte “horizontal”, abdicando de uma peregrinação miliar e diacrónica por todos os livros – e poemas avulsos – aqui reunidos.

            Isto posto, meu texto terá um aspecto bifronte: por um lado, tentará descobrir que fontes culturais são essas e, por outro, buscará identificar, num único poema, o que pensa o autor sobre sua forma privilegiada de expressão artística. Não desconheço a existência e a relevância dos textos em prosa de Urbano Bettencourt, mas aqui, por óbvio, devo ficar adstrito ao objeto da recensão.

            Gostaria de fazer um registo vestibular: este é um livro da dúvida, expressa pela grande quantidade de sentenças interrogativas que são disseminadas pelos diferentes poemas que o compõem. Quero dizer: Urbano Bettencourt não pretende nos trazer verdades sólidas, irretorquíveis, mas antes deixar patente a ambivalência que pede a cumplicidade criativa do leitor para que este possa ajudá-lo a decifrar as perguntas que ele próprio se coloca. E são dúvidas que atingem a essência do fazer poético, como revelando sua impossibilidade: como dizer o ritual de retomar o gesto a crueza dos corpos entre as redes e as velas decompostos?  Ou, então, as imprecisões da História ao pensar no célebre quadro de Domingos Rebelo: Estaria ausente o pintor quando / no cais antigo as mulheres / desembarcavam os maridos os baús / e as crianças? Claro, algumas sentenças são apenas formalmente interrogativas, como, do mesmo poema: Janelas / de Ponta Delgada, que horizontes vos não fixam / e se vos negam? – trata-se, vê-se, de um recurso retórico, mas ninguém fica indiferente, e talvez fale mais do que as afirmações. Aliás, em todo o livro há um eu-lírico que, para além das contínuas perguntas, rejeita o tom categórico das afirmativas, ou ele existe de forma mitigada, escondendo-se na insinuação das metáforas.

            Há, perceptível, a presença de um motivo que frequenta – antes com maior força, é verdade – a escrita daqueles açorianos que participaram da guerra colonial ou foram por ela afetados, e que exorcizam suas percepções quase sempre através da narrativa. Esse é um assunto que, parece, transita também para a segunda geração, isto é, a dos filhos e netos dos participantes da guerra, embora não saibamos, ainda, sua exata dimensão e durabilidade. Na vertente “canónica”, entretanto, os exemplos estão aí, e podem ser citados, dentre outros, e em ordem cronológica de publicação, José Martins Garcia [Lugar de Massacre, 1975], João de Melo [Autópsia de um Mar de Ruínas, 1984], Álamo Oliveira [Até hoje. Memória de Cão, 1988] e Carlos Tomé [Morreremos Amanhã, 2007]. Esse viés, em Urbano Bettencourt, é mais visível em Remuniciar o Tempo: – 13 Poemas da Guiné, incluído na coletânea que ora nos ocupa, e que nos traz a vivência desse conflito bélico. Sua irresignação à guerra transparece no poema “De Mafra, com mágoa”, sendo ali um lugar de preâmbulo de uma sequência que levaria à África: Mafra é Mafra / e eu sou eu. A eclipsar/explicar a aparente tautologia, vem a declaração pacifista: Nunca acertei meus passos pelo ritmo das balas / nem porei a cabeça no alvo que procuras. / Por detrás da máscara eu lá estou / sem ódios, nem balas, nem guerras / despido / e com um ramo de cravos / em cada mão. O que distingue nosso autor é a rara utilização do gênero poético para tratar da guerra [tal como, nos Açores, encontramos J.H. Santos Barros e, no Continente, Manuel Alegre]. Sua perspectiva já na Guiné, mais do que o horror e a denúncia de seus pares geracionais, alterna-se na díade medo/enfado: domingo tão chato/como a chatice antiga de ir ao domingo à missa. Depois: daqui escrevo este batuque de medo. Não deixam de estar presentes, contudo, a raiva, a indignação, a saudade de casa, a solidariedade com a Guiné: Aqui também em maio se escreveu / morte mágoa vértice de saudade, ou porque escrevo raiva / ante o cansaço de meus braços armas e depois: um país pisado / lilás / violado em cada noite pelas bombas. O enfado e o medo, portanto, agem como catalisadores dessa raiva, dessa saudade, dessa compaixão, pois todas essas circunstâncias se interpenetram, gerando inesperadas realidades poéticas. Tentando resumir esta última reflexão: porque o poeta é um só, não apenas como poeta, mas também como homem, naturaliza-se a ideia, facilmente apreendida pelo leitor, de que nenhuma emoção é pura, mesmo quando estilizada pelo verso. No caso de Urbano Bettencourt, é possível dizer que ainda valem, e muito, os poemas de Remuniciar o Tempo: a universalidade dos sentires humanos garante-lhes plena justificativa neste século XXI. Essa é, aliás, a marca da boa poesia: ainda que datada, fala-nos desde sempre e para sempre.

            Outro âmbito genético bastante disseminado por todo o livro é a figura feminina, transposta em metáforas aliciantes. Trata-se de uma perspectiva de colocar-se ao lado da mulher que sofre, mas jamais no exercício da piedade, esse sentimento estéril. É uma atitude construtiva, que entende a mulher como um ser de padecimento numa sociedade ainda dominantemente masculina. Essa atitude é ampla, compreendendo também as mulheres da guerra: como este lago de sangue / nascido nas pernas da mulher / violada pela milésima vez / e sempre virgem / teimosamente virgem. Aqui uma exegese mais dilatada poderia inferir citações bíblicas subjacentes, e deixemos ao leitor que o faça, segundo seu modo de entender a fé. Já o lamento, a dor e a incompreensão têm residência no poema “Elis, essa mulher”, a cantora brasileira tão cedo e inesperadamente morta, sem nenhum aviso prévio de peregrinação / à porta, nem um presságio. É um poeta capaz de criar o sintagma: a virtude das mulheres infiéis no notável “Cidades de Passagem”, subvertendo a lógica da moral comum. Aliás, temos de estar atentos. Urbano Bettencourt faz essa subversão a todo momento em Com Navalhas e Navios.

            Esta recensão ficará incompleta se não assinalar a onipresença dos Açores, que são afinal, o lugar de nascença e permanência, esta última com ausências pontuais. Muito longe estamos de Roberto de Mesquita e sua sensação conflitiva de encarceramento e infinitude, como bem detectou José Martins Garcia na obra do autor de Almas Cativas. Os tempos são outros, o poeta é outro. Em Urbano Bettencourt, sem a pretensão de buscar uma amplitude hermenêutica tal como proposta por Martins Garcia, é possível dizer que o poeta cultiva antes de tudo uma realidade insular inominada, o que pode levá-lo além do Arquipélago familiar, e eis aí outra distinção relativamente aos seus coetâneos. Sabe-se que o autor frequenta outros sistemas literários insulares. Como diz, Tenho viajado muito / nem sempre na melhor altura.  E essas viagens ocorrem na busca, ainda que velada à consciência, de conceituar um designativo comum que una esses sistemas para além da língua partilhada e transformada. A tarefa não é fácil, tendo em conta a diversidade histórica e cultural desses universos em meio ao Atlântico. Já as ilhas de sua vivência medular são expressas em engenhosas e escolhidamente naïves “Quadras de Ilha” – a não esquecer Pessoa, que cultivou o género em Quadras ao Gosto Popular – mas, de igual sorte, suas metáforas abstratas, que, por vezes, vêm acompanhadas de um motivo inesperado, como o poema “A meu pai, construtor de barcos”: tu fabricante de viagens / amordaçadas / arquitecto de ilhas / naufragadas. A acompanhar esse inventário há, quase sempre, um olhar que revela algo de tênue sarcasmo, como neste “Postal de São Jorge”: Sábado de manhã, abres a janela sobre o mar e as invisíveis laranjas / da Urzelina. Canal. A gente tá aqui é pra esperar. E o Pico sem mexer. Quanto às outras ilhas fora do Arquipélago, temos Cabo Verde, a que o poeta lança um olhar positivo, de reconhecimento de uma arte fresca como a da cantora bem conhecida em São Miguel, Djuta Ben-David, da qual celebra a discreta música de búzios / e conchas, e que conclui com um brado enérgico e inequívoco: Sodade de Cabo Verde. Ainda Urbano Bettencourt escreve um poema cheio de doçura e enternecimento à “sabedoria” das cabras de Cabo Verde, que envelheceram demasiado cedo / a interrogar o mistério do sal / e do vento. Também às Canárias ele tem os olhos prendidos, como em “La Gomera”, que é um gomo de mistério / na sua casca de cinza / e noite. Digamos assim: se a vida no seu Arquipélago natal vem às vezes carregada de tantas dúvidas e eventuais críticas e ironias, o refúgio moral do eu-lírico encontra amparo noutras ilhas, ainda virgens ao seu olhar, e é lá onde ele põe toda sua reserva de descobertas.

Quando Urbano Bettencourt se volta para o fazer do artista da palavra – passe a expressão um pouco desfasada – muito poderia ser dito, mas creio que a summa está visível num momento capital deste livro. Tudo está ali. É uma declaração de princípios, eu diria, quase um manifesto, se ainda vivêssemos em época de manifestos literários. Peço desculpas pelo tamanho da citação, mas isso é necessário por sua importância: Fazer versos dói? Não! As tecnocracias / literárias também fazem fermentar os seus vates voadores / de cinco e mais estrelas compondo em papel de cor / e perfumado suaves consolações, perversas constelações / ao Dicionário de Rimas arrebatadas. / / O que dói é arrancá-los / assim ao próprio sangue como se um filho fora, erguê-los / à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever / a nossa morte. A nossa vida. O leitor já entendeu que  o poeta não faz concessões à escrita fácil, aquela que não brota da dor e da profunda relação entre a vida – ou a morte – e o poema; enfim, insurge-se com o poema feito de artifícios da superficialidade, das “tecnocracias literárias”, e, ao contrário disso, ele prega a verdade do poema que emerge das entranhas sanguinolentas, “como se um filho fora”.

            Chegou o momento de resumir. Urbano Bettencourt, na sua reunião de poemas em boa hora publicada pela admirável Companhia das Ilhas, constitui-se num poeta de consistência autêntica, persistente no seu ofício, erudito – haja vista as dezenas de alusões culturais – capaz de ser lido por qualquer geração, hoje e amanhã, e que ainda irá dar aos seus leitores muito mais de sua inequívoca vocação.

Publicado no Diário dos Açores, 1 de fevereiro 2020
créditos fotográficos: http://www.laab.com.br/fotografias.html





Bettencourt, Manuel Urbano

 

[N. Piedade, Lajes do Pico, 24.11.1949] Poeta e docente universitário. Raíz de Mágoa, primeiros poemas de Urbano Bettencourt publicados em livro, data de 1972, e a mais recente, Algumas das Cidades, de 1995. Tem publicado entretanto e regularmente nos mais diversos periódicos científico-académicos ou de larga circulação, reunindo-os em sucessivos volumes (três, até hoje) sob o título de O Gosto das Palavras. Paralelamente àquela consistente actividade literária, nunca deixou de intervir a vários níveis na vida cultural da comunidade açoriana, sempre consciente da sua dispersão e consequente ?riqueza? artística ao longo dos séculos ? um mosaico de ser e estar diverso e conjugado num todo, como as próprias ilhas a que ele intimamente pertence, e a partir das quais se posiciona perante o restante mundo. Foi ainda a meados dos anos 70 (e como resultado imediato do 25 de Abril) que Urbano fundou e dirigiu, com o falecido J. H. Santos *Barros, A Memória da Água-Viva, a primeira revista de cultura açoriana que propôs com desusada audácia um projecto de definição e defesa de uma Literatura Açoriana a partir de pressupostos ideológicos profundamente democráticos e universalizados. Urbano tem antecipado outros teoricamente numa antevisão de um pós-modernismo culturalmente abrangente e marcado necessariamente pela permanente dialéctica da territorialização/desterritorialização (de que falaria mais tarde Edouard Glissant em relação às ilhas Caraíbas) da criação literária açoriana, enraizada desde há muito, tanto na experiência histórica da vida nas ilhas como na ?convivência? ou diálogo intelectual com o exterior, desde o Continente português às Américas. Urbano Bettencourt é, nos Açores, um dos mais completos e consequentes exemplos do poeta crítico, com profundo enraizamento na experiência criativa do nosso país. Desde há anos docente de literatura na Universidade dos Açores, a dualidade da obra de Urbano, assim como o seu papel de homem de letras público, faz lembrar a dinâmica criativa e teorizadora do conhecido grupo de poetas sulistas norte-americanos que (também a partir das suas universidades) nos anos 30 e 40 criaram e aprofundaram o New Criticism, a mais duradoura (e internacionalizada) proposta teórica na descodificação do texto poético.

A data da publicação da sua poesia é pertinente. É aí que se encontra a chave descodificadora de muita da sua temática: o desespero e alienação de toda uma geração perante a guerra colonial e a longa ditadura política que não deixava mais do que a resistência ou a emigração a homens e mulheres livres e conscientes do seu momento histórico adentro de um referencial transnacional. O trágico cerco humano, na poesia de Urbano, intensifica-se na geografia atlântica da ilha abandonada e num tempo sem tempo. Urbano cultiva, desde o início, na sua poesia, uma aguda ironia e certo grau de ambiguidade na abordagem do mundo ilhéu açoriano ou mais vastamente português. A sua linguagem poética está decididamente vincada por uma insistente imagística e demais andamentos ora de denúncia da desolação societal ora de dialogismo entre autores e textos das mais próximas e distantes geografias reais e imaginárias; é a poética de uma dialéctica entre a realidade estática e a fuga através da pura fantasia. Há na sua obra a continuidade de preocupações temáticas expressas nas mais diversas formas desde, por exemplo, Fez do abandono um hino de coragem, do poema ?Ilha-Grande? do já referido Raíz de Mágoa de 1972, O mundo acaba mesmo em frente, de encontro à Montanha emboscada na sua teia de nuvens, de ?Horta, um perfil? em Algumas das Cidades de 1995. Este seu mais recente livro contém nove sequências sobre Angra pós-sismo (de 1980). É um gesto poético de aproximação afectiva e simultâneo distanciamento irónico e intelectual à realidade da ilha caída e aparentemente ?recuperada?.

Ensaísta e teorizador crítico da literatura e cultura açorianas, tal como na poesia, Urbano estende consideravelmente o campo de contextualizações estéticas e históricas. A análise textual serve-lhe inevitavelmente para a retenção de ideias principais e impulsos temáticos de cada texto em foco. A sua ?comunidade? de referências literárias e culturais inclui naturalmente a maior parte dos seus colegas dos ou nos Açores, mas nunca ignorando os que, de um modo ou outro noutras partes, intervieram ou intervêm nesse gesto de reconhecimento melvilliano de geografia para geografia, de língua para língua. Os escritores africanos de língua portuguesa, principalmente os cabo-verdianos devido às suas afinidades intelectuais com as ilhas açorianas, são-lhe uma presença constante e frutífera, como nos mostra De Cabo Verde aos Açores ? à luz da Claridade, editado (em 1998) na cidade do Mindelo após uma série de conferências que Urbano proferiu naquele arquipélago. Quanto aos referidos volumes de O Gosto das Palavras, bastará citar o que sobre essa obra de referência (para qualquer estudioso da literatura ou cultura açorianas) escreveu um dia Eugénio Lisboa nas página do JL: ?É que se Urbano é um académico genuíno, por profissão e competência, é também, e acima de tudo, um verdadeiro escritor. A diferença é enorme. O académico só tem que ensinar, investigar e apresentar comunicações com o resultado dessa investigação. Ao escritor compete-lhe criar textos, isto é, de criação literária que, mesmo comentando outros textos, estão muito para além da comunicação meramente denotativa?.

experiência imigrante açoriana na América do Norte e os seus reflexos nalguma literatura do arquipélago, para além de constantes chamamentos na sua restante obra poética e ensaística,  valeu-lhe ainda o estudo Emigração e Literatura: Alguns Fios da Meada, publicado na cidade da Horta em 1989. Trata-se de uma análise de como esse (talvez o mais importante) vector histórico na vida multissecular dos Açores foi transfigurado ou representado por alguns escritores açorianos no fim do século XIX. 

Vamberto Freitas (2002)

 

Obras (1972), Raíz de Mágoa. Setúbal, Ed. do Autor. (1980), Marinheiro com Residência Fixa. Lisboa, Grupo de Intervenção Cultural Açoriano. (1987), Naufrágios/inscrições. Ponta Delgada, Brumarte. (1995), Algumas das Cidades. Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura [poesia]. (1983), O Gosto das Palavras. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura [artigos sobre Antero de Quental e outros autores açorianos; o carácter cósmico de alguma poesia barroca, os Apólogos Dialogais de D. Francisco Manuel de Melo]. (1989), Emigração e Literatura. Horta, Gabinete de Cultura da Câmara Municipal [ensaio que aborda a questão nalguns contistas açorianos do final do século XIX].O Gosto das Palavras. Ponta Delgada, Jornal de Cultura, II [ensaios sobre autores açorianos e ainda Maria Ondina Braga, Helena Marques, António Tabucchi, Raul Brandão, entre outros]. (1998), De Cabo Verde aos Açores ? à luz da Claridade. Mindelo, Câmara Municipal de S. Vicente. (1999), Gosto das Palavras. Lisboa, Ed. Salamandra, III. [Ensaios sobre Literatura Clássica Portuguesa e Literatura Açoriana e Cabo-Verdiana] [Crítica/Ensaios Reunidos]. (1986), ?Rodrigo Guerra - Alguns Olhares? in Onésimo Teotónio Almeida, Da Literatura Açoriana ? subsídios para um balanço. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1987), Algumas Palavras a Propósito... In Terra, F. Água de Verão. Ponta Delgada, Signo. (1998), ?A Ilha de Fernão Dulmo em Mau Tempo no CanalIn Homem, M. A. (ed.), Livro de Comunicações do Colóquio As Ilhas e a Mitologia. Câmara Municipal do Funchal: 117-123. [Ensaios Dispersos].

 

Fonte: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=51 (consultado em 14/09/2019)




Com Navalhas e Navios, de Urbano Bettencourt” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 14-09-2019. Disponível emhttps://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/a-minha-poesia-esta-diferente.html