quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A ave que passa

Georges Braque, “A Bird Passing Through a Cloud”, 1957

XLIII

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.

A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

7-5-1914
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10.ª ed. 1993).
  - 66.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, n.º 4. Lisboa: Jan. 1925.



***

Como passar sem deixar rasto (vestígios da morte)? Como ser levado pelo vento e não ser apenas terra perdida desde sempre já na terra? Como passar? Aquilo que o poeta lança ao vento, aquilo que em atrito lhe cede, é o seu distanciar‑se da terra, o voo, o canto, que é como quem diz, o amor, a alegria, a dor. Na sua casa imaterial, feita da matéria e do imaterial que são as palavras, o poeta confunde‑se com a passagem e o desejo de passar. Passagem de palavra em palavra que gera a constelação de figuras (ideias, sensações), o vento do pensamento, imortal, secreto, sem rasto, fecundo.

Silvina Rodrigues Lopes, "Como quem num dia de Verão abre a porta de casa", Colóquio/Letras, n.º 178, set. 2011, p. 9-21.

***

O poema XLIII apresenta uma gradação de planos, que vai da espécie (a ave, o animal) ao plano mais geral, a "Natureza", de onde recua no verso final, novamente para a espécie (ave) até atingir o particular (e ensina-me a passar). É no centro do movimento, no momento em que atinge o plano geral, que há o clímax do poema. Ali, há o porquê justificador dos quatro outros períodos afirmativos e do imperativo que constituem o poema. Todo o pensamento e razão do poema giram em torno de "a Natureza de ontem não é Natureza", ontem que poderia ser tomado numa acepção ampla, alegórica, de uma ordem anterior à atual (uma outra constituição do mundo físico ou um mundo das idéias, por exemplo), não fossem as afirmações tanto de caráter geral, quanto particular, situarem essa temporalidade num agora. Imediatez que é proposta principalmente pelo passar da ave enquanto atualidade de um vôo, não enquanto espécie de ser vivo, que mesmo depois de extinta fica, tal como o animal terrestre, para o paleontólogo. A "natureza" está associada a um agora onde todo recordar é traí-la, pois é lançar sobre a natureza de agora uma outra natureza.

Mario Queiroz, “Idéias de Natureza em Alberto Caeiro”, Revista Terceira Margem, v.10, n. 14 (2006). Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/15176/0




A AVE QUE PASSA

Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto (...)*),
que um mar por descobrir ou um céu por rasgar.
Ao longe, no fim das águas, uma linha convexa que a ave nunca alcança;
Lá, onde nasce o firmamento, despeja-se um mar inteiro para tingir o céu de azul e infinidade.
Mas o mar, que é ardiloso, encobre um leito convulso, uma terra que se excede e desponta à superfície em ressaltos de lava arrefecida - nove montanhas do mar que a ave sobrevoa e a distraem da viagem. É então que pica o voo para poder ver que é verdade.
Por entre as coroas de nuvens, descobre que a terra sossegou, que a lava afinal frutificou. Vista de perto, a neblina, as fumarolas, o cheiro a peixe e a enxofre, o verde dos prados a espraiar-se nos taludes, os cedros e as acácias, as águas sorrateiras das caldeiras; mar, céu e terra esborratados em nove pinceladas, moradas temerárias de um povo que se atreve a um mar sem termo.
Mas a ave insiste e mergulha sempre a pique. Há homens descalços na praia. Então ela pousa e desiste do seu voo. Ainda mais perto, nota-lhes a pele curtida, o linguajar enredado como a malha carregada sobre os barcos, o sotaque inusitado e soberano de um povo que é dono do seu querer.
Os homens, esses, não dão por ela.
Prendem garrafas vazias de cerveja com a ponta dos dedos e o que dizem é à vez. Sem deixar de olhar para o mar, talvez não falem do mar; talvez falem de cidades, não de sete mas de mil em qualquer lugar do mundo; e, em cada uma, haverá sempre outra praia, sempre um outro açoriano que lhes devolve o olhar. Não passes, ave, fica, e ensina-me a ficar!**)

João Pinto Coelho, 12-05-2018
my plan magazine, n.º 14, julho-agosto 2018. Revista de bordo da SATA/Azores Airlines disponível em: https://www.sata.pt/sites/default/files/n14_MY-PLAN_2.pdf

*) verso transcrito do poema «XLIII - Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto», de Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”. 1.ª publ. in Athena, no 4. Lisboa: jan. 1925.
**) adaptado do mesmo poema.



 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 




CARREIRO, José. “A ave que passa”. Portugal, Folha de Poesia, 08-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-ave-que-passa.html



Sem comentários: