Emanuel Jorge Botelho: a asa
batida sobre o medo
Em dois volumes, a obra poética completa de Emanuel Jorge Botelho.
Dizeres de Atalaia I
Emanuel
Jorge Botelho (Ponta Delgada, 1950) é um poeta e uma personalidade singular.
Talvez como todos os grandes poetas. Mas este mais. Pelo seu viver apartado das
luzes da ribalta, pelo seu viver na ilha (S. Miguel), mas nesta se instala o
mundo inteiro. Foi professor, fez parte do Grupo de Intervenção cultural
Açoriano, fundou e dirigiu a revista Aresta e coordenou o suplemento
cultural do jornal Correio dos Açores.
Publicou
muito, e muito dispersamente desde sempre. Sempre bem acompanhado em edições ou
editores menores (leia-se maiores): Frenesim, Black Sun’s, & Etc, Sistema
Solar, Averno... muitas edições de autor. Esta última lançou em dois volumes a
obra poética completa (cf. artigo neste jornal de Luís Miguel Queirós A poesia
tornou-se um território de pequenas editoras, de 8/5/2020).
Como
objecto, apetece manusear, e como conteúdo revela a dimensão maior de um autor.
Em 2017, as crónicas já haviam sido reunidas em Letras Lavadas. Muitos
textos dispersos surgiram em revistas (Telhados de Vidro, Cão Celeste),
integraram antologias (Língua Morta, Companhia das Ilhas), surgiram em folhas
de autor assinadas apenas por si ou com outro(s), sob vários pretextos.
Pretextos que são, aliás, trampolins para o arvorar de um mundo de palavras.
Palavras que se podem filiar na origem, tantas vezes explicitada, ou se
desprendem e ganham fôlego, asas (palavra que o poeta reitera).
Manuel de
Freitas, autor do posfácio, pega numa epígrafe de Luiza Neto Jorge que aquele
usa para encetar a sua série Urbano (um dos maiores pintores
açorianos) — ‘“Não podendo falar para toda a terra/ direi um segredo a um só
ouvido’”. Freitas aproxima do poeta autores que se revelaram pelos anos 80.
De Al
Berto a Carlos Poças Falcão, Fátima Maldonado, Adília
Lopes ou Rui Baião, entre outros, portadores de um modo nocturno, exausto
e desolado de ser e de ver. Chama-lhe a “geração invisível”. Mas Emanuel Jorge
Botelho é também um grande leitor — o que densifica a sua poesia e estende as
redes. Herberto Helder, Ramos
Rosa são presenças manifestas, Antero obviamente. Botelho firma uma
poética de nomes próprios. Nomes que dão nome a um poema, ou poema dedicado a
um poeta, ou personalidade, vivos ou mortos. Listando esses nomes que são
sempre resultado de uma emoção tornada escrita, temos a constelação de
influências e cumplicidades do autor. Quem ler, percebe o em-comum desse
universo. Pavese, talvez o mais assíduo, Michaux, Genet, Artaud, mas também Jim
Morrison. Vários autores portugueses convocados: Vítor
Sousa Tavares, Santos Barros, António
Barahona, Manuel de Freitas, Inês Dias, Rui
Nunes, Fernando Guerreiro, Luís Manuel Gaspar, Urbano. Em comum, talvez,
uma não cedência obstinada.
Dois
exemplos, entre muitos possíveis, que podem ser considerados emblema da arte
poética de Emanuel Jorge Botelho, da sua força motriz e do campo que ela
levanta: não será por acaso que “asa” é no autor uma recorrência, por oposição
a “chão” igualmente insistente. Essa força motriz ramifica-se rasgando a
sombra, amortecendo o ethos disfórico de onde emerge. O primeiro
exemplo pertence à sequência Lorena (2002), nome próprio da
companheira amada: “eu tinha nos ombros/ um livro encerrado/ até os teus olhos/
me darem palavras// Contigo fui dando/ a tudo o teu nome/ em nome de nós/ por
causa de mim.”
Recapitulando
de um modo que por certo empobrece: a voz do sujeito poético emerge do peso e
da sombra, da apatia, e será propulsionada por um TU, um Outro, mesmo uma cor,
uma lembrança, propulsionada por algo de fora que mobilize o campo e semeia as
palavras de que assim, incendiadas, o sujeito se apropria e devolve,
generosamente, ao mundo tornando sensível à volta. O “tu” como a mulher amada
que responde ao homem cheio de sombras: “ela olhou-o (...) e disse a noite só é
negra se não for a véspera de outra noite”. E o ser sombrio devém não
necessariamente luz, mas aberto. E é esse movimento de abertura e acolhimento
de traços sensíveis que nutre afirmativamente esta poesia mesmo exibindo com
doçura o recuo da instância do desejo, da vontade e do poder.
Os poemas
são em geral curtos. O poeta usa, frequentemente, a duas, quatro ou seis mãos,
o haiku. Assina com outros alguns textos. Num dos últimos poemas do
segundo volume, quando a pressão do tempo esmaga, o sujeito sorrindo escreve,
talvez com um sorriso de bolso, que só um poema longo à Ruy Belo ou Pascoaes
seria capaz de domar o medo, o medo de tudo
Estilisticamente
uma das suas características é uma espécie de colisão de campos imagéticos
distintos. Afastados. Esse choque é um “coice” (metáfora recorrente), um
safanão que abana o ser amortalhado (“sudário” é outra recorrência, a impressão
que resta da rasura do corpo, a fímbria da cinza). A colisão de campos
imagéticos diferentes, infamiliares, mantém palpável a estranheza da
aproximação, o atrito, a coligação de campos semânticos à partida dissonantes:
“colhi no chão de cada noite/ uma hera de trigo/ e um palmo de sorte”. Outro
caso é a série de 2017, Ruídos da luz,conjunto de poemas que relê a
criação do mundo, o encontro dos elementos, embora pouco “se saiba ou quase
nada.”
Não se
pode deixar de notar a intersecção de géneros, a transmigração de ferramentas
de um campo para outro. O imaginário da pintura é evidente (“às vezes a cor sai
da moldura/ e fala de ti como se fosse lábios”); assim como do teatro (“Avulsos
de palco/para um acto de peça”), o mar como quarta parede, o sujeito lírico
perante um palco.
No
posfácio, às recorrências vocabulares do autor Freitas chama uma cartografia
lexical que o tempo foi acumulando e dando espessura, sem, todavia, abafar a
textura renovada e versátil do verso. Sem se pretender ser exaustivo,
sublinhando-se a tensão: ardósia, bibe (a infância), asa, céu, chão, terra,
pedra, cinza, lava, amanhecer, lume, luz, noite, branco, negro, recuo, rasura,
tempo, morte, mas até ela está cansada...
Emanuel
Jorge Botelho é um dos melhores poetas contemporâneos da língua portuguesa, que
constrói uma obra com a conjugação de materiais muito nobres, elementares,
esplendorosamente pobres.
Maria Conceição Caleiro, Público, 2020-07-29
Dizeres de Atalaia IIAutoria: Emanuel Jorge Botelho |
CARREIRO, José. “Emanuel
Jorge Botelho: Dizeres de Atalaia”. Portugal, Folha de Poesia,
02-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/emanuel-jorge-botelho-dizeres-de.html
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