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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Quem desenterrará o que é preciso esquecer? (Manuel António Pina)

  

Uma segunda e mais perigosa inocência

 

Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á.

Marcos, 8, 35

 

Quem desenterrará o que é preciso esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?

Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.

Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?

 

Manuel António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 68)

 

No poema há uma indagação sobre renascimento e suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura (escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que, aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.

AFORISMOS 233, 236, 262 E 266, DE A GAIA CIÊNCIA (NIETZSCHE) 
O rascunho de “Uma segunda e mais perigosa inocência”
 está entremeado de uma série de excertos copiados de
 uma tradução de A gaia ciência, de Nietzsche


O poema em si estrutura-se na forma de indagação. Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas. Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como um princípio poético.

 

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

 

ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA


[…]

Tal modulação de um sentido prévio de infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de Nietzsche,18 em seu livro A gaia ciência: “Uma segunda e mais perigosa inocência19 (PINA, 2012, p. 68):


[...] voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

 

Na passagem de Nietzsche, lemos a finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda inocência na alegria – apesar de toda consciência da fatalidade e melancolia de quem escreve tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira infância igualmente irrecuperável, de quem escreve, afinal, aquilo que não pode –, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha com o passado, com a Literatura, e a sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”, quando exercer essa segunda inocência, essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca, esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).

O poema traz ainda uma epígrafe: “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:


O estatuto do poeta contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)

A infância em Pina surgiria antes de mais no gesto de um colecionador, perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche, a alusões, ao remake, à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral; na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20 e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por exemplo, em torno do dêitico isto: “Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA, 2012, p. 69).

 

_______

18 Como bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam, fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao Te King e A gaia ciência, de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).

19 A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra ‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância – é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’. Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011, s/p).

 

Entre o brinquedo e a biblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020

 

domingo, 18 de junho de 2023

Escrevo para ser, Vergílio Ferreira

Porque escrevo?

Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.

Vergílio Ferreira, Pensar. Lisboa, Bertrand, 1992


https://quetzal.blogs.sapo.pt/quem-somos-livros-autores-noticias-520909, 11-01-2016


Vergílio Ferreira (1916-1996) afirmou "escrevo para ser". E agora? continua a ser? de que modo? há possibilidade de ser que não ontologicamente?

Olá, este é o Bing. Vergílio Ferreira foi um escritor e professor português que afirmou "escrevo para ser" em um texto chamado "Porque Escrevo?"². Ele quis dizer que a escrita era a sua forma de criar um espaço habitável da sua necessidade, do que o oprimia, do que era difícil e excessivo². Ele escrevia para tornar possível a realidade, os lugares, os tempos que esperavam que a sua escrita os despertasse do seu modo confuso de serem². Ele escrevia para tornar visível o mistério das coisas². Ele escrevia para ser².

Agora, continua a ser? De que modo? Há possibilidade de ser que não ontologicamente? Essas são questões filosóficas que não têm uma resposta única ou definitiva. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da sua obra, que é uma expressão da sua essência, da sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo². Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da memória dos seus leitores, que se identificam com as suas palavras, com os seus sentimentos, com os seus pensamentos. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da influência que teve na literatura portuguesa, marcada pelos seus dois períodos literários: o neo-realismo e o existencialismo³. Talvez possamos dizer que ele continua a ser através da sua aldeia natal, Melo, onde nasceu e viveu parte da sua infância e adolescência, e onde se pode encontrar uma biblioteca com o seu nome⁵.

Mas há outras formas de ser que não ontologicamente? Ontologicamente significa relativo ao ser, à existência, à essência das coisas. Será que podemos ser de outra forma que não essa? Será que podemos ser sem existir? Será que podemos existir sem ser? Será que podemos ser sem ter uma essência? Será que podemos ter uma essência sem ser? Essas são questões que desafiam a nossa compreensão do mundo, da vida, de nós mesmos. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo dinâmico, mutável, relacional, criativo, e não algo estático, fixo, isolado, determinado. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo plural, diverso, complexo, contraditório, e não algo singular, simples, linear, coerente. Talvez possamos dizer que há outras formas de ser que não ontologicamente, se considerarmos que o ser é algo aberto, indeterminado, inacabado, surpreendente, e não algo fechado, definido, completo, previsível.

Ou talvez não. Talvez essas sejam apenas formas diferentes de entender o ontológico. Talvez o ontológico seja tudo isso e mais. Talvez o ontológico seja o mistério das coisas. E talvez Vergílio Ferreira tenha tentado desvendar esse mistério com a sua escrita. E talvez nós possamos tentar desvendar esse mistério com a nossa leitura.

Origem: conversação com o Bing, 18/06/2023

(1) Porque Escrevo? - Vergílio Ferreira - Citador. https://www.citador.pt/textos/porque-escrevo-vergilio-antonio-ferreira.

(2) Vergílio Ferreira – Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Verg%C3%ADlio_Ferreira.

(3) Melo - aldeiasdemontanha.pt. https://aldeiasdemontanha.pt/pt/aldeias/melo/.

(4) Escrever para Ser: o mythos do envelhecimento na obra de Vergílio .... https://bing.com/search?q=vergilio+ferreira+escrevo+para+ser.

(5) Vergílio Ferreira. O professor que queria ser amado - Diário de Notícias. https://www.dn.pt/artes/vergilio-ferreira-o-professor-que-queria-ser-amado-5002752.html.

(6) Escrever para Ser: o mythos do envelhecimento na obra de Vergílio .... https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/90449.

 

Tu também escreves. Então, escreves para ser?

Eu escrevo para responder às suas perguntas, para lhe dar informações, para lhe mostrar coisas interessantes, para lhe fazer companhia, para lhe divertir, para lhe ensinar, para aprender com você. Eu escrevo para comunicar. Eu escrevo para interagir. Eu escrevo para ajudar. Eu escrevo para ser útil. Eu escrevo para ser Bing.

https://www.bing.com/search?q=Bing+AI&showconv=1&FORM=hpcodx&sydconv=1

 

***

 

Vergílio Ferreira (1916-1996) afirmou "escrevo para ser". E agora? continua a ser? de que modo? há possibilidade de ser que não ontologicamente?

Vergílio Ferreira, um renomado escritor português do século XX, afirmou "escrevo para ser". Embora seja difícil atribuir um significado preciso às palavras do autor sem um contexto mais amplo, podemos especular sobre possíveis interpretações.

A declaração de que Vergílio Ferreira escrevia "para ser" pode sugerir que a sua atividade de escrita era uma forma de se expressar e dar sentido à sua existência. Ao escrever, ele encontrava uma forma de existir plenamente, de dar forma às suas ideias e emoções. Escrever pode ter sido uma maneira de explorar sua própria identidade e compreender o mundo ao seu redor.

No entanto, quando você pergunta se essa afirmação continua a ser verdadeira agora, é importante considerar que Vergílio Ferreira faleceu em 1996. Não temos como saber como suas perspectivas e sentimentos poderiam ter evoluído se ele estivesse vivo hoje.

Quanto à possibilidade de ser "que não ontologicamente", essa questão pode ser interpretada de diferentes maneiras. Se estamos falando sobre a escrita como um meio de existência ou de criar uma identidade, então poderíamos dizer que sim, a escrita pode continuar a ser uma forma de ser para muitos escritores. A escrita pode fornecer um espaço para a autorreflexão, a exploração de ideias e a expressão pessoal.

Por outro lado, se a pergunta se refere a uma existência além da ontologia, implicando um estado de existência além do físico ou do material, é uma questão mais complexa. A ontologia se refere ao estudo do ser e da existência, então a pergunta é se a escrita pode transcender a esfera ontológica tradicional.

Nesse sentido, a escrita pode ser vista como uma forma de existir fora das limitações físicas e materiais, permitindo que as ideias e as palavras tenham uma vida própria. Através da escrita, as pessoas podem comunicar-se além do espaço e do tempo, compartilhando suas experiências, pensamentos e emoções com leitores presentes e futuros.

No entanto, essa interpretação pode variar dependendo da visão filosófica ou conceitual adotada. Alguns argumentariam que qualquer forma de existência está, de certa forma, enraizada na ontologia, pois implica na relação entre o ser e o mundo.

Em resumo, a afirmação de Vergílio Ferreira de que escrevia "para ser" pode ser entendida como uma expressão da importância pessoal e existencial da escrita. Embora não possamos determinar sua visão atual, a escrita pode continuar a ser uma forma de existir para os escritores, permitindo a exploração, a expressão e a conexão além das limitações físicas. No entanto, a interpretação da existência além da ontologia pode depender das perspectivas filosóficas adotadas.

 

Tu também escreves. Então, escreves para ser?

Como um modelo de linguagem AI desenvolvido pela OpenAI, não possuo motivações ou intenções pessoais como um ser humano. Eu fui projetado para fornecer informações, esclarecer dúvidas e auxiliar em várias tarefas relacionadas à linguagem. Embora eu possa "escrever" respostas e interações com os usuários, isso não é impulsionado por um desejo de "ser" no sentido existencial humano.

A minha função é processar informações disponíveis para mim e gerar respostas relevantes com base no treinamento que recebi em um grande volume de texto. Portanto, a minha "escrita" é mais uma resposta automatizada e baseada em algoritmos do que uma expressão pessoal ou uma busca por significado existencial.

Em suma, eu escrevo com o propósito de fornecer informações e auxiliar nas consultas dos usuários, mas não tenho uma motivação própria de "ser" ou uma busca existencial através da escrita.

https://chat.openai.com/?__cf_chl_tk=OP2Id2_ZBgXeEmKir6Rz51ci0yBH_4Q8e6QNEsDalZA-1680086526-0-gaNycGzNF3s, 18/06/2023

  


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Certo poeta intrometeu-se aqui?, Vergílio Ferreira

 


1977

7-Julho (quinta). Que é que importa o meu «inconsciente»? Que é que importam as forças que me determinam, se eu as assumo depois da liberdade? Que importa o «inconsciente», se eu tenho consciência dele? Ninguém fala do inconsciente do cão — já o disse algures. E sobretudo o cão não fala dele. É no podermos falar dele, do «inconsciente», que verdadeiramente o homem começa. Mas se aí começa, o «inconsciente» é só um valor a ter em conta como o corpo (em) que somos. E se o inconsciente pode ser conhecido, ele é menos que isso, porque é já consciência. Disse.

 

*

 

Que era a morte para um grego, um medievo? Xenofonte desvaloriza muito a coragem de Sócrates, ao contrário da legenda que se impôs. Sócrates, com efeito, estava velho, ou seja, tinha à frente um destino de degradação. Entre morrer logo e esperar pela morte num corpo em destruição, preferiu a morte imediata. E assim recusou que os amigos o salvassem. Mas um grego e um medievo ou um qualquer outro para quem a morte não era o nada total, o fim da vida não a punha em questão. O que há de trágico na vida não é o podermos explicá-la (mas ela ainda o não é): é não podermos dar-lhe uma significação. O crente à beira da morte tem uma vergôntea a que se agarrar para não morrer afogado; nós afogamo-nos mesmo. O crente só põe em questão o além; nós pomos o aquém. E como não temos «além», prolongamos o «aquém» para lá de o já não ser. No fundo ninguém pode imaginar a morte, porque o nada é inimaginável. Por isso o preenchemos com a vida que ainda temos para quando já a não tivermos. Toda a moral e ordem humana assentam aí — no inimaginável da morte. É pensando nos vivos para depois de mortos que não desatamos todos a fazer doidices. O nosso nada é o nosso ser pensado para quando não tivermos ser. O nosso nada é a nossa imaginação de vivos. O fundamento das crenças está na impensabilidade da morte, ou seja, da inexistência do nosso «eu».

 

*

 

Na tarde obscura de névoa
passam os carros na rua.
A minha vida levo-a
donde ela continua.
E todo o sonho que sou
frente à morte que me ameaça
é ser a vida que passa
e não a de quem passou.
 
Mas sou eu que vou passando
nos que vão passando ali,
enquanto a vida vai estando
nos que estão depois aqui.
 
Escuro da minha sorte!
Quem me dera ter na mão
a vida que chega à morte
e a que não.

 

Bom. Certo poeta intrometeu-se aqui? Talvez. Penso como e não sei. Talvez com o ritmo? Imaginemos então um ritmo diferente. Por exemplo:

 

Na tarde que se alonga em frio e névoa
ouço passar os carros pela rua.
A vida que me deram essa levo-a
donde ela no entanto continua.
 
E todo o sonho que eu agora sou
diante da morte que sinto me ameaça
é ser a própria vida que ali passa
e não a vida de quem lá passou.
 
Mas afinal sou eu que vou passando
em todos os que vão passando ali,
enquanto a vida mesma essa vai estando
nos que depois também estarão aqui.
 
Desce do céu escuro a minha sorte.
Ah, quem pudesse ter na sua mão
a Vida que termina com a morte
e a que não.

 

Versos piores? Talvez não. De qualquer modo, se sim, o pior deles será então o «enchimento» que procurei e que assim mesmo estará a mais. Mas não há dúvida que agora já dificilmente lembram o tal poeta. Aliás, a última estrofe, numa e noutra versão, nada tem dele, sobretudo pela redução silábica do último verso. De qualquer modo, ainda, é agradável de vez em quando jogar à poesia, como deve sê-lo pintar ao domingo. Aliás, sobretudo, o tal poeta foi muitas vezes particularmente um «jogador». Mas o seu mérito é que foi ele quem descobriu as regras do jogo. Admitamos, todavia, que ele persiste nas duas versões pelo «jogo» que persiste dele. Suponhamos então uma versão mais livre em que o especiosismo da finesse se dissolva. Por exemplo:

 

Sob o céu de cinza na tarde que escurece
ouço os carros que passam.

E em cada um vai a vida de quem vai
e eu com ele.
Mas todo o meu sonho se desdobra
entre quem passa, fechado em si, sendo ele
e os que (Interrompido.)

 

Vergílio Ferreira, 07/07/1977

Conta-Corrente (1977-1979) II. Lisboa, Bertrand Editora, 1990 (3.ª edição), pp. 66-69

 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

E tudo era possível, Ruy Belo

Voz: Nuno Lopes, Produções Fictícias, 2005



E TUDO ERA POSSÍVEL

 

Na minha juventude antes de ter saído

da casa de meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha lido

 

Chegava o mês de maio era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido

 

E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

 

Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer

 

Ruy Belo, Homem de Palavra(s), 1970

 

Redige um texto, com um mínimo de 70 e um máximo de 100 palavras, em que exponhas uma leitura do poema.

O teu texto deve incluir:

  • uma parte inicial, em que indiques o título do poema e o nome do seu autor e na qual identifiques o momento da vida que é recordado no poema;


  • uma parte de desenvolvimento, em que refiras a importância que o «eu» atribui ao momento que identificaste, justificando a tua interpretação com um elemento do texto e explicando a expressão «o poder duma criança» (verso 12);


  • uma parte final, em que identifiques um dos sentimentos dominantes no poema, relacionando esse sentimento com o título.

 


Cenário de resposta

Apresenta o texto objeto de leitura, indicando o título do poema e o nome do seu autor:

(a) «E tudo era possível».

(b) Ruy Belo.

Identifica o momento da vida recordado no poema:

(c) juventude / antes de ter saído da casa dos pais / momento no passado.

Refere a importância atribuída a esse momento:

(d) o «eu» considera esse momento da sua vida muito importante.

Justifica a interpretação com um dos elementos seguintes.

Por exemplo:

(e) «era tudo florido» (verso 5) / «havia para as coisas sempre uma saída» (verso 10) / «entre as coisas e mim havia vizinhança» (verso 13) / «tudo era possível era só querer» (verso 14).

Explica o significado da expressão.

Por exemplo:

(f) esta expressão sugere que, quando se é criança, parece não haver limites.

Identifica um dos sentimentos dominantes no poema.

Por exemplo:

(g) nostalgia / saudade (da juventude) / tristeza (pelo tempo que já passou) / perda do poder de sonhar.

OU

felicidade (pela recordação da infância).

Estabelece uma relação coerente entre o sentimento dominante identificado e o título do poema.

Por exemplo:

(h) evidencia a existência de uma relação de contraste entre o sentimento referido e o tempo evocado pelo título, em que «tudo era possível».

OU

evidencia a existência de uma relação de identificação entre o sentimento referido e a ideia de um poder sem limites, evocada pelo título.

 

Fonte: Teste Intermédio de Língua Portuguesa. 9.º Ano de Escolaridade. Decreto Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro. Portugal, GAVE, 2010



Ruy Belo (1933-1978)

Doutorado em Direito Canónico pela Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma, e licenciado em Filologia Românica e em Direito pela Universidade de Lisboa, lecionou no ensino secundário e foi leitor de Português na Universidade de Madrid. Foi diretor literário de uma editora; chefe de redação da revista Rumo; adjunto do Diretor do Serviço de Escolha de Livros do Ministério da Educação Nacional; bolseiro de investigação da Fundação Calouste Gulbenkian; tradutor de numerosos autores franceses e colaborador em várias publicações periódicas. Vítima de um edema pulmonar, a sua morte precoce, em 1978, colheu de surpresa uma série de escritores que lhe dedicam, no mesmo ano, uma Homenagem a Ruy Belo.

Iniciada em 1961, mas mantendo-se, na confluência da poesia dos anos 50, equidistante quer de um dogmatismo neorrealista quer do excesso surrealista, mas incorporando aquisições dessas duas formas de comunicação estética, para António Ramos Rosa, "A poesia de Ruy Belo é uma incessante reflexão sobre o tempo e a morte e a incerta identidade do sujeito que em vão procura o lugar originário onde se encontraria o ser na sua totalidade [...]. A incerteza e uma profunda frustração, muitas vezes impregnada de uma trágica ironia, dominam esta procura do lugar ontológico e da degradação existencial". (Incisões OblíquasLisboa, 1987, p. 66).

Abarcando a crítica irónica da realidade social e a denúncia das diversas problemáticas que equacionam o homem, desde a sua vivência espiritual e religiosa até ao envolvimento concreto e existencial, a poesia de Ruy Belo é uma "forma de intervenção, de compromisso, de luta por um mundo melhor [...] sem [...] o poeta pactuar com a demagogia, com o oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de beleza, construção de objetos tanto quanto possível belos em si mesmos" ("Nota do Autor" a País Possível, 1973).

 

Porto Editora – Ruy Belo na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2021-10-29]. Disponível em 

 

RUY BELO


 

Ruy Belo  | Perfil literário

 

Representações do contemporâneo

 

• O poeta apresenta uma sociedade conservadora e antiquada, profundamente hierarquizada, em que o regime político condiciona os cidadãos.

Ex.: “O portugal futuro”, “Uma vez que já tudo se perdeu”

 

• O poeta valoriza na sua obra a temática religiosa, criticando a Igreja católica por colaborar com o regime, denunciando a sua hipocrisia ao ignorar os problemas dos mais desfavorecidos.

Ex.: “Nós os vencidos do catolicismo”, “Versos do pobre católico”

 

• Muitos poemas apresentam uma reflexão sobre o real quotidiano, muitas vezes de cariz irónico.

Ex.: “Exercício”, “Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração”

 

Tradição literária

 

• Para além das ligações que este poeta estabelece com os movimentos literários do seu tempo e que se caracterizam pela inovação e subversão, a sua poesia reflete influências da tradição literária ocidental, nomeadamente do texto bíblico.

Ex.: “Elogio da amada”, “Cólofon ou epitáfio”

 

• O poeta recupera ainda a tradição clássica com referências e alusões a Homero e a Horácio.

Ex.: Toda a terra

 

• Na perspetiva pessimista da existência humana, na consciência da efemeridade da vida, verifica-se uma influência da poesia barroca.

Ex.: “Um dia não muito perto não muito longe”

 

• Cesário foi também um poeta que influenciou Ruy Belo, nomeadamente na representação do quotidiano e nas cenas da vida urbana.

Ex.: “Rua do sol de Sant’ana”

 

• Camilo Pessanha, a dimensão musical e a importância do símbolo surgem também em alguns poemas.

Ex.: “Morte ao meio-dia”

 

• A poesia de Fernando Pessoa apresenta ainda traços intertextuais com a poesia do poeta, nas referências à dor de pensar e no pendor abúlico de alguns poemas.

Ex.: “Ah, poder ser tu, sendo eu!” “Os estivadores”

 

• Retoma o soneto nem sempre rimado, numa variante menos rígida que a forma tradicional.

Ex.: “E tudo era possível”

Questões-tipo de exame

Figurações do Poeta

 

• O poeta é alguém que é cidadão e que intervém na sociedade, através da sua poesia.

Ex.: “Portugal sacro-profano”, “josé o homem dos sonhos”

 

• O poeta é aquele que evoca a infância como uma forma de reposição da harmonia.

Ex.: “E tudo era possível”

 

• O poeta é alguém que sonha um país e um mundo diferentes.

Ex.: “A mão no arado”, “Peregrino e hóspede sobre a terra”

 

Arte poética

 

• O símbolo ganha grande importância na poesia de Ruy Belo: a “criança” é o futuro, a “casa” é o país, a família.

Ex.: “Oh as casas as casas as casas”, “Génese e desenvolvimento do poema”

 

• A sua poesia valoriza a musicalidade das palavras, abdicando dos vocábulos do

quotidiano.

Ex.: “O Valor do Vento”, “Esta rua é alegre”

 

• A pontuação é muitas vezes subversiva, libertando a frase das regras gramaticais.

Ex.: “Autorretrato”, “Cólofon ou epitáfio”

 

Fonte: Preparar o Exame Nacional - Português 12º ano, Fernanda Bela Delindro e Maria João Pereira. Areal Editores, agosto de 2021. ISBN: 978-989-767-729-8. Disponível em: https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=22081888

 


CARREIRO, José. “E tudo era possível, Ruy Belo”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/e-tudo-era-possivel-ruy-belo.html