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sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Os grandes lagos da noite, José Manuel de Vasconcelos (Prémio PEN Clube – Poesia 2022)

José Manuel de Vasconcelos



CARPE DIEM


Depois será já tarde

não faltarão rosas secas no cesto dos papéis

recusaremos o perdão pelas faltas

tanto tempo assumidas

O vulcão dos dias não passará de um depósito

de lava petrificada

cada linha do corpo será um requiem surdo

e a moral fado barato de costas para o mundo

A vida é um aluguer de curta duração

licença apenas para atravessar a porta

sem direito a retorno

Não precisaremos sequer de mais luz

quem veio viu e entregou-se ao vento

esqueceu todas as chagas

mas a dor não passou

 

*** 


TRAVESSIA


Da janela vejo a lagoa incerta

por entre a cortina que o vento movimenta

Ao fim da tarde declina a nitidez

os contornos rendem-se

das árvores sopra

um agitado tumulto e o fumo frio

penetra as lâmpadas que meditam no escuro

a melancolia sustenta a trama emaranhada

de figuras ausentes nos estalidos

que a luz em fuga propicia

Os anos dançam à volta da casa

a ampulheta é um olho enorme

que não dorme

tudo se liga no laço da noite

as raparigas na bruma matinal

chamam já dos seus corpos de mulher

com a veemência dos pinheiros velhos

Procuro saber o que se passa na tarantela

dos meus livros, armo as suas velas

para a viagem noturna

que por algumas horas recobrará os sentidos

 

José Manuel de Vasconcelos, Os grandes lagos da noite, Porto, Ed. Húmus, 2021

https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html


 


PEN Clube – Poesia 2022

Reflexão do poeta José Manuel de Vasconcelos galardoado com o Prémio do PEN Clube – Poesia 2022 atribuído pela escrita do livro Os Grandes Lagos da Noite.

Auditório Carlos Paredes, 25 de outubro de 2022.

 

A circunstância presente de entrega de um prémio de poesia, parece-me ser propícia a algumas reflexões, necessariamente breves, sobre o que ainda pode significar esta forma de expressão nos tempos que vivemos. Prémios como o que hoje é entregue não podem ser vistos apenas como galardões a um determinado poeta, mas sobretudo como algo que visa sublinhar a importância da poesia em geral, pensar a sua atualidade, o seu papel e oportunidade, chamando a atenção para o facto de que, apesar de tudo, ela ainda vive e tem o seu valor.

Não sei qual a origem da estafada afirmação de que Portugal é um país de poetas, expressão que se poderia aplicar a tantos outros países e que é, portanto, destituída de sentido, e até mesmo algo ridícula pela empáfia que denota, podendo com verdade ser substituída por esta outra, infelizmente bastante atual: Portugal é um país sem leitores de poesia. Exagero, claro, mas as tiragens dos livros de poesia que se publicam atualmente e os mapas finais de vendas, com raríssimas exceções, atestam bem que os poetas escrevem e publicam em grande medida uns para os outros. Não que isso surpreenda alguém que conheça a realidade em que vivemos. Não que valha muito a pena lamentar essa pobreza, num país que é pobre em tantas outras coisas, particularmente nas que respeitam à cultura. O que é preocupante, não é só o facto de os livros de poesia serem geralmente tirados a duzentos e trezentos exemplares, dos quais muitos ficam a amarelecer nos armazéns ou são vendidos pelos liquidadores das bancas de rua (e esse ainda não é o pior dos seus destinos, pois apesar de tudo são comprados e eventualmente lidos). O que mais inquieta é o que esse alheamento da poesia, e o enorme défice de leitura em geral, significam no que respeita à falta de educação das sensibilidades, nesta paisagem social desvairada que nos asfixia cada vez mais. Os poucos que leem preferem os fugazes best-sellers de ficção, os livros práticos e de autoajuda e as volumosas (e geralmente atentatórias da inteligência crítica) biografias de alguns mediatizados do momento. As sensibilidades embotam, o que é agravado pela avalanche de informação manipulada, desenquadrada, caótica, e pela pragmatização dos comportamentos e materialização massiva das consciências, constantemente dirigidas no sentido da dispersão crescente e, consequentemente, lesando a capacidade de concentração indispensável à reflexão profunda. O primarismo da sensibilidade ou o défice patente de uma sensibilidade educada, associado ao escasso sentido crítico e à falta de autonomia do pensar, estão na base da incapacidade reflexiva dominante, não sendo as únicas causas, têm um papel determinante no desinteresse não só pela poesia, mas pela cultura humanística em geral. Veja-se como as ciências humanas têm passado para segundo plano no universo do ensino, e como disciplinas como a Filosofia, enquanto exercício fundamental para a formação integral dos indivíduos, perdeu a importância que tinha, numa sociedade em que as escolas visam predominantemente preparar colaboradores tecnicistas para as empresas, ou seja, gerar muito e rápido dinheiro para os grandes grupos económicos. Penso que a poesia não morrerá, mas é cada vez mais um pequeno reduto, um refúgio de poucos, um espaço de silêncio para permitir o pensamento independente, estimular a sensibilidade e fugir ao ruído e à infocracia dominantes.

Mas afinal para quem escrevem os poetas? Quem os lê e como são lidos? Eugenio Montale, um dos poetas de cuja obra me sinto muito próximo, sem que isso signifique qualquer espécie de influência direta, num breve texto publicado em 1971, intitulado La Poesia non Esiste, afirmava que a poesia das várias épocas se faz com a colaboração dos contemporâneos e que, por isso, uma das características mais notórias na época em que surge é a sua falta de estabilidade. Creio que tem plena razão: a estabilidade, sempre relativa de resto, só o tempo a permite. Lemos Homero, Dante ou Camões e, independentemente dos problemas de interpretação e dos recessos mais ou menos obscuros com que nos deparamos nas suas obras, sentimos estar perante um edifício firme, uma mole indestrutível, o «monumentum aere perennius» que Horácio se gabava de ter erigido. Mas não sabemos exatamente como eram lidas e sentidas nas suas épocas, tendo de nos limitar às suas apreciações atuais ou, pelo menos, àquelas que embora pretéritas, ainda estamos em condições de compreender. A poesia que hoje escrevemos talvez seja, na sua imediatez, apenas nossa e tocará, quando muito, alguns dos nossos contemporâneos. O tempo apressado que vivemos, com o permanente surgimento do novo e o rápido declínio de tudo, só nos pode deixar inseguros e céticos, por sabermos que as nossas raízes deixaram de estar na terra, absorvendo os bons e velhos veios de água subterrâneos que outros nos deixaram, e passaram a ir com um vento forte, cego e invisível, sem sabemos para onde.

A poesia está assim, hoje, sob o domínio da incerteza, e não falo agora do destino imediato, comercial, dos livros que vamos produzindo, e que já vimos ser muito limitado. Falo dos próprios conteúdos dos poemas, que são frequentemente exercícios de desfocagem relativamente àquilo que vulgarmente entendemos por realidade e que não podem almejar a estabilidade dos grandes clássicos que surgiram num tempo demorado, refletindo a espessura densa desse tempo. Escrevemos poesia porque não é possível comunicar com a clareza de outras formas de expressão. Na escrita poética sobreleva o impulso da intuição, ela surge de um vórtice de memória, desejo, sentimento e razão cambaleante na ânsia de nos aproximarmos do que é inapreensível. A poesia é antes de tudo um estado de espírito, o exercício demorado e intenso de quem entra num quarto sem luz e procura ver na escuridão. E não estou a referir-me a qualquer espécie de hermetismo (sobretudo o daqueles que não têm de facto nada para dizer e apenas jogam de modo mais ou menos aleatório com as palavras), nem vejo a expressão poética como a respiração das esfinges. Antes sinto na poesia essa veemência irremediável que domina a vida humana, e que é, a um tempo, mescla altiva e cabisbaixa de sonho e amargura. Só podemos escrever o que o tempo em que vivemos nos permite, nada sabemos do que virá depois, como desconhecemos verdadeiramente o tempo que há muito nos antecedeu, tendo dele uma visão de certo modo cristalizada. Por isso, poderemos, na melhor das hipóteses, esperar que alguns dos contemporâneos (poucos seguramente) lerão o que escrevemos, e sintam alguma afinidade com o que leram, mas a maioria dos nossos livros não tenhamos ilusões, a história da literatura não deixa dúvidas a esse respeito constituirá no futuro a Pompeia da poesia

Perdoem-me estas «palavras cínicas» expressão que ressuscita o título de um livro que, muito a propósito, foi famoso na época mas que hoje ninguém lê , perdoem-mas pelo seu visceral pessimismo, pela descrença de que padecem descrença que este tempo de faladrar desabrido nos impõe e peço desculpa por dizê-las, sobretudo quando estou a receber um prémio pela Poesia que, na circunstância é minha, mas que podia ser atribuído a muitos outros poetas que lemos e admiramos. Manifesto, naturalmente, o meu reconhecimento pela atribuição de um prémio de grande prestígio que, repito, mais do que para um simples livro, chama a atenção para a Poesia. Mas não esqueçamos que ela, embora sendo algo de profundamente necessário para quem a escreve e para alguns que a leem, sendo razão de persistência para muitos de nós, que não queremos e não a podemos dispensar, não deixa de ser paradoxalmente, «um voo cego a nada» como dizia da própria vida, um admirável poeta, também ele hoje muito pouco lido.

Muito obrigado!

José Manuel de Vasconcelos


https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html, consultado em 2022-10-28


 


“Os grandes lagos da noite, José Manuel de Vasconcelos (Prémio PEN Clube – Poesia 2022)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/os-grandes-lagos-da-noite-jose-manuel.html



quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

 
Ana Luísa Amaral diz o seu "Soneto científico a fingir".



SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35.

 

 

Num poema chamado "Soneto Científico a Fingir" (E Muitos os Caminhos, p. 35), a poeta finge um soneto, que não é, e ostenta a poesia como mentira em relação ao eu que se inscreve no texto: "não consigo falar-me como devo,/ ou seja, na mentira que é o verso/ ou seja, na mentira do que mostro". Trata-se, nesse "Soneto Científico a Fingir", de glosar o eterno e velho tema do amor, e a ciência que o poeta propõe é a da mentira, do desvio em relação ao centro: «dar o mote ao amor, glosar o tema/ e depois desviar. Isso é ciência!» Descentrar, mais uma vez, mentindo e com a mentira inventar - «O melhor rouxinol:/ o inventado», diz-se noutro poema a fingir-se ode, intitulado "Ao Rouxinol: a Ode que não é" (E Muitos os Caminhos, p. 49).

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001.

[Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].




 

Neste poema – um “soneto coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza de cinco quadras que multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”? (MARTELO) – Ana Luísa Amaral expõe algumas características que estarão presentes em toda a sua obra: o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente em sua poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia petrarquiana – retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro de poemas). No entanto, este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um soneto “científico” – que tem ciência. Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para a execução de uma arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe ao amor e que o explica como reação química?

Obviamente que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a fingir” (grifo nosso) não pode passar despercebida a “poética do fingimento” de Fernando Pessoa, a poética que tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no título do poema, nos deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e Camões) e a herança do maior poeta modernista português: Pessoa. E essa é mais uma característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a possibilidade de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e mesmo com a poesia contemporânea portuguesa.

Portanto, Ana Luísa sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas modernistas, explorar os temas e as formas clássicas – abandonados pelos poetas modernos com seus versos e linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas clássicas não deixa de ser, de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral ao retornar ao uso das formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado pela poesia modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral nos apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e modernas: observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma forma clássica, há uma continuidade, na não utilização de rimas, com o modernismo: “Só não vejo vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou melhor, na não utilização das rimas como forma fixa, pois também este não seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E é exatamente neste ponto de seu “Soneto científico a fingir”, que a poeta trará a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.

Na tradição da poesia modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luísa Amaral “sabe” que deve apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve “falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais, dizia eu, / não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é possível perceber que Ana Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é rígida nem na forma de seguir a tradição, nem na forma de romper com ela. Melhor dizendo: a poeta dialogará com as tradições, subvertendo as regras na sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve um soneto, mas é um soneto “coxo” e com linguagem coloquial.

Não se trata de um soneto de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, mas de um poema de vinte versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza de linguagem elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma linguagem irónica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última estrofe do poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: / dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!”

Ana Luísa Amaral estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a tradição: escrever sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e depois ter a sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de imitatio, a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição se desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja preciso escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o soneto.

Voltemos outra vez ao verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar apresentado aqui: sua poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o “poema de pé quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo fato de, por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e feminilidade, não é possível manter-se estritamente na tradição.

 

Rhea Sílvia Willmer, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014

 


***

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CARREIRO, José. “Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de Poesia, 10-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/soneto-cientifico-fingir-ana-luisa.html


terça-feira, 5 de julho de 2022

Tinha deixado a torpe arte dos versos, Gastão Cruz




Tinha deixado a torpe arte dos versos

e de novo procuro esse exercício

de soluços

 

Devo agora rever a noite que te oculta

como pude esquecer que de tal modo

teria de exprimir

 

tudo o que já esquecera e sopra sobre

mim

como numa planície o crepúsculo

 

Tinha esquecido a arte dos tercetos

e toda a

outra

mas fechaste-te nela e eu descubro

no seu esse veneno esse discurso

 

Devo pois ver de novo como muda

como os sinais da voz a noite que perdura

tu deitas-te eu ensino à minha vida

esse extinto exercício

 

Gastão Cruz, Teoria da Fala. Coleção «Cadernos de Poesia» nº 24.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972

 

Síntese esquemática da leitura do poema “Tinha deixado a torpe arte dos versos”



Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre os poemas “Escrever”, de Irene Lisboa, e “Tinha deixado a torpe arte dos versos”, de Gastão Cruz, 2021-05-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano, inicia ao minuto 47’40’’

 

Questionário sobre a leitura do poema “Tinha deixado a torpe arte dos versos”

 

1. Distingue os dois momentos temporais referidos no poema.

2. Indica o que mudou de um momento para o outro.

3. Transcreve uma comparação presente no poema.

3.1. Explica a que se refere essa comparação.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 54 de Português – 9.º ano, sobre os poemas “Escrever”, de Irene Lisboa, e “Tinha deixado a torpe arte dos versos”, de Gastão Cruz, 2021-05-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7822/e546369/portugues-9-ano, inicia ao minuto 47’40’’

 

 

   Gastão Cruz  (Faro, 1941 - Lisboa, 2022)

 

O poeta e crítico literário Gastão Cruz, fotografado em 2015© Gerardo Santos / Global Imagens


 

Gastão Santana Franco da Cruz nasceu no dia 20 de Julho de 1941, no número 20 da Rua de Portugal, em Faro. Com perto de 20 anos publica o seu primeiro livro, A Morte Percutiva (Poesia 61). Após cerca de vinte livros de poesia, revisitaria a infância e a (já desaparecida) casa onde nasceu, numa obra a que deu precisamente o nome de Rua de Portugal (2002), e pela qual foi distinguido com o Grande Prémio de Poesia da APE.

A poesia acompanha-o desde muito novo. O pai recitava, em casa ouvia-se ópera, e o lirismo foi despontando, levando-o a iniciar-se muito cedo na crítica de poesia, em despiques por escrito com um amigo de infância. Pela mesma altura em que rumou a Lisboa para cursar Filologia Germânica (1958), na Faculdade de Letras – onde David Mourão- Ferreira foi seu professor –, começou a colaborar com poemas e artigos sobre poesia em diversos jornais e revistas, entre os quais os Cadernos do Meio-Dia, publicados em Faro, sob a direcção de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito.

À data de saída das cinco plaquettes que constituíram a publicação colectiva Poesia 61 (que reuniu Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta), Gastão Cruz era o único do grupo inédito em livro. Poesia 61, uma das principais contribuições para a renovação da linguagem poética portuguesa na década de 60, foi já várias vezes descrita pelo próprio Gastão Cruz como, «em grande parte, uma reunião de conveniência editorial».

Ainda nos tempos de universidade, e após ter sido preso no auge das greves académicas de 62, o autor foi um dos organizadores da Antologia de Poesia Universitária (1964), dando a conhecer poemas de Manuel Alegre, Eduardo Prado Coelho, António Torrado, José Carlos Vasconcelos, Luísa Ducla Soares ou Boaventura Sousa Santos, entre outros. Este importante papel de Gastão Cruz na divulgação, promoção e crítica da poesia e da literatura em geral, bem como do teatro e da música, prolonga-se até hoje, quer colaborando com textos na imprensa (muitos deles reunidos no livro A Poesia Portuguesa Hoje) e na organização de antologias, quer na direcção de recitais, já desde os tempos da Faculdade. Actualmente, é um dos directores da Fundação Luís Miguel Nava e da revista Relâmpago, por ela editada.

Da amizade com Fiama, com quem foi casado, nasceu a paixão pelo teatro. Estiveram ambos na génese do Grupo Teatro Hoje, no início dos anos 70, e do qual ele foi director desde 1991 até à sua extinção, em 1994. Ali encenou peças de Crommelynck, Strindberg, Camus, Tchekov ou uma adaptação sua de Uma Abelha na Chuva (1977), de Carlos de Oliveira. Algumas delas foram, pela primeira vez, traduzidas para português pelo poeta.

O percurso literário de Gastão Cruz inclui a tradução de nomes como William Blake, Jean Cocteau, Jude Stéfan e Shakespeare. As Doze Canções de Blake que traduziu fazem, aliás, parte da sua bibliografia poética, porque «só vale a pena traduzir poesia, se da tradução resultar um poema português de um poeta português».

É professor do Ensino Secundário desde 1963 e, entre 1980 e 1986, exerceu as funções de Leitor de Português na Universidade de Londres (King's College), onde além de Língua Portuguesa, leccionou cadeiras de Poesia, Drama e Literatura Portuguesa.

«Chama-se Escassez um grupo de quinze poemas que publiquei em 1967. Poderia ser esse o título de toda a minha poesia, que é antiexplicativa, antidescritiva», explicou o autor em 1972, voltando frequentemente à questão que os críticos lhe lançam desde essa altura. «Penso que tenho caminhado no sentido de tornar a minha poesia mais legível, pela necessidade de me libertar da classificação de hermético ou difícil», disse mais recentemente.

Esta é uma poesia marcada por forte intensificação do valor da palavra e grande precisão formal, mas sempre num registo extremamente contido, nítido e rigoroso («a procura do peso certo para cada palavra»). Frequentemente, a reflexão sobre a poesia e a linguagem, que caracteriza os seus textos teóricos, é transportada para o interior do próprio poema. Gastão Cruz revela-se um grande conhecedor da tradição poética portuguesa, existindo nos seus poemas uma profunda intertextualidade, tanto relativa a poetas portugueses como estrangeiros, principalmente de língua inglesa.

As quatro recolhas de toda a sua poesia e a antologia que até à data organizou (1974, 1983, 1990/1992, 1999), acabam por corresponder ao encerrar de determinadas fases temáticas. A morte e o corpo – Manuel Gusmão fala de uma tensão permanente entre Eros e Thanatos – são duas das metáforas mais usadas pelo poeta, correspondendo a significados tão diferentes quanto a esperança, o desespero, o amor e o sexo, o caos, o próprio País, a opressão ou a fugacidade.

 

Centro de Documentação de Autores Portugueses, 06/2004. Biografia disponível em: http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=10151

 

   Poderá também gostar de ler:

 

 

 



CARREIRO, José. “Tinha deixado a torpe arte dos versos, Gastão Cruz”. Portugal, Folha de Poesia, 05-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/tinha-deixado-torpe-arte-dos-versos.html



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito Poesia e Resistência (Portugal) realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para o ILCML


Resposta de Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937):


Quê?

um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.

vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?

Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.

E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.

E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.

Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.

Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.


 Respondem os poetas (de Portugal):

https://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/




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A heterogeneidade das práticas discursivas a que damos o nome de poesia reflete-se em diferentes conceitos de resistência, tão variáveis quanto as poéticas que lhes estão associadas. “Não há opressão maior e mais infame que a da língua”, escreveu Alberto Pimenta, e a poesia desenvolve mecanismos de resistência que assentam na consciencialização deste facto. Mas, por outro lado, talvez se tenha vindo a criar alguma resistência aos usos que a poesia de tradição moderna reivindicou para “as palavras da tribo”.

Reportando-se ao mundo contemporâneo, Pimenta constatava recentemente: “nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem”. Porquê “ainda bem”? Por que precisa a poesia deste estar à margem? E se não faz falta (?), por que razão continua? As “operações” poéticas de Alberto Pimenta e os diálogos que estas mantêm (ou recusam) com outras poéticas portuguesas contemporâneas serão o ponto de partida para algumas possíveis respostas.

 

Ler mais em: “Tensões e Implicações entre Poesia e Resistência na Contemporaneidade Portuguesa”, Rosa Maria Martelo. In: elyra 2, 12/2013: 37-53 – ISSN 2182-8954. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/25/28

 



CARREIRO, José. “um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/um-ambar-na-cova-da-mao-alberto-pimenta.html



domingo, 26 de setembro de 2021

Crítica literária


Petição de princípio

 

I - A crítica é um trabalho de violência: coloca as obras diante daquilo que elas não são, impondo-lhes um critério que lhes é exterior.

 

II - A crítica é comprometida: responde por uma imagem de mundo e de literatura. Nesta estrita medida, a crítica é sempre programática — confronta aquilo que as obras são com aquilo que elas poderiam ser.

 

III - A crítica é o lugar de uma experiência tanto afectiva quanto racional. O distanciamento e a proximidade são, na mesma proporção, a sua condição.

 

I - A crítica é um produto do risco. A possibilidade de erro é directamente proporcional ao risco assumido.

 

V - A crítica é um trabalho contra o mundo, contra a literatura. Se esta é um movimento de produção do mundo através da modelação de representações, a crítica é um trabalho de subtracção do mundo a si mesmo.

 

VI - A crítica é um exercício sobre a linguagem. Na literatura, como em todas as artes, o mundo tem tamanho da linguagem na qual se produz. O sentido de uma representação é função da linguagem com que se realiza. As suas potenciais riqueza experiencial, densidade semântica, e valor, estão-lhe indexados.

 

VII - A crítica não é um instrumento de mediação: é parte do processo de constituição da coisa em representação.

 

VIII - Enquanto instituição, a crítica é sempre supletiva. Enquanto olhar interior à produção e à recepção, é constituinte.

 

Helder Gomes Cancela, “Petição de princípio”, blogue Contra Mundum Crítica, 2012-09-18

 



 

Crítica literária

 

Por "crítica literária" pode-se entender a produção de um discurso acerca de um texto literário individual ou da obra global de um autor, independentemente da situação de comunicação que desencadeia e/ou particulariza esse discurso. Este entendimento da noção de "crítica literária" permite conjugar quatro vectores fundamentais. Em primeiro lugar, e na linha construtivista de autores como René Wellek (veja-se sobretudo R. Wellek, 1963 e 1981) e J. W. Atkins (veja-se Atkins 1934), salvaguarda a possibilidade de se identificar uma narrativa interna da crítica literária que, desde a Antiguidade até aos nossos dias, se orientou para a visibilidade relevante do crítico enquanto protagonista de um comentário acerca de textos considerados artísticos. Em segundo lugar, e na linha de autores como Northrop Frye (veja-se sobretudo N. Frye, 1970), aquele entendimento não desvincula a situação de ensino da literatura do exercício da crítica literária. Em terceiro lugar, afasta a noção de crítica literária da disputa estéril (desconstrucionista vs. Formalista) acerca do seu estatuto de "arte" ou de "ciência". Em quarto lugar, permite contemplar realidades no exercício moderno da crítica literária como as que decorrem do protagonismo assumido pelo crítico nos meios de comunicação, e que, no essencial, assentam em convicções como a de Albert Thibaudet quando assegurava que «a crítica tal como a conhecemos e praticamos é um produto do século XIX» (ª Thibaudet, 1930: 7).

A crítica literária tem um papel relevante na dinâmica interna de qualquer cultura nacional, na medida em que é por ela que se articula o diálogo entre as propriedades das obras e as exigências literárias de um determinado período. É através das apreciações críticas que melhor se pode discernir os dispositivos de recepção e as configurações de valor estético em jogo numa determinada situação histórico-literária. Esta irrecusável historicidade da crítica torna-a um dos instrumentos mais vivos de que se pode dispor para compreender as tensões actuantes num tempo político, num lugar social e numa tradição cultural.

Dependente como está dos quadros de referência, de conhecimento e de experiência do próprio crítico, a crítica literária está condenada à interpretação e, consequentemente, nunca pode ser neutra nem inocente. Mesmo as pretensas virtudes de uma crítica académica fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por uma linguagem universalizante e objectiva estão hoje em dia despidas de credibilidade, tanto teórica como prática. Porque invariavelmente se confunde o que é científico com algo que é meramente tecnológico, misturando nesse processo rigor com tecnicidade, essas virtudes são meras ilusões que só encontram eco numa outra piedosa ilusão: a de uma epistemologia inocente da investigação universitária.

Porque não é inocente o seu olhar, o crítico literário, seja qual for o plano institucional em que se coloque (académico ou jornalístico) relaciona-se com a literatura, sobretudo com aquela que é sua contemporânea, através de um certo grau de cegueira, como bem observou Paul de Man (P. de Man, 1971), ou através de uma espécie de cegueira interessada que leva o crítico a unicamente ver aquilo que quer ou pode ver. No domínio da crítica literária, faz plenamente sentido a afirmação de M. Merlau-Ponty de que "só encontramos nos textos aquilo que colocamos neles" (1962: viii). Esta é uma realidade inexorável, embora de aceitação difícil quando somos (e nos sentimos) actores culturais coetâneos de uma qualquer prática crítica. No entanto, é ela que agencia a heterogeneidade litigante do conhecimento, e com ela o pulsar agonístico por que uma cultura nacional vive internamente cada um dos seus tempos próprios numa intensa conversação entre diferentes comunidades interpretativas, recorrendo ao conceito de Stanley Fish (S. Fish, 1980), isto é, entre diferentes crenças, diferentes interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos; em suma, entre diferentes feixes de estratégias e de normas culturalmente institucionalizadas que coexistem numa relação reciprocamente definidora.

Ao actuar em sinédoque no interior de um quadro literário nacional, o crítico literário torna-se o protagonista mais visível de uma comunidade interpretativa que nele se reconhece por oposição a outros olhares (outras sinédoques) de outros críticos (outras comunidades). Neste sentido, os discursos de todos esses críticos, quando vistos na sua relação contraditória, tornam-se uma espécie de erros necessários que, por si mesmos, não traçam o perfil de uma época. Contudo, na medida em que não emergem de indivíduos isolados, embora por eles se revelem, mas de um ponto de vista público e convencional, esses erros contribuem decididamente para a configuração do perfil de verdade de uma época, pois, na sua contingência, representam (reforçam) horizontes intersubjectivos de crenças e de valores actuantes no seio de uma sociedade. É por isso que os conflitos mais ou menos apaixonados que ciclicamente surgem no seio da comunidade literária (portuguesa ou qualquer outra) ultrapassam em muito as questões consideradas especificamente artísticas, incorporando no debate, de um modo mais ou menos explícito, argumentos (isto é, crenças e valores) de carácter ideológico, político, filosófico ou religioso.

A importância de que a literatura ainda se reveste nos nossos dias decorre do facto de que ela, através da sua capacidade intrínseca de representação, continua a conter em si as possibilidades de um conhecimento insubstituível do homem e do mundo. Nada existe no mundo que a literatura não possa exprimir. Por outro lado, é ainda através da literatura que melhor podemos ter acesso à experiência de vida de uma época ou à interioridade do seu tempo social e cultural.

Esta dimensão fascinante do literário impõe a prioridade inescapável da vinculação do texto a uma realidade que, ao lhe preexistir, estabelece as condições de inteligibilidade solidária através da qual o texto literário oferece o seu dizer no seio de uma cultura. E é exactamente por essa mesma dimensão que o gesto crítico também ganha relevo intelectual e significado cultural. Ao se constituir inevitavelmente em interpretação de um texto literário, a crítica outra coisa não faz que reconhecer a construção e a permanência da literatura como interpretação (interpelação) de estratos do conflito humano nela representado. Cada uma nutre-se da interpretação da outra num diálogo intelectual nem sempre pacífico, mas inexoravelmente dinâmico e activo, ou tão dinâmico e tão activo quanto as circunstâncias culturais e históricas o permitem ou exigem. Em suma, pode-se afirmar que é pelo cruzamento da literatura com a crítica, numa representatividade mútua feita de encontros e desencontros com a verdade de cada uma delas, que a vivacidade do rosto de uma época se torna mais nítida nos seus contornos culturais.

 

{bibliografia}

J. W. Atkins: Literary Criticism in Antiquity (2 vols.), London, 1934; Maurice Merlau-Ponty: Phenomenology of Perception, London, 1962; Northrop Frye: The Stubborn Structure, London, 1970; Paul de Man: Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, 1971; René Wellek: (a) "The Term and Concept of Literary Criticism", in Concepts of Criticism, New Haven, 1963; (b) "Literary Criticism –A Historical Perspective", in What is Criticism, Paul Hernadi (org.), Bloomington, 1981; Stanley Fish: Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge (Mass.), 1980.

 

“Crítica Literária”, verbete de Manuel Frias Martins,

in: E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, 2009-12-30.

Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/critica-literaria/

 

Manuel Frias Martins (ionline.sapo.pt 2021-12-02)



Manuel Frias Martins.
"Os académicos afastaram os leitores da crítica literária"

 

Foi um dos fundadores desse grupo irrepetível que foram os Quatro Elementos Editores. Doutorado em Teoria da Literatura, é ensaísta, professor (aposentado) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Nasceu em 1949, não para escrever poemas e romances – e faz questão de o repetir a cada livro publicado – mas para marcar o campo dos estudos literários. Livros como Herberto Helder, um Silêncio de Bronze (1983), Matéria Negra (1993), ou A Espiritualidade Clandestina de José Saramago (2014) constituem pontos altos do nosso ensaísmo. Manuel Frias Martins define-se como um homem sem grandes convencimentos, com mais dúvidas que certezas.

 

O título do seu mais recente livro de ensaios, “A lágrima de Ulisses”, assume-se como a metáfora d' “O regresso da percepção do humano como princípio estruturante da literatura”. A desdita do herói de Homero parece uma tremenda conta de somar. As parcelas, essas, há-de Ulisses contá-las, tim-tim por tim-tim, no país dos Feaces. Faltava ainda a desgraça do seu fiel amigo, Argos, o cão que o reconhece após vinte arrastados anos de ausência, que o faz soltar uma lágrima que logo procura esconder. É neste lance da Odisseia que o título deste volume de ensaios se inspirou.

Além da boa forma, no caso ensaística, Frias Martins partilha com Ulisses o espírito aberto às curiosidades e às mutações do mundo, a coragem, que o leva a transformar nomes grandes da nossa literatura em sujeitos de culpa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura, mas também a arte de prender pela palavra. O modo múltiplo como o consegue vai ao encontro do que a tradicional cautela universitária tem por costume desaconselhar – a  intensidade apaixonada da razão, comunicada com a naturalidade de um estilo fluente, o impacto de boas ideias, executadas sem  infestações de notas de rodapé, mas também uma certa desformalização da dicção, que toma por vezes direcções coloquiais sem nunca perder a elegância da formulação. Junte-se ainda uma bolsa de dúvidas, sem as quais não é possível avançar. “A Lágrima de Ulisses – Regimes da Cultura Literária” passa ao largo das velhas certezas académicas.¶¶

 

Os seus começos literários remontam aos Quatro Elementos Editores. Como é que surgiu este grupo?

Os meus começos, como crítico literário, os começos do Mário de Carvalho, que tinha regressado há pouco da Suécia, os do António Guerreiro, do Paulo Varela Gomes. Mas o pai de toda esta gente – estava também o Manuel Gusmão – foi o Fernando Guerreiro, a quem eu chamei o protector dos sem abrigo da cultura, e que gastou boa parte do dinheiro da sua herança na edição das plaquetes e revistas que publicámos. Era uma editora completamente contrafeita.

 

Mas como é que tudo começou?

Estávamos em 1978/79 e tudo se passa em Lisboa. Havia um conjunto de assistentes da Faculdade de Letras, mas também gente que vinha do Porto, como o José Emílio Nelson, o Paulo Tunhas. Íamo-nos conhecendo uns aos outros graças a essa espécie de abrigo cultural gerado pelo Fernando Guerreiro, em casa de quem começámos a reunir. Queríamos transformar o mundo e a literatura. Trazíamos para as reuniões textos que avaliávamos e comentávamos. Em 1980, começámos a publicar a revistar “Mar”, onde o Mário de Carvalho publica o primeiro conto, “Expedição ao interior do navio”. Lembro-me de ter dito: “este tipo já é escritor”, porque aquilo que identificamos como sendo o traço literário, estava lá. No ano seguinte, publicámos, no mesmo quadro, uma outra revista temática, a “Peste”. O único texto criativo que escrevi em toda a minha vida está na “Peste”. Entretanto, o Mário de Carvalho publica os “Contos da Sétima Esfera”. Eu já tinha começado a escrever crítica literária no Diário, que tinha um suplemento cultural muito interessante. Em 1983, publicamos outra revista, o Eldourado. Pelo meio, o Fernando Guerreiro ia publicando plaquetes  - com Francis Bacon, com coisas francesas que ele traduzia. Em 1985, quando saiu o último número da revista “Ruínas”, cujo lançamento, ou espécie de lançamento, foi feito nas Ruínas do Carmo, o Mário de Carvalho escreveu o “Tanto Pessoa já enjoa”, uma espécie de manifesto, quando se assinalava o cinquentenário da morte do Pessoa.

 

Em todos os seus livros, na nota biográfica, vem dito que “não escreve poesia nem romances”. É uma afirmação ou uma demarcação?

Sempre fiquei um tanto de pé atrás em relação aos autores que se desmultiplicam em géneros. Mas não é só por isso. Todos nós, numa altura qualquer da nossa vida, sobretudo na juventude, tentamos fazer poesia ou escrever uma narrativa, e por vezes isso não resulta, porque o nosso pendor crítico, a nossa inclinação vai mais para a compreensão do literário, aquilo que vai ser ou a teoria ou o exercício da crítica. Quando temos esta fundamentação em nós próprios, de que a compreensão é mais importante que a produção de um poema ou de um romance, então isto torna-se sufocante quando tentamos escrevê-los, ficamos hiper-críticos. Desconfio muito dos autores que se desdobram em poesia, romance, ensaio. Parece-me que dificilmente podem compatibilizar tudo isto. Tomando-me como exemplo, acho que a nossa disposição analítica pode tornar-se tão sufocante que o poema só surge de uma maneira quase artificial, a narrativa só acontece de uma maneira forçada. Há quem idealmente possa compatibilizar tudo isto.  Eu, como não consegui, entreguei-me ao ensaio e é nele que faço a minha poesia e os meus romances.

 

Está a afirmar, portanto, que o bom ensaio não pode prescindir do elemento literário?

¶Eu defendo que o ensaio é um género literário, vive muito das imagens, das metáforas, da linguagem. Está associado à poesia mas é também a construção de uma narrativa. O ensaio, em certa medida, conta uma história, nem que seja a história de uma ideia. O ensaio não anda muito longe da congeminação interpretativa, que é uma possibilidade de criar um mundo à volta de um determinado texto. Outro crítico cria outro mundo. Neste sentido, o próprio ensaísta vive um pouco no universo da ficção. Há interpretações diferentes dos textos, não só pela dependência que essa interpretação tem do sujeito que observa, mas também pelo universo criado,  que pode não ser assim, mas poderia ser. Este poder ser é o elemento que estimula a ficção.

 

Parece-lhe que muito do que hoje se publica como ensaio é interessante ou, pelo contrário, poderia ser facilmente atirado para as margens da irrelevância?

Tal como há maus poetas – porque lêem pouco os outros poetas –, assim há maus ensaístas. Um ensaísta tem de ler outros ensaístas para compreender a estrutura mental de aproximação do seu objecto. Mas não chega: é necessário haver um sedimento de linguagem e de relação da linguagem com as ideias, tem que dominar a linguagem e isso só acontece lendo poetas, romancistas e ensaístas.  Um ensaísta, mais ainda que um poeta ou um romancista, tem de ser um leitor contínuo,  um leitor compulsivo que apreende, absorve registos linguísticos, modos de relacionamento com a linguagem que associamos ao poeta ou ao romancista, mas que o ensaísta também tem dentro de si, em termos de enciclopédia privada. Os melhores ensaístas não são necessariamente aqueles que têm as melhores ideias (as ideias circulam, vão surgindo...), mas se não houver depois um impulso de organizar essas ideias através da linguagem, torná-las apetecíveis como possibilidades de entendimento do mundo, nada feito. Se não houver esta estratégia, que é acima de tudo uma estratégia de construção de linguagem, na representação das ideias, então o ensaísta pode ser o mais inteligente dos ensaístas mas vale pouco, por não conseguir estabelecer pontes de ligação com os seus leitores. O melhor ensaísta é portanto  um leitor compulsivo que aprendeu na poesia, no romance, a dominar a expressão das ideias através do domínio da linguagem.

 

Ruy Belo dizia que, ao contrário de um advogado ou de um médico, que podem falhar sem que isso implique a perda do 'título', “não se pode impunemente ser mau poeta sem por isso se perder a qualidade de poeta”. Acha que poderíamos transpor para o campo do ensaio?

Eu admiro muito o Ruy Belo mas não gosto muito dessas designações gerais O impulso para o poema tem na sua origem o impulso linguístico e o impulso ficcional, que é a possibilidade de construir um mundo possível. O mau poeta, neste sentido, é aquele que não consegue conciliar estes dois universos. Veja-se, por exemplo, os concursos literários camarários ou outros, habitualmente sob pseudónimo. 99% dos que concorrem são maus poetas. A linguagem é pobre, as metáforas e as imagens ou não existem ou estão gastas. Aquele universo ficcional de reconstruir uma qualquer experiência é pobre,  a relação das palavras com as ideias falha. Faltam leituras mas também o estímulo individual. Quer queiramos que não, já o Horácio dizia “poeta nascitur no fit” [nasce-se poeta, não se faz poeta]. É que fazer poesia não é juntar palavras.

 

A verdade é que são cada vez mais – e basta observar as redes sociais – os que, até com alguma pompa,  se intitulam “poetas” ou “escritores”. Existir nunca parecer ter sido tão fácil. Haverá, hoje, uma grande confusão à volta das coisas da poesia?

É mais um exemplo de uma falha pessoal. Uma falha naquilo que culturalmente é visto como poeta.  Quem é médico, na sua actividade gravita por uma série de circunstâncias que o definem como médico. Quando alguém tem de dizer: “olhem para mim que eu sou poeta”, algo vai mal.

 

Voltando ao campo do ensaio. Considera que, entre nós, é excessiva a publicação de teses académicas? Haverá algum modo de controlar a febre editorial?

Uma boa parte dos ensaios publicados em Portugal nos últimos 15 anos, tiveram de facto origem em teses académicas ou em comunicações apresentadas em congressos e depois reunidas. Mas há uma diferença entre o interesse que um ensaio pode ter, quando publicado e divulgado por uma editora comercial, e as teses académicas. A diferença está no facto de a academia ainda hoje gostar muito das bibliografias, das citações, da confirmação do já dito  - essas teses confirmam um saber. Isto acaba por ficar condenado ao arquivo; cumpriu o seu papel (até pode ser uma investigação de altíssimo nível), mas não tem interesse, no sentido em que se entende o circuito comercial ou de divulgação ensaística das ideias. Acontece, no entanto, que alguns desses trabalhos acabam por ser publicados porque os centros de investigação têm verbas para também financiar a publicação dessas teses. Ora o mercado onde são colocadas não é o das ideias tal como elas são equacionadas no mundo académico. Resultado: o autor fica feliz,  o editor  fica com papel que nunca mais acaba mas não perde dinheiro porque os custos de produção foram assegurados, a universidade pouco ganha com isso, antes pelo contrário. O mundo comercial e intelectual ficou saturado com essas publicações.

 

E a que se deve o apego, por parte das universidades, ao já dito e redito?

É um mecanismo de auto-defesa. A universidade exige e insiste na originalidade, só que a originalidade académica é um conceito perigoso. Os orientadores de tese querem defender o seu próprio estatuto e fazem um tipo de exigência que vai no sentido de confirmarem constantemente o que estão a dizer com alguém que já disse antes. Trata-se de arriscar alguma ideia, mas ao mesmo tempo tentar suportá-la no já dito da respectiva área. É uma originalidade controlada. As teses que saem deste panorama têm de ser sólidas do ponto de vista da bibliografia. Não se diz que amanhã vai chover sem citar o senhor do boletim meteorológico [risos]. E mesmo quando se cita alguém, esse alguém tem de estar com os créditos bem firmados no próprio universo académico.

 

Podemos pois concluir que muito do que se publica, saído da academia, é uma encenação de ensaio, mesmo porque o verdadeiro ensaio talvez seja a antítese do trabalho académico?   ¶

É, e é uma encenação académica, que é a pior de todas as encenações... Aceita-se que seja uma situação difícil de resolver, sobretudo se virmos o que se passa em algumas editoras universitárias estrangeiras. Toda a universidade deveria ter a sua imprensa própria. Coimbra e Lisboa têm, mas é como os comboios espanhóis: umas vezes sai, outras não sai, e quando sai não circula. Se virmos certas edições francesas, inglesas e sobretudo norte-americanas, são publicadas por imprensas universitárias e vão circular pelo mercado dos interessados numa determinada área. Mas aqui houve um comité rigoroso de selecção, com grandes especialistas, a quem são entregues alguns textos para avaliação. Aquele peso da erudição académica, da investigação bibliográfica não bastam, tem de haver algo mais. É preciso um critério relativamente sólido para separar as águas. Ora em Portugal isto nunca existiu e duvido que venha a existir.  

 

E porquê?

Porque Portugal tem características muito próprias... É como se fosse uma junta de freguesia onde toda a gente conhece o regedor. O Alexandre O'Neill dizia, a propósito do tamanho do país,  que corremos o risco de dizer mal de alguém nos jornais e no dia seguinte encontrarmos esse alguém no elevador.

 

Por vezes, fica a ideia de que a moeda da comunicabilidade parece ter deixado de ter valor de circulação quando nos movemos em campo académico...

Isso é típico da velha universidade, do velho espírito universitário caduco, que existe mas começa a ser ultrapassado. A mentalidade era essa: rebuscar, ofuscar, tornar o discurso tão denso e nebuloso que ninguém lhe conseguisse pôr o dente. E isto normalmente mascarava defeitos próprios, carências, falhas, e portanto ignorância. Houve uma altura em que tive de me confrontar com a questão da legibilidade do discurso ensaístico e encontrei uma frase muito curiosa de um autor inglês, John Ruskin. Ele dizia que  “o direito de ser obscuro só pode ser alcançado depois de um longo esforço para se ser inteligível”. Esta afirmação funcionou sempre para mim como um farol: ser tanto quanto possível legível, excepto quando surgia a necessidade de me tornar deliberadamente obscuro, sobretudo quando o pensamento quer jogar com duas ideias contrárias ao mesmo tempo, em que achamos que o paradoxo é o elemento mais disponível para transmitir a complexidade. Mas ao mesmo tempo aquilo que pode obscurecer o discurso. Quando comecei a fazer crítica literária tinha a tendência para ser obscuro: era medo que não me levassem a sério. E então dificultava a leitura através de um rebuscamento da linguagem. Se o leitor não perceber é porque eu sou muito bom [risos]. É a maneira que temos de nos sentirmos elevados para sermos levados a sério

 

A clareza é para si uma preocupação? Procurou-a quando escreveu os ensaios que compõem “A Lágrima de Ulisses”?

Tornou-se uma preocupação e começou com o meu livro sobre o Saramago [“A Espiritualidade Clandestina de José Saramago], que inicia com uma comunicação que apresentei na Croácia. Sentindo que avançava em terreno inexplorado e sabendo que ia ser uma coisa polémica,  senti-me na necessidade de ser claro, legível na posição que estava a querer colocar. E isso deu-me simultaneamente o lastro para uma nova atitude  em relação ao ensaio que também está neste novo livro. A ideia de que se eu não conseguir ser claro é porque as minhas ideias não são suficientemente amadurecidas para poderem ser divulgadas. Este novo livro decorre já nesse regime  de legibilidade em que procuro situar-me num plano de comunicação que seja simultaneamente profundo e que resulte de um conhecimento também profundo das matérias que abordo.

 

A comunicabilidade é justamente abordada num dos textos deste livro.

No último texto, intitulado “A pertinência pública da literatura”, corro o risco de culpar dois monstros famosos da literatura portuguesa daquilo que é hoje reconhecido como o abandono da leitura: António Ramos Rosa e Maria Velho da Costa. A partir do início do séc. XX, a pouco e pouco, a literatura ficou fechada em si mesma e na ideologia da linguagem de que se compõe. E isto vai culminar, nos anos 60, naquilo que conhecemos como sendo a autonomia total do texto. Barthes vai dizer que o texto propõe e o leitor dispõe, sim, mas vai matar o autor para sobreviver o texto. Genette vai fazer a mesma coisa. Diz ele que fora do texto não há cá conversa. Esta ideologia do texto é transferida para Portugal por António Ramos Rosa, quer pela teoria, quer pela prática, a dar-nos uma poesia sem alma, que vive de um exercício racional da selecção das palavras.Os textos teóricos dele são “traduções”daquilo que se ia publicando em França, sobretudo do Genette e do Blanchot, que eram o arco em que se entendia a literatura como mero trabalho da linguagem. E com a Maria Velho da Costa, a palavra soltava-se e podia aparecer sem contexto, era o puro prazer da palavra. Resultado: isto afastou os leitores.

 

Este seu livro é também uma espécie de manifesto?

Não, manifesto já tive um - do Paulo da Costa Domingos. Este livro é uma afirmação pessoal de um estilo, e evidentemente de algumas ideias.

 

Não é preciso ter de si a imagem do retrato falado do académico, para ficar surpreendido com o acolhimento que este livro dá a questões como os meios digitais, a tecnologia, ou a realidade virtual. Sempre se interessou por estas questões?

Nós não queremos que o futuro nos abandone. Gostaríamos que os nossos valores actuais continuassem no futuro, mas não é assim que as coisas funcionam. Então, tenho de perceber no presente quais são os sinais que me mostram o futuro possível: o avanço tecnológico espantoso e a realidade virtual, a possibilidade de um texto ser vivido. Podemos escolher viver uma personagem, com outras personagens à volta, uma determinada história. Quem é que se encarrega disto? Os tecnólogos, que muitos do que são agora escritores, no futuro, hão-de reencarnar em tecnólogos para escrever esses quadros virtuais em que nós iremos existir. Nós, enquanto leitores, seremos actores.  

 

Como este livro refere, é verdade que as redes sociais acabaram por colocar a literatura “num novo patamar de atenção”. Mas se é verdade que nunca terá sido tão fácil existir, também é verdade que nunca o provisório e o inane tiveram tanta força.

Nós vivemos na sobremodernidade (Marc Augé), que é o tempo em que a aceleração das coisas é de tal forma grande que aquilo que agora é neste momento estabelecido tem uma vida muito curta. E é de tal maneira, que a nossa mente já está formatada para acreditar que a tecnologia soluciona imediatamente situações que podem acontecer. De tal modo é grande a aceleração mas também a potência criativa da tecnologia.  

 

E a insatisfação. E a frustração.  ¶

As redes sociais vieram introduzir um elemento completamente novo: a consciência e a vivência do efémero, do provisório. A consciência é importante para dominarmos melhor as angústias que resultam dessa mesma efemeridade.  As redes sociais criaram uma espécie de bola de neve do efémero e do transitório que nos transforma em moscas que andam a esvoaçar a ver se encontram um poiso, e normalmente o poiso não é recomendável. É o mundo da artificialidade.

 

Como presidente da Associação Portuguesa dos Críticos Literários, qual lhe parece ser o estado actual da nossa crítica?

O que nós temos é uma destruição da crítica por parte dos académicos, que aconteceu a partir dos anos 70 e 80, em que os académicos ocuparam o lugar da crítica culta, daquilo que era o protagonismo do homem culto que fazia crítica literária, que não tinha de ser necessariamente um académico, normalmente não o era. Mas também estávamos numa época em que a literatura fazia sentido para a generalidade das pessoas e as polémicas, quando aconteciam, tinham uma ressonância, uma audiência justificada. Quando os académicos transferem para os jornais o jargão teórico universitário e tentam, por aí, legitimar um pensamento crítico, estão necessariamente a afastar leitores cuja preparação teórica e crítica não pode ser equivalente à dessas pessoas. Ao fazerem isto, os académicos afastaram os leitores da crítica literária, contribuíram para a desmobilização dos leitores em relação à crítica literária. Quando hoje nós protestamos contra as estrelinhas, esquecemos que de facto também por parte do público já não há uma apetência para acompanhar e compreender o discurso crítico acerca de uma obra. A estrelinha é suficiente. Há um traço médio que une críticos  e leitores.

 

E quanto à literatura, propriamente dita, em que momento estamos?  

¶Ao contrário do que muitos pensam, eu acho que estamos numa fase de grande mediania na literatura portuguesa. Não há grandes autores que possamos reconhecer como grandes autores. Evidentemente, temos dois ou três Ronaldos, que talvez também sufoquem um quadro literário que poderia ser melhor. Mas neste momento, está num plano de mediania. Houve gente, como um Augusto Abelaira, um Alexandre Pinheiro Torres, com obras de altíssimo nível, que sabia o que deveria fazer para elevar a literatura portuguesa, que escrevia sabendo o que estava a fazer em termos de exigência de qualidade. Hoje, perdeu-se essa exigência. Os editores publicam aquilo que a máquina financeira em que estão inseridos lhes pede que publiquem. 

 

A sua tradução d'“O Cânone Ocidental”, publicada em 1997, tem mais de duas décadas. Em que pé estão as suas relações com Harold Bloom?

Eu continuo a admirá-lo imenso. Gosto muito do Steiner que, como teórico, talvez tenha mais fôlego, mas o Bloom é o grande crítico literário do século XX, no sentido da tradição da língua inglesa da crítica literária, que começa com Samuel Johnson. É um homem cujo mundo interior existe através de personagens de romances, de poemas, de fragmentos de poesia... A profundidade analítica e a capacidade de juntar, em termos de erudição,  autores e obras, faz dele, não tenhamos dúvidas, o grande crítico do século XX. Mas como ele próprio disse uma vez a propósito do politicamente correcto, se fosse hoje não seria contratado para uma universidade norte-americana. Ele tem uma percepção excelente do que estava a acontecer, e continua a acontecer, no domínio da literatura, dos estudos humanísticos. Por causa da ideia do cânone ocidental e de posições que geraram imensa hostilidade, os alunos boicotam-lhe uma vez uma conferência  e ele, a quem interessa apenas o estético, sai da sala com uma afirmação exemplar:  se tivessem um problema que precisasse de uma intervenção cirúrgica de um neuro-cirurgião, queriam um excelente neuro-cirurgião ou um que fosse gay, mulher, nativo americano, negro ou índio? Esta é a posicão central dele, a predominância do estético. Já eu penso que o estético, como valor absoluto, não existe.¶¶

 

Harold Bloom disse numa entrevista que cedo percebeu que o mundo literário e a academia (não achava que existisse realmente uma distinção entre os dois)  “são sempre dominados por tolos, patifes, charlatães e burocratas”. E sendo assim, os que tenham voz própria não são apreciados, a menos que a sua voz se misture com a de toda a gente. Concorda com ele?

Estou completamente de acordo. Infelizmente, quem tem o poder é o tolo. O ser humano, na sua essência, não muda. E o fascínio do humano está em perceber que é assim. Eu prezo muito o chamado princípio de Peter: à medida que vamos subindo na hierarquia das coisas começamos a perder qualidades e quando chegamos ao topo da pirâmide transformamo-nos em incompetentes. Não me ponho de fora, mas tenho a percepção que devo afastar-me quando as coisas se tornarem mais perigosas, quando achar que estou a mais.

 

Teresa Carvalho, https://ionline.sapo.pt/artigo/754749/manuel-frias-martins-os-academicos-afastaram-os-leitores-da-critica-literaria, 2021-12-02

 


CARREIRO, José. “Crítica literária”. Portugal, Folha de Poesia, 26-09-2021 (Última atualização: 2022-08-01). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/critica-literaria.html