José Manuel de Vasconcelos |
CARPE
DIEM
Depois
será já tarde
não
faltarão rosas secas no cesto dos papéis
recusaremos
o perdão pelas faltas
tanto
tempo assumidas
O
vulcão dos dias não passará de um depósito
de
lava petrificada
cada
linha do corpo será um requiem surdo
e a
moral fado barato de costas para o mundo
A
vida é um aluguer de curta duração
licença
apenas para atravessar a porta
sem
direito a retorno
Não
precisaremos sequer de mais luz
quem
veio viu e entregou-se ao vento
esqueceu
todas as chagas
mas
a dor não passou
***
TRAVESSIA
Da
janela vejo a lagoa incerta
por
entre a cortina que o vento movimenta
Ao
fim da tarde declina a nitidez
os
contornos rendem-se
das
árvores sopra
um
agitado tumulto e o fumo frio
penetra
as lâmpadas que meditam no escuro
a
melancolia sustenta a trama emaranhada
de
figuras ausentes nos estalidos
que
a luz em fuga propicia
Os
anos dançam à volta da casa
a
ampulheta é um olho enorme
que
não dorme
tudo
se liga no laço da noite
as
raparigas na bruma matinal
chamam
já dos seus corpos de mulher
com
a veemência dos pinheiros velhos
Procuro
saber o que se passa na tarantela
dos
meus livros, armo as suas velas
para
a viagem noturna
que
por algumas horas recobrará os sentidos
José Manuel de Vasconcelos, Os grandes lagos da noite, Porto, Ed.
Húmus, 2021
https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html
PEN Clube – Poesia 2022
Reflexão do poeta José Manuel de Vasconcelos galardoado com o Prémio do PEN Clube – Poesia 2022 atribuído pela escrita do livro Os Grandes Lagos da Noite.
Auditório
Carlos Paredes, 25 de outubro de 2022.
A circunstância presente de entrega de um prémio de
poesia, parece-me ser propícia a algumas reflexões, necessariamente breves,
sobre o que ainda pode significar esta forma de expressão nos tempos que
vivemos. Prémios como o que hoje é entregue não podem ser vistos apenas como
galardões a um determinado poeta, mas sobretudo como algo que visa sublinhar a
importância da poesia em geral, pensar a sua atualidade, o seu papel e
oportunidade, chamando a atenção para o facto de que, apesar de tudo, ela ainda
vive e tem o seu valor.
Não sei qual a origem da estafada afirmação de que
Portugal é um país de poetas, expressão que se poderia aplicar a tantos outros
países e que é, portanto, destituída de sentido, e até mesmo algo ridícula pela
empáfia que denota, podendo com verdade ser substituída por esta outra,
infelizmente bastante atual: Portugal é um país sem leitores de poesia.
Exagero, claro, mas as tiragens dos livros de poesia que se publicam atualmente
e os mapas finais de vendas, com raríssimas exceções, atestam bem que os poetas
escrevem e publicam em grande medida uns para os outros. Não que isso
surpreenda alguém que conheça a realidade em que vivemos. Não que valha muito a
pena lamentar essa pobreza, num país que é pobre em tantas outras coisas, particularmente
nas que respeitam à cultura. O que é preocupante, não é só o facto de os livros
de poesia serem geralmente tirados a duzentos e trezentos exemplares, dos quais
muitos ficam a amarelecer nos armazéns ou são vendidos pelos liquidadores das
bancas de rua (e esse ainda não é o pior dos seus destinos, pois apesar de tudo
são comprados e eventualmente lidos). O que mais inquieta é o que esse
alheamento da poesia, e o enorme défice de leitura em geral, significam no que
respeita à falta de educação das sensibilidades, nesta paisagem social
desvairada que nos asfixia cada vez mais. Os poucos que leem preferem os
fugazes best-sellers de ficção, os livros práticos e de autoajuda e as
volumosas (e geralmente atentatórias da inteligência crítica) biografias de
alguns mediatizados do momento. As sensibilidades embotam, o que é agravado
pela avalanche de informação manipulada, desenquadrada, caótica, e pela
pragmatização dos comportamentos e materialização massiva das consciências,
constantemente dirigidas no sentido da dispersão crescente e, consequentemente,
lesando a capacidade de concentração indispensável à reflexão profunda. O
primarismo da sensibilidade ou o défice patente de uma sensibilidade educada,
associado ao escasso sentido crítico e à falta de autonomia do pensar, estão na
base da incapacidade reflexiva dominante, não sendo as únicas causas, têm um
papel determinante no desinteresse não só pela poesia, mas pela cultura
humanística em geral. Veja-se como as ciências humanas têm passado para segundo
plano no universo do ensino, e como disciplinas como a Filosofia, enquanto
exercício fundamental para a formação integral dos indivíduos, perdeu a
importância que tinha, numa sociedade em que as escolas visam predominantemente
preparar colaboradores tecnicistas para as empresas, ou seja, gerar muito e
rápido dinheiro para os grandes grupos económicos. Penso que a poesia não
morrerá, mas é cada vez mais um pequeno reduto, um refúgio de poucos, um espaço
de silêncio para permitir o pensamento independente, estimular a sensibilidade
e fugir ao ruído e à infocracia dominantes.
Mas afinal para quem escrevem os poetas? Quem os lê e
como são lidos? Eugenio Montale, um dos poetas de cuja obra me sinto muito
próximo, sem que isso signifique qualquer espécie de influência direta, num
breve texto publicado em 1971, intitulado La Poesia non Esiste, afirmava que a
poesia das várias épocas se faz com a colaboração dos contemporâneos e que, por
isso, uma das características mais notórias na época em que surge é a sua falta
de estabilidade. Creio que tem plena razão: a estabilidade, sempre relativa de
resto, só o tempo a permite. Lemos Homero, Dante ou Camões e, independentemente
dos problemas de interpretação e dos recessos mais ou menos obscuros com que
nos deparamos nas suas obras, sentimos estar perante um edifício firme, uma
mole indestrutível, o «monumentum aere perennius» que Horácio se gabava de ter
erigido. Mas não sabemos exatamente como eram lidas e sentidas nas suas épocas,
tendo de nos limitar às suas apreciações atuais ou, pelo menos, àquelas que
embora pretéritas, ainda estamos em condições de compreender. A poesia que hoje
escrevemos talvez seja, na sua imediatez, apenas nossa e tocará, quando muito,
alguns dos nossos contemporâneos. O tempo apressado que vivemos, com o
permanente surgimento do novo e o rápido declínio de tudo, só nos pode deixar
inseguros e céticos, por sabermos que as nossas raízes deixaram de estar na
terra, absorvendo os bons e velhos veios de água subterrâneos que outros nos
deixaram, e passaram a ir com um vento forte, cego e invisível, sem sabemos
para onde.
A poesia está assim, hoje, sob o domínio da incerteza,
e não falo agora do destino imediato, comercial, dos livros que vamos
produzindo, e que já vimos ser muito limitado. Falo dos próprios conteúdos dos
poemas, que são frequentemente exercícios de desfocagem relativamente àquilo
que vulgarmente entendemos por realidade e que não podem almejar a estabilidade
dos grandes clássicos que surgiram num tempo demorado, refletindo a espessura
densa desse tempo. Escrevemos poesia porque não é possível comunicar com a
clareza de outras formas de expressão. Na escrita poética sobreleva o impulso
da intuição, ela surge de um vórtice de memória, desejo, sentimento e razão
cambaleante na ânsia de nos aproximarmos do que é inapreensível. A poesia é
antes de tudo um estado de espírito, o exercício demorado e intenso de quem
entra num quarto sem luz e procura ver na escuridão. E não estou a referir-me a
qualquer espécie de hermetismo (sobretudo o daqueles que não têm de facto nada
para dizer e apenas jogam de modo mais ou menos aleatório com as palavras), nem
vejo a expressão poética como a respiração das esfinges. Antes sinto na poesia
essa veemência irremediável que domina a vida humana, e que é, a um tempo,
mescla altiva e cabisbaixa de sonho e amargura. Só podemos escrever o que o
tempo em que vivemos nos permite, nada sabemos do que virá depois, como
desconhecemos verdadeiramente o tempo que há muito nos antecedeu, tendo dele
uma visão de certo modo cristalizada. Por isso, poderemos, na melhor das
hipóteses, esperar que alguns dos contemporâneos (poucos seguramente) lerão o
que escrevemos, e sintam alguma afinidade com o que leram, mas a maioria dos
nossos livros ‒ não tenhamos ilusões, a história da literatura não deixa dúvidas a esse respeito ‒ constituirá no futuro a Pompeia da poesia…
Perdoem-me estas «palavras cínicas» ‒ expressão que ressuscita o título de um livro que, muito a propósito, foi famoso na época mas que hoje ninguém lê ‒, perdoem-mas pelo
seu visceral pessimismo, pela descrença de que padecem ‒ descrença que este tempo de faladrar desabrido nos impõe ‒ e peço desculpa por dizê-las, sobretudo quando estou a receber um prémio pela Poesia que, na circunstância é minha, mas que podia ser atribuído a muitos outros
poetas que lemos e admiramos. Manifesto, naturalmente, o meu reconhecimento
pela atribuição de um prémio de grande prestígio que, repito, mais do que para
um simples livro, chama a atenção para a Poesia. Mas não esqueçamos que ela,
embora sendo algo de profundamente necessário para quem a escreve e para alguns
que a leem, sendo razão de persistência para muitos de nós, que não queremos e
não a podemos dispensar, não deixa de ser paradoxalmente, «um voo cego a nada»
como dizia da própria vida, um admirável poeta, também ele hoje muito pouco
lido.
Muito obrigado!
José Manuel de Vasconcelos
https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html, consultado em 2022-10-28 |
“Os
grandes lagos da noite, José Manuel de Vasconcelos (Prémio PEN Clube – Poesia
2022)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/os-grandes-lagos-da-noite-jose-manuel.html
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