sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Os grandes lagos da noite, José Manuel de Vasconcelos (Prémio PEN Clube – Poesia 2022)

José Manuel de Vasconcelos



CARPE DIEM


Depois será já tarde

não faltarão rosas secas no cesto dos papéis

recusaremos o perdão pelas faltas

tanto tempo assumidas

O vulcão dos dias não passará de um depósito

de lava petrificada

cada linha do corpo será um requiem surdo

e a moral fado barato de costas para o mundo

A vida é um aluguer de curta duração

licença apenas para atravessar a porta

sem direito a retorno

Não precisaremos sequer de mais luz

quem veio viu e entregou-se ao vento

esqueceu todas as chagas

mas a dor não passou

 

*** 


TRAVESSIA


Da janela vejo a lagoa incerta

por entre a cortina que o vento movimenta

Ao fim da tarde declina a nitidez

os contornos rendem-se

das árvores sopra

um agitado tumulto e o fumo frio

penetra as lâmpadas que meditam no escuro

a melancolia sustenta a trama emaranhada

de figuras ausentes nos estalidos

que a luz em fuga propicia

Os anos dançam à volta da casa

a ampulheta é um olho enorme

que não dorme

tudo se liga no laço da noite

as raparigas na bruma matinal

chamam já dos seus corpos de mulher

com a veemência dos pinheiros velhos

Procuro saber o que se passa na tarantela

dos meus livros, armo as suas velas

para a viagem noturna

que por algumas horas recobrará os sentidos

 

José Manuel de Vasconcelos, Os grandes lagos da noite, Porto, Ed. Húmus, 2021

https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html


 


PEN Clube – Poesia 2022

Reflexão do poeta José Manuel de Vasconcelos galardoado com o Prémio do PEN Clube – Poesia 2022 atribuído pela escrita do livro Os Grandes Lagos da Noite.

Auditório Carlos Paredes, 25 de outubro de 2022.

 

A circunstância presente de entrega de um prémio de poesia, parece-me ser propícia a algumas reflexões, necessariamente breves, sobre o que ainda pode significar esta forma de expressão nos tempos que vivemos. Prémios como o que hoje é entregue não podem ser vistos apenas como galardões a um determinado poeta, mas sobretudo como algo que visa sublinhar a importância da poesia em geral, pensar a sua atualidade, o seu papel e oportunidade, chamando a atenção para o facto de que, apesar de tudo, ela ainda vive e tem o seu valor.

Não sei qual a origem da estafada afirmação de que Portugal é um país de poetas, expressão que se poderia aplicar a tantos outros países e que é, portanto, destituída de sentido, e até mesmo algo ridícula pela empáfia que denota, podendo com verdade ser substituída por esta outra, infelizmente bastante atual: Portugal é um país sem leitores de poesia. Exagero, claro, mas as tiragens dos livros de poesia que se publicam atualmente e os mapas finais de vendas, com raríssimas exceções, atestam bem que os poetas escrevem e publicam em grande medida uns para os outros. Não que isso surpreenda alguém que conheça a realidade em que vivemos. Não que valha muito a pena lamentar essa pobreza, num país que é pobre em tantas outras coisas, particularmente nas que respeitam à cultura. O que é preocupante, não é só o facto de os livros de poesia serem geralmente tirados a duzentos e trezentos exemplares, dos quais muitos ficam a amarelecer nos armazéns ou são vendidos pelos liquidadores das bancas de rua (e esse ainda não é o pior dos seus destinos, pois apesar de tudo são comprados e eventualmente lidos). O que mais inquieta é o que esse alheamento da poesia, e o enorme défice de leitura em geral, significam no que respeita à falta de educação das sensibilidades, nesta paisagem social desvairada que nos asfixia cada vez mais. Os poucos que leem preferem os fugazes best-sellers de ficção, os livros práticos e de autoajuda e as volumosas (e geralmente atentatórias da inteligência crítica) biografias de alguns mediatizados do momento. As sensibilidades embotam, o que é agravado pela avalanche de informação manipulada, desenquadrada, caótica, e pela pragmatização dos comportamentos e materialização massiva das consciências, constantemente dirigidas no sentido da dispersão crescente e, consequentemente, lesando a capacidade de concentração indispensável à reflexão profunda. O primarismo da sensibilidade ou o défice patente de uma sensibilidade educada, associado ao escasso sentido crítico e à falta de autonomia do pensar, estão na base da incapacidade reflexiva dominante, não sendo as únicas causas, têm um papel determinante no desinteresse não só pela poesia, mas pela cultura humanística em geral. Veja-se como as ciências humanas têm passado para segundo plano no universo do ensino, e como disciplinas como a Filosofia, enquanto exercício fundamental para a formação integral dos indivíduos, perdeu a importância que tinha, numa sociedade em que as escolas visam predominantemente preparar colaboradores tecnicistas para as empresas, ou seja, gerar muito e rápido dinheiro para os grandes grupos económicos. Penso que a poesia não morrerá, mas é cada vez mais um pequeno reduto, um refúgio de poucos, um espaço de silêncio para permitir o pensamento independente, estimular a sensibilidade e fugir ao ruído e à infocracia dominantes.

Mas afinal para quem escrevem os poetas? Quem os lê e como são lidos? Eugenio Montale, um dos poetas de cuja obra me sinto muito próximo, sem que isso signifique qualquer espécie de influência direta, num breve texto publicado em 1971, intitulado La Poesia non Esiste, afirmava que a poesia das várias épocas se faz com a colaboração dos contemporâneos e que, por isso, uma das características mais notórias na época em que surge é a sua falta de estabilidade. Creio que tem plena razão: a estabilidade, sempre relativa de resto, só o tempo a permite. Lemos Homero, Dante ou Camões e, independentemente dos problemas de interpretação e dos recessos mais ou menos obscuros com que nos deparamos nas suas obras, sentimos estar perante um edifício firme, uma mole indestrutível, o «monumentum aere perennius» que Horácio se gabava de ter erigido. Mas não sabemos exatamente como eram lidas e sentidas nas suas épocas, tendo de nos limitar às suas apreciações atuais ou, pelo menos, àquelas que embora pretéritas, ainda estamos em condições de compreender. A poesia que hoje escrevemos talvez seja, na sua imediatez, apenas nossa e tocará, quando muito, alguns dos nossos contemporâneos. O tempo apressado que vivemos, com o permanente surgimento do novo e o rápido declínio de tudo, só nos pode deixar inseguros e céticos, por sabermos que as nossas raízes deixaram de estar na terra, absorvendo os bons e velhos veios de água subterrâneos que outros nos deixaram, e passaram a ir com um vento forte, cego e invisível, sem sabemos para onde.

A poesia está assim, hoje, sob o domínio da incerteza, e não falo agora do destino imediato, comercial, dos livros que vamos produzindo, e que já vimos ser muito limitado. Falo dos próprios conteúdos dos poemas, que são frequentemente exercícios de desfocagem relativamente àquilo que vulgarmente entendemos por realidade e que não podem almejar a estabilidade dos grandes clássicos que surgiram num tempo demorado, refletindo a espessura densa desse tempo. Escrevemos poesia porque não é possível comunicar com a clareza de outras formas de expressão. Na escrita poética sobreleva o impulso da intuição, ela surge de um vórtice de memória, desejo, sentimento e razão cambaleante na ânsia de nos aproximarmos do que é inapreensível. A poesia é antes de tudo um estado de espírito, o exercício demorado e intenso de quem entra num quarto sem luz e procura ver na escuridão. E não estou a referir-me a qualquer espécie de hermetismo (sobretudo o daqueles que não têm de facto nada para dizer e apenas jogam de modo mais ou menos aleatório com as palavras), nem vejo a expressão poética como a respiração das esfinges. Antes sinto na poesia essa veemência irremediável que domina a vida humana, e que é, a um tempo, mescla altiva e cabisbaixa de sonho e amargura. Só podemos escrever o que o tempo em que vivemos nos permite, nada sabemos do que virá depois, como desconhecemos verdadeiramente o tempo que há muito nos antecedeu, tendo dele uma visão de certo modo cristalizada. Por isso, poderemos, na melhor das hipóteses, esperar que alguns dos contemporâneos (poucos seguramente) lerão o que escrevemos, e sintam alguma afinidade com o que leram, mas a maioria dos nossos livros não tenhamos ilusões, a história da literatura não deixa dúvidas a esse respeito constituirá no futuro a Pompeia da poesia

Perdoem-me estas «palavras cínicas» expressão que ressuscita o título de um livro que, muito a propósito, foi famoso na época mas que hoje ninguém lê , perdoem-mas pelo seu visceral pessimismo, pela descrença de que padecem descrença que este tempo de faladrar desabrido nos impõe e peço desculpa por dizê-las, sobretudo quando estou a receber um prémio pela Poesia que, na circunstância é minha, mas que podia ser atribuído a muitos outros poetas que lemos e admiramos. Manifesto, naturalmente, o meu reconhecimento pela atribuição de um prémio de grande prestígio que, repito, mais do que para um simples livro, chama a atenção para a Poesia. Mas não esqueçamos que ela, embora sendo algo de profundamente necessário para quem a escreve e para alguns que a leem, sendo razão de persistência para muitos de nós, que não queremos e não a podemos dispensar, não deixa de ser paradoxalmente, «um voo cego a nada» como dizia da própria vida, um admirável poeta, também ele hoje muito pouco lido.

Muito obrigado!

José Manuel de Vasconcelos


https://www.almedina.net/os-grandes-lagos-da-noite-1637326873.html, consultado em 2022-10-28


 


“Os grandes lagos da noite, José Manuel de Vasconcelos (Prémio PEN Clube – Poesia 2022)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-04. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/os-grandes-lagos-da-noite-jose-manuel.html



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