segunda-feira, 10 de novembro de 2008

15 DESATINÓNIMOS PARA FERNANDO PESSOA

      
Helder Mendez (1970- )


Fernando Pessoa nos copos com Ernest Hemingway, em Havana; Fernando Pessoa como manager dos Village Persons, no Rock in Rio; Fernando Pessoa com Toulouse Lautrec, no dia da inauguração do Moulin Rouge; Fernando Pessoa nas ilhas, com Gauguin e Van Gogh; Fernando Pessoa a dar aulas de inglês a um puto traquina; Fernando Pessoa no Parque dos Poetas, em Oeiras; Fernando Pessoa com os poetas do Amazonas. Fernando Pessoa em toda a parte, uno e indivisível. Fernando Pessoa plural. Universal. Como agora se diz: incontornável.
      
Desatinónimos? Obviamente. Desatinos com heterónimos. São 15 contos. Prova de amor ao Fernando António Nogueira Pessoa, fonte de inspiração para uma escrita poético-subversiva, tangencial à obra de um génio.
     
Segundo o seu autor, Luís Graça, o livro 15 desatinónimos para Fernando Pessoa não foi planeado. Aconteceu. Muito por causa dos colóquios ocorridos na Casa Fernando Pessoa. Quase todos os contos foram escritos nas madrugadas subsequentes às sessões, ainda ébrio de tudo o que tinha ouvido e aprendido.
     
    
  
  
     
     
     
      
Como pode ser tão belo um fim de tarde?
      
A Dra. Tereza Frisa-Robes não o compreendia. Era coisa que a ultrapassava. Mas decidiu comemorar o fenómeno: organizando um grandioso congresso de heterónimos. O “1° Maxi-Congresso da Heteronímia Pessoana” decorreu num castelo de Edimburgo, próximo do Loch Ness.
      
O monstro não foi convidado, até porque no havia uma certeza cabal da sua existência. E também porque não constava do “mailing”. Para além de várias opiniões mais do que duvidosas sobre a obra do poeta português.
      
Em compensação, Chris de Burgh compareceu, na qualidade de convidado especial, patrocinado pelo uísque “Highland Bataclan”, cujo nome derivava de um famoso bordel, em tempos frequentado pelo escritor Jorge Amado.
      
Os trabalhos decorreram sempre de madrugada, entre a meia-noite e as oito da manhã, porque os heterónimos adoravam jogar golfe de tarde e depois do jantar não prescindiam de abalar até ao “Deep Throat”, um bar acolhedor, propriedade de Linda Amor-de-Laço, uma venezuelana de ascendência hawaiana, radicada na Escócia há um ror de anos.
      
O único heterónimo que não aguentava a bebida era o Cheva1ier de Pas, que tinha a resistência ao álcool própria de uma criança de seis anos. Por isso, era necessário que alguém o carregasse às costas, de regresso ao castelo, onde assistia às sessões em permanente estado de embriaguez letárgica.
      
A ordem de trabalhos era muitíssimo completa, ou não tivesse sido proposta pela Dra. Tereza Frisa-Robes. Sem mais delongas, aqui se dá à estampa a futuramente super-citada ordem de trabalhos:
1 - Sessão de abertura. Boas-vindas aos participantes. Uma palavra amiga.
2 - A heteronímia em Pessoa: brincadeira parva, esquizofrenia, passatempo ou obsessão literária?
3 - Aprovação do orçamento para 2006/2007.
4 - Assuntos diversos.
[…]
Luís Graça,
Lisboa, ed. autor, 2007




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Índice:
     
          

     

 
EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS DA HETERONÍMIA
       
       
Vários caminhos convergentes, assinaláveis nas prosas inéditas, nos levam a explicações possíveis da heteronímia – como se a pluralidade estivesse realmente no cerne do "caso" literário de Fernando Pessoa e a consciência disso manejasse os fios do seu pensamento.
       
Eis algumas dessas explicações:
       
1ª) A constituição psíquica de Pessoa, instável nos sentimentos e falho de vontade, teria gerado a multiplicação em personalidades ou personagens do drama em gente.
       
Pessoa explica o aparecimento dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua histeria, provavelmente histeroneurastenia[1], logo numa "tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação".
       
Vários fragmentos das Páginas Íntimas atendem "à dispersão do eu".
       
2ª) A qualidade de poeta de tipo superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito, na concepção de Fernando Pessoa, segundo um fragmento inédito, há quatro graus de poesia lírica e no cume da escala, onde ele se coloca, o poeta torna-se dramático por um dom espantoso de sair de si.
       
No segundo grau, o poeta ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque não sente, mas porque pensa que sente, a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência. A sua obra é unificada só pelo estilo, último reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.
       
“O quarto grau da poesia lírica é aquele muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização."
       
Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem directamente, supondo que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente, avança ainda um passo na escala da despersonalização.
       
Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos tenderão a definir, para ele, uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente.
       
Não se detém Pessoa precisamente no limiar do seu caso excepcional de poeta múltiplo, autor de autores?
       
A heteronímia seria o termo último de um processo de despersonalização inerente à própria criação poética e mediante o qual Pessoa estabelece uma axiologia literária.
       
O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramático, mais fingidor – é o sentido pleno da "Autopsicografia".
       
O progresso do poeta dentro de si próprio, realiza-se pela autoria sobre a sinceridade, pela conquista (lenta, difícil), da capacidade de fingir: "A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, pode levar o espírito a esta culminância. "
       
Exprimir poeticamente significa fingir.
       
3ª) A qualidade de português levaria o poeta a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários.
"O bom português é várias pessoas – reza um fragmento inédito. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja havidos ou por haver".
       
Se um indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior, uma Nação deve desnacionalizar-se – e esta é em particular a vocação portuguesa.
       
O ideal que Pessoa inculca a Portugal, é consequentemente o que se propõe a si próprio: "Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa" – o pluralismo, o politeísmo.
       
4ª) A multiplicidade do escritor seria o produto necessário de uma nova fase de civilização – fase que Fernando Pessoa caracteriza ao explicar o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo sociológico.
       
A decadência da fé, quebra de confiança na ciência, a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia actual de "ser tudo de todas as maneiras".
       
A poesia poderá entender-se também como resposta a um estado colectivo de crise, mas em sentido diferente, isto é, como antídoto, como bálsamo espiritual.
       
Caeiro, libertador imaginário, um remédio (provisório) para a dor de pensar de que sofre Pessoa ortónimo, uma fuga.
       
Pessoa ter-se-ia dividido para se compensar.
       
Heteronímia seria um modo de suprir a carência, verificada na época, de personalidades superiores, e em especial de grandes personalidades na literatura portuguesa: "Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se ele só em literatura?".
       



[1] No seu Tratado de Psiquiatria Clínica, vol. I, o inglês W. Mayer Gross diz, na página 401: «Os hebefrénicos podem seguir um caminho por largos tempos diagnosticados de "neurasténicos" e "neuróticos"... Sentem-se atraídos por ideias pseudo-científicas e pseudo-filosóficas, sentem-se capazes de grandes descobrimentos e invenções.» Por sua vez, afirma-se no Dicionário Enciclopédico de Medicina (p. 871) que «os enfermos (esquizofrénicos na forma hebefrénica) entregam-se a excessos de romantismo, de filosofismo ou de misticismo.»





             
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/11/10/desatinonimos.aspx]        


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

                           

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

CARTAS A OFÉLIA (Fernando Pessoa)






 
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 27 DE ABRIL DE 1920
     
     
Meu Be«be»zinho lindo:
     
Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos).
     
Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...
     
Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.
     
Enfim...
     
Amanhã passo  á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
     
Sempre e muito teu
     

     
     


     
     
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920
     
     
Bebezinho do Nininho-ninho:
     
Oh!
     
Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!
     
E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.
     
Oh! O Nininho é pequenininho!
     
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.
     
Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia. [desenho de uma meia] (isto é a meia das cinco e meia).
     
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
     
Jinhos, jinhos e mais jinhos.
     
     
     
     
   
   
   
   
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 25 DE SETEMBRO DE 1929
   
   
Exma. Senhora D. Ophélia Queiroz:
    
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está proibida de:
(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.
   
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
   
Cumprimenta V. Ex. ª
   
Álvaro de Campos
eng. Naval
   
   
   
   
   


   
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 9 DE OUTUBRO DE 1929
   
   
     Terrivel Bébé
   
      Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é  sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .


Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)


     
     

     

    

Intertextualidade
Paródia
    
    




Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
    
A Nini Bèbèzinho
Do Ibi
Dá Òfèli
Bjinho?
    
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio,
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio.
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é,
A glória concede e nega, não tem verdades a fé.
    
Não há quem saiba se gosto de ti ou não.
    
Por isso na orla morena da praia calada e só
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó.
Sonho sem quase jà ser, perco sem nunca ter tido
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
    
Querida Bèbèzinho:
Ainda fazes muita troça do Nininho? (A. de C.)
    
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso senão a brisa na face
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
     
Ex.ª Snr.ª. (...)
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa
Meu particular amigo, encarrega-me de lhe comunicar que
Está V. Ex.ª proibida de:
      
1) Pesar menos gramas
2) Comer pouco
3) Não dormir nada
4) Ter febre
5) Pensar no indivíduo em questão
     
Cumprimenta V. Ex.ª
      
Álvaro de Campos
eng. naval
     
, no silêncio cercado pelo som brusco do mar
Quero dormir socegado, sem nada que desejar.
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado pelo ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
     
O teu Nininho, Bèbè Fera,
É o maior bjinho
De noite ser, e primavera,
E eu estar de olhos fechados.
      
       
       
Mário Cesariny Vasconcelos,
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989
    
   


                     

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/11/05/ofelia.aspx]


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html