quarta-feira, 8 de abril de 2009

ANTÓNIO BOTTO

António Botto, por João Abel Manta. MC.DES.1004 Museu de Lisboa




Não queiras vê-lo,
Nem perguntes o que eu fiz
Quando há pouco fui olhar-me
Depois de falar contigo
E em que chorei de saudade!
    
Quebrei-o porque não quero
Aceitar a realidade!
      
Não digas, — não vás supor
Que foi uma cobardia,
Ou nervos, ou pessimismo,
Ou uma simples fantasia!...
      
Não, amor: o nosso drama
— O meu!, tem essa tragédia
Da consciência que eu ponho
Sem querer, sem a chamar,
Para ouvir o que eu digo
E para ver o que eu faço...
      
Sou o rastro de um sorriso,
Um gesto do teu cansaço...
Sou a música perdida
De um lamento que foi alma
Na letra de uma cantiga
Cantada por um mendigo
Numa estrada solitária
Onde não passa ninguém!
      
Quebrei-o e fiz muito bem.
      
Quebrei-o como quem parte
A vida que idealizou:
      
— Não posso ver-me qual fui,
Não quero ver-me qual sou.
       
António Botto, Curiosidades Estéticas (1924) poema 24
in Canções e Outros Poemas, Ed. Quasi, 2008


[AntBotto.bmp]




AS CARTAS DEVOLVIDAS

17
Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Eu não podia mais… Era impossível, acredita. Se continuássemos a viver como vivíamos — e mudar, dificílimo seria, — se nós desistíssemos desta separação ou dêste sacrifício, apartávamos, certamente, as nossas almas, e para sempre! Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Dizes-me na tua carta relida já quatro vezes que a tranqüilidade da nossa vida vale mais que tôdas as paixões, que todos os desejos… Tu dás-lhe êsse nome; mas, para mim, tem outro: — sim; chamemos-lhe egoismo. O teu é sacrificar todos os prazeres para evitar uma dor; — és cobarde e comodista. O meu, tambem se chama egoismo, porém, é egoismo diferente, é egoismo ideal: — sacrificar tudo ainda que o sacrifício possa destruir a minha vida e essa destruïção entristeça para sempre a minha alma. Ah!, como nós somos opostos! Tu acabaste para esquecer ou pôr de parte a minha camaradagem; eu, acabei para te lembrar continuamente e para mais te pertencer. Tinha que ser: está bem. A vida é uma sucessão de imagens; se umas se apagam há outras que permanecem…

18
Notícias da minha vida — para quê? O que tu possas imaginar dela talvez tenha mais encanto. Notícias minhas? Caberiam em três palavras: — Tento, apenas, esquecer-te!

19
Eu não devia responder á tua carta; nem sei dizer porque o faço. Também de que servia dizer-te? A verdade parece traição àqueles que vivem da mentira. Tentei esclarecer-te, para meu sossêgo e minha tranqüilidade êsse desagradável mal entendido que deu origem á nossa frieza actual, tão firme, segundo parece. Não quizeste escutar-me. Pouco depois, saías, — sem me deixar sequer a esmola de uma palavra… Dias passaram, longos dias decorreram, e hoje, a tua carta de quatro linhas vem dizer-me que te arrependes da simpatia que me déste… E num tom sêco terminas: que eu que sou bem diferente daquele que tu julgaras… Nada respondo. Apenas te lembro que a vida é cruel, imensamente cruel; e a sua maior crueldade é não permitir que pessoas da nossa estima possam conhecer a verdade dos nossos pensamentos e a verdade do nosso sentir. Adeus. As grandes paixões são para as grandes almas.

António Botto, Canções




António Tomás Botto nasceu em Concavada (Abrantes), em 1897. Amigo de Fernando Pessoa, colaborou em várias revistas de vanguarda, como a Athena, A Águia, a Contemporânea, a Presença, etc. Embora inveteradamente boémio, chegou a alto funcionário em Angola (África), na qualidade de Chefe da Repartição Política e Civil do Zaire. Vindo para o Brasil, entrou a viver uma vida desregrada e anárquica. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1959.
Escreveu poesia e contos. No primeiro caso, temos: Trovas (1917), Cantigas da Saudade (1918), Motivos de Beleza (1923), Curiosidades Estéticas (1924), Pequenas Esculturas (1925), Olimpíadas (1927), Dandismo (1928), Ciúme (1934), Baionetas da Morte (1936), A vida que te dei (1938), Sonetos (1938), - reunidos no volume As Canções de António Botto (1941, primeiro volume das Obras Completas), ódio e Amor (1947), etc. Contos: Os Contos de António Botto, para crianças e adultos (1942), etc.
A poesia de António Botto pende sempre entre dois pólos líricos: de um lado, coloca-se um erotismo exacerbado até o máximo possível, graças às febres duma incrível imaginação e duma privilegiada sensibilidade, e por isso mesmo invertendo o sinal do apelo físico: em lugar de dirigir-se a uma mulher, dirige-se a um adolescente. O tom é apolíneo, clássico, paganizante, em que se cultua a beleza masculina por seu equilíbrio de formas e a harmonia das linhas fundamentais. Do outro lado, uma poesia aparentemente antagónica, dado o seu carácter socialmente "realista": o poeta põe-se a retratar o baixo-mundo lisboeta onde impera o "fado", canção de escorraçados. Nessa poesia voltada para o quotidiano de Lisboa perpassa um eco longínquo de Cesário Verde. No movimento pendular - de carácter feminino-masculino -, o "outro" do poeta é já mulher, donzela ou fadista, como a compensar a tendência oposta: "Anda um ai na minha vida / Que me lembra a cada passo / A distância que separa / O que eu digo do que eu faço".
Os contos parecem testemunhar uma espécie de paisagem moral sobre a qual balançam e se compensam mutuamente as duas tendências marcantes do temperamento de António Botto.
Ambiguamente escritos para crianças e adultos, pois servem a todos com seu intuito pedagógico, os contos tem qualidades e defeitos resultantes desse mesmo carácter moralizante: assumindo atitudes à La Fontaine e à Esopo, o contista cometeu erros de base que por pouco não anulam completamente o sentido da obra toda. Noutros termos: procurando manter-se equidistante entre falar às crianças e aos adultos, algumas vezes o narrador se derrama piegasmente, ou se torna artificial quando pretende inserir notas de ingenuidade na moral com que coroa as narrativas. Com isso, parece comunicar-se apenas com o público infantil, pois para os adultos não satisfaz o conteúdo ético das conclusões. E mesmo para crianças, havia que ponderar a ocasional ausência de moral ou a sua impropriedade. Sempre, contudo, temos um prosador de primeira água, dotado de transparência, fulgor, simplicidade e variedade. A tais dotes soma-se o pendor inato para a poesia: é justamente a prosa poética, que adquire por vezes um tom de apólogo, ou de linguagem oracular, o superior mérito dos Contos, que se aparentam a Os Meus Amores, de Trindade Coelho, sobretudo pela esvoaçante fantasia que lhes serve de lastro, expressão de crença no mundo dos sonhos ou duma ânsia de fuga para atmosferas de beleza exclusivamente imaginativa.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
São Paulo, Editora Cultrix




VIRILIDADES
ANTÓNIO Botto foi, como é sabido, um poeta capaz do melhor e do pior. Do pior retenhamos, por exemplo, o desastrado e genuflectido Fátima - Poema do Mundo (1955) ou a quase totalidade dos poemas recolhidos em Ainda Não Se Escreveu (1959). Como testemunhos do melhor, ficaram as Cartas Que Me Foram Devolvidas (1932), a peça Alfama (1933) ou As Canções agora reeditadas. Recorde-se que estas últimas mereceram de Pessoa não apenas o apoio editorial (na edição inaugural de 1922, que viria a ser ampliada em 1930 e 1940) como ainda um ensaio pródigo em encómios e o exemplar Aviso por Causa da Moral, endereçado por Álvaro de Campos às mentes susceptíveis dos estudantes de Lisboa.
O manifesto de Campos vinha precisamente em defesa das Canções após um pedido público de apreensão e proibição da sua venda. Era de facto um livro que, para além de um vigor poético que em nada perdeu actualidade, denotava uma coragem rara e frontal - tanto pela homossexualidade assumida ao longo das suas páginas como (ou talvez sobretudo) pela concepção que veicula do corpo como princípio e fim do prazer: «Se os nossos corpos se entendem// Nada mais nos é preciso» (pág. 37); «Não vale a pena ter alma» (pág. 137). Com uma veemência que quase poderíamos considerar inédita entre nós, Botto atreve-se a louvar o «largo aprumo viril» (pág. 69) dos corpos, sem a mínima ambiguidade, recorrendo com frequência a deliciadas descrições que nos obrigam a ter presente a «visualidade trágica do amor» (pág. 132): «Moreno! Um todo excitante;/ Rapaz do povo, lavado,/ Viril, saudável - um corpo// Já batido na bigorna// Dos amores proibidos» (pág. 214). A mestria com que convoca o corpo desejado atinge nas Canções não apenas um elevado conseguimento estilístico mas também (o que é mais raro no nosso lirismo amoroso) uma felicidade provocatoriamente despreocupada, que não resiste a partilhar o deslumbramento erótico em que se firma: «Venham ver a maravilha/ Do seu corpo juvenil!// O sol encharca-o de luz,/ E o mar de rojo tem rasgos/ De luxúria provocante». Em todas as circunstâncias (se exceptuarmos os poucos monólogos dramáticos em que o sujeito é feminino), o amor a que este livro procura dar voz inteira confessa e reclama a sua virilidade: a evidência de acontecer «entre dois homens».
A singularidade das Canções não se prende, porém, apenas com a opção sexual que claramente reivindica e que na altura não podia deixar de escandalizar. É verdade que o autor (ou a personagem por ele criada) adopta a atitude de quem «zomba e ri da moral imposta» (pág. 215), rejeitando de modo inexoravelmente sereno (embora por vezes irónico ou até magoado) o papel de vítima moral ou social: «Deixá-los dizer -/ Que somos dois amantes; faz-me rir,/ Mesmo até sem ter vontade...// - Uma verdade na vida,/ De qualquer modo que a vejam/ É sempre a mesma verdade» (pág. 189). Mas talvez a ousadia maior de Botto tenha sido a reiterada tentativa de se colocar «à margem da moral» (pág. 218), cujos princípios normativos procurou submeter a uma espécie de indiferença hedonista que parece apostada em sacralizar e democratizar a carne, dado que «- A carne do assassino/ É como a do virtuoso» (pág. 15). Esta tentação de privilegiar o «encantamento carnal» (pág. 50) tem, aliás, consequências estéticas, na medida em que o desejo é perspectivado/sublimado como algo de supra-estético, capaz de se bastar na violência com que eclode e reclama cumprimento: «A beleza -/ Não é mais do que o desejo/ Fremente que nos sacode.../ - O resto é literatura».
Tudo isto contribuiu, naturalmente, para que a obra de Botto se fizesse rodear de uma aura de polémica ainda não de todo extinta. Basta que pensemos na indisfarçada misoginia que serve de contraponto ao elogio rasgado da carne trigueira e viril. Quando surge nas Canções, a figura da mulher é associada ou à débil servidão conjugal ou à mais rude prostituição. De resto - e por mais que pese a qualquer leitura de inspiração politicamente correcta -, é no final de um dos melhores poemas deste livro que vamos encontrar o paroxismo glacial desse desprezo pela mulher: «Acabo, aos beijos, num quarto/ Sobre uma espécie de mulher» (pág. 189). De certo modo, é como se no universo erótico intensamente viril das Canções a mulher fosse vista como portadora de um estigma, da possibilidade de corromper o corpo masculino idealizado, por exemplo, nas «Olimpíadas»: «- Carne divina/ Sem a mácula do abraço feminino/ Que a torna/ Doente, sacrificada».
Não é apenas o receio da debilitação (e o consequente elogio da juventude) que vem perturbar o apaixonado louvor do corpo. De facto, a poesia de Botto pauta-se às vezes por uma melancolia de tonalidades frias e elegíacas: «De quanto quanto nós fomos,// Apenas sei que sou triste» (pág. 104); «Tudo foge ao nosso olhar» (pág. 154). O que se deve também ao facto de nos melhores poemas do autor o ser do amor ser incansavelmente questionado e, de quando em quando, desacreditado ou corroído pela dúvida: «Anoitece nos meus olhos./ - Se vens falar-me de amor/ Vê lá bem se isso é verdade». Esta conseguida «singeleza» de expressão não renega, evidentemente, um forte parentesco com o fado, com a quadra popular ou até com o ambiente mítico de uma Alfama que não era ainda degradado pasto de turistas. A força e a fraqueza de Botto encontram-se, aliás, nessa peculiar facilidade de concentrar a intensidade expressiva num registo populista (a roçar por vezes o melodrama ou o lirismo de manjerico): «Quem mais ama mais padece;/ Eu hei-de amar poucochinho» (pág. 75). São de lamentar, esteticamente, os momentos em que essa veia populista cai numa estéril autocomplacência ou se afivela a um patriotismo rudimentar (para não dizer saloio). Tal como se nos pode revelar fruste e convencional a maneira como é cantada «a doutrina/ Bendita de Jesus - esse tesoiro» (pág. 157).
Seja como for, tanto como pelos matizes vários que da temática amorosa nos oferece, é pela força e pela elegância do versilibrismo de Botto que o fascínio das Canções se mantém irredutível. E muito deve esse fascínio ao talento com que nos é proposto um coloquialismo despojado, assente numa sintaxe primorosamente descuidada que faz de travessões, reticências e pontos de exclamação elementos de expressividade maior. Ao que se alia uma preferência por frases e versos curtos, claros e contundentes. Sirvam de exemplo os versos que, em jeito de despedida, rematam certos poemas: «Não dizes nada?/ Fazes bem. Adeus!» (pág. 221). O que nos leva a pensar que a poesia de Botto é tanto melhor quanto mais intensamente requer um interlocutor (ou destinatário-em-corpo) que dota certos textos de um quase sufocante realismo emocional (e os dispensa, ao mesmo tempo, dos solipsismos e frouxas grandiloquências que vieram a caracterizar o pior do que o poeta escreveu).
Numa época em que a «complexidade» mantém ainda um tirânico poder de sedução e prestígio, talvez não seja descabido observar que a poesia de António Botto, não exigindo excessivas manobras hermenêuticas, não deixa por isso de poder ser (como no caso das Canções) grande poesia. Podemos, aliás, inseri-lo nessa estirpe de poetas (em que se contam, por exemplo, Irene Lisboa ou Raul de Carvalho) para quem o dizer claro e um fértil «prosaísmo» se revelaram a mais grave, profunda e urgente razão de escrever versos.
Manuel de Freitas, Cartaz Expresso, 26-02-2000
http://primeirasedicoes.expresso.pt/ed1426/c281.asp?ls


https://www.sistemasolar.pt/pt/produto/361/pt/o-mundo-gay-de-antonio-botto/

 

Anna Klobucka sobre António Botto (É Apenas Fumaça), 20/03/2019



LIGAÇÕES EXTERNAS

1921
Antônio Botto – Canções. São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2014. Publicado originalmente em 1921.
1922
António Botto e o Ideal Estético em Portugal”, Fernando Pessoa. Revista Contemporânea, vol. I, n.º 3, ano I, 1922.
1938
Através da obra do Sr. António Botto (Análise Crítica), Amorim de Carvalho. Porto, Edição do Autor, 1938.
1986
El semiheterónimo Antonio Botto”, José Luís Garcia Martín. Archivum: Revista de la Facultad de Filología, ISSN 0570-7218, Tomo 36, 1986 (Ejemplar dedicado a: Miscelanea Filológica dedicada al profesor Jesús Neira) , págs. 381-408
2010
A invenção do eu: apontamentos sobre a vida de António Botto”, Anna M. Klobucka.Forma Breve: Homografias: Literatura e Homossexualidade, vol 7. Aveiro, Universidade de Aveiro, 2010, p.63-80.
2012
Canções / Songs: Fernando Pessoa traduz António Botto, Maria Cardoso Pereira Vizcaíno. Instituto Politécnico do Porto - ISCAP, outubro de 2012.
2012
Corpo, Expressão e Identidade em Adolescente de António Botto”, Rodrigo Corrêa Martins Machado e Gerson Luiz Roani. Gláuks v. 12 n. 2 (2012) 12 – 26.
2013
Artimanhas de Eros: Aspectos do erotismo e do esteticismo na poética de António Botto, Ricardo Marques Martins. Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2013.
2014
António Botto”. In: Wikipédia, a enciclopédia livre [Em linha]. Flórida: Wikimedia Foundation, rev. 5 outubro 2014.
2018
“António Botto não foi só amigo de Fernando Pessoa. Foi o primeiro (do mundo) a escrever poesia homoerótica sem véus”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-11
2018
“Obras de António Botto vão voltar às livrarias ainda este ano”, Rita Cipriano. Observador, 2018-08-01
2018
“O Mundo Gay de António Botto”, Anna M. Klobucka. Sistema Solar, 2018-06-11
2019
A maior felicidade é ser-se compreendido. Sete poemas para recordar António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Como a existência dramática de António Botto acabou numa avenida de Copacabana”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-16
2019
“Um colóquio para ficar a conhecer melhor António Botto”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-15
2019
“Dois dias para celebrar António Botto e Fernando Pessoa, amigos e poetas”, Rita Cipriano. Observador, 2019-03-05
2019
“Anna Klobucka: António Botto e Fernando Pessoa beneficiaram de forma igual e recíproca da sua relação de amizade”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
2019
Anna Klobucka sobre António Botto (É Apenas Fumaça), entrevista por: Ricardo Esteves Ribeiro, 20/03/2019
2019
Documentário sobre António Botto estreia a 19 de março na RTP 2”, Rita Cipriano, Observador, 2019-03-16
2019

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/04/08/botto.aspx]

domingo, 11 de janeiro de 2009

O CASO CLÍNICO DE FERNANDO PESSOA







  

FERNANDO PESSOA OU ANTÓNIO MORA, O OFICIALMENTE LOUCO.
         
Cascais, disse Pessoa, Cascais, que belo sítio, eu também lá passei alguns dias, não mais de duas semanas, é a primeira vez que falo disto a alguém e de boa vontade lhe confesso a si que é meu amigo, meu caro Soares, fui a uma consulta na clínica psiquiátrica de Cascais; foi lá que conheci António Mora, o filósofo panteísta, e devo dizer que passei nessa pequena vila os dias mais serenos da minha vida, porque uma onda negra tinha-se abatido sobre mim e tinha-me arrastado e eu só tinha vontade de morrer, mas conheci António Mora, que me deu confiança na Natureza.
       
António Mora?, perguntou Bernardo Soares. Nunca me tinha falado nele, gostaria de saber alguma coisa a seu respeito.
       
Bem, disse Pessoa, António Mora é louco, pelo menos oficialmente é louco. Mas é um louco lúcido, que reflectiu muito sobre o paganismo e o cristianismo. Posso dizer-lhe que se veste com uma túnica como os antigos romanos, uma túnica branca que lhe desce até aos pés, calça sandálias à maneira antiga e raramente fala, mas comigo falou.
       
E o que é que ele lhe disse?, perguntou Bernardo Soares.
       
Disse-me muitas coisas, respondeu Pessoa. Disse-me primeiro que os deuses voltarão, porque essa história de uma alma única e de um único deus é uma coisa passageira que está a acabar no final de um curto ciclo de história. E quando os deuses voltarem perderemos essa unicidade da alma, e a nossa alma poderá de novo ser plural, como a Natureza quer.
       
Antonio Tabucchi, in Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa,
Quetzal Editores, 1994, pp. 48-50





Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Caricatura por por Rui Pimentel.
                                                             

O CASO CLÍNICO DE FERNANDO PESSOA
       
       
A sua poesia exprime sempre os seus sentimentos ou as suas crenças, sejam no que for. Fernando Pessoa não sabe e não quer mentir, embora minta e se contradiga. Não é então eleque fala ou escreve, porque realmente não existe ele.
       
Quando afirma ou nega pronuncia-se somente uma parte dele, uma fracção ocasional do seu eu. A dissociação mental de que é vítima despersonaliza-o. Então a perda da integridade psíquica fá-lo sentir-se outro, ou outros, conforme as fracções próprias que o determinam.
       
Vivem em nós inúmeros,
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma
Há mais eus que eu mesmo.[1]
       
Na normal evolução da doença esquizofrénica[2] vai-se acentuando a progressão da dissociação psíquica até chegar à dissolução completa da personalidade, que é a demência ? Fernando Pessoa, falecendo aos 47 anos de idade, não teve tempo de chegar lá.
       
Sendo um psicopata hebefrénico[3], está implicitamente entendido que Fernando Pessoa não era o que se chama um louco. Padecia dessa nosofobia[4] porque, como é próprio da hebefrenia, conservava a inteligência e a lucidez do seu estado a agravar-se progressivamente e sabia o fim evolutivo que fatalmente o aguardava no avanço da idade.
       
No sofrimento atroz que lhe provocava à consciência da desagregação do pensamento, provavelmente terá (ainda que temido) desejado a loucura, porque a perda de lucidez do seu estado lhe seria uma libertação. No relâmpago de uma crise, algures chegou a exclamar: «Graças a Deus que estou doido!» Não o estava, claro. Nenhum doido (demente) diz que o é, pois que não reconhece o seu estado. Mas estava, isso sim, no caminho da demência e, nalguns momentos, muito próximo dela.
       
Psicopata profundamente atingido, e com a obstinação de escrever, fatalmente que Fernando Pessoa haveria de transmitir ao papel as vicissitudes dramáticas do seu espírito.
       
Mário Saraiva (médico), O caso clínico de Fernando PessoaLisboa, Edições Referendo, 1990 – texto com supressões


[1] Fernando Pessoa/Ricardo Reis
[2] Esquizofrenia: do grego skhízein, «fender» + phrén, «mente; espírito» + -ia.
[3] Hebefrenia: uma categoria de esquizofrenia que começa, habitualmente, na adolescência e é caracterizada por inércia, embotamento da afectividade, autismo, bizarria de comportamento, delírios, dissociação intelectual da coesão íntima da personalidade.
[4] Nosofobia: horror excessivo às doenças; medo mórbido de adoecer. (Do gr. nósos, «doença» + phobe¸n, «ter horror a» + -ia)




EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS DA HETERONÍMIA
       
       
Vários caminhos convergentes, assinaláveis nas prosas inéditas, nos levam a explicações possíveis da heteronímia – como se a pluralidade estivesse realmente no cerne do "caso" literário de Fernando Pessoa e a consciência disso manejasse os fios do seu pensamento.
       
Eis algumas dessas explicações:
       
1ª) A constituição psíquica de Pessoa, instável nos sentimentos e falho de vontade, teria gerado a multiplicação em personalidades ou personagens do drama em gente.
       
Pessoa explica o aparecimento dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua histeria, provavelmente histeroneurastenia[1], logo numa "tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação".
       
Vários fragmentos das Páginas Íntimas atendem "à dispersão do eu".
       
2ª) A qualidade de poeta de tipo superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito, na concepção de Fernando Pessoa, segundo um fragmento inédito, há quatro graus de poesia lírica e no cume da escala, onde ele se coloca, o poeta torna-se dramático por um dom espantoso de sair de si.
       
No segundo grau, o poeta ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque não sente, mas porque pensa que sente, a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência. A sua obra é unificada só pelo estilo, último reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.
       
“O quarto grau da poesia lírica é aquele muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização."
       
Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem directamente, supondo que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente, avança ainda um passo na escala da despersonalização.
       
Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos tenderão a definir, para ele, uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente.
       
Não se detém Pessoa precisamente no limiar do seu caso excepcional de poeta múltiplo, autor de autores?
       
A heteronímia seria o termo último de um processo de despersonalização inerente à própria criação poética e mediante o qual Pessoa estabelece uma axiologia literária.
       
O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramático, mais fingidor – é o sentido pleno da "Autopsicografia".
       
O progresso do poeta dentro de si próprio, realiza-se pela autoria sobre a sinceridade, pela conquista (lenta, difícil), da capacidade de fingir: "A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, pode levar o espírito a esta culminância. "
       
Exprimir poeticamente significa fingir.
       
3ª) A qualidade de português levaria o poeta a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários.
"O bom português é várias pessoas – reza um fragmento inédito. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja havidos ou por haver".
       
Se um indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior, uma Nação deve desnacionalizar-se – e esta é em particular a vocação portuguesa.
       
O ideal que Pessoa inculca a Portugal, é consequentemente o que se propõe a si próprio: "Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa" – o pluralismo, o politeísmo.
       
4ª) A multiplicidade do escritor seria o produto necessário de uma nova fase de civilização – fase que Fernando Pessoa caracteriza ao explicar o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo sociológico.
       
A decadência da fé, quebra de confiança na ciência, a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia actual de "ser tudo de todas as maneiras".
       
A poesia poderá entender-se também como resposta a um estado colectivo de crise, mas em sentido diferente, isto é, como antídoto, como bálsamo espiritual.
       
Caeiro, libertador imaginário, um remédio (provisório) para a dor de pensar de que sofre Pessoa ortónimo, uma fuga.
       
Pessoa ter-se-ia dividido para se compensar.
       
Heteronímia seria um modo de suprir a carência, verificada na época, de personalidades superiores, e em especial de grandes personalidades na literatura portuguesa: "Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se ele só em literatura?".
       

       



[1] No seu Tratado de Psiquiatria Clínica, vol. I, o inglês W. Mayer Gross diz, na página 401: «Os hebefrénicos podem seguir um caminho por largos tempos diagnosticados de "neurasténicos" e "neuróticos"... Sentem-se atraídos por ideias pseudo-científicas e pseudo-filosóficas, sentem-se capazes de grandes descobrimentos e invenções.» Por sua vez, afirma-se no Dicionário Enciclopédico de Medicina(p. 871) que «os enfermos (esquizofrénicos na forma hebefrénica) entregam-se a excessos de romantismo, de filosofismo ou de misticismo.»



frases_de_fernando_pessoa.jpg

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/01/11/casopessoa.aspx]
 

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html