quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
AUSÊNCIA (José Carreiro)
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Nuno Júdice sobre a arte poética
ARTE POÉTICA COM MELANCOLIA
Preocupam-me
ainda as coisas do passado. Escrevo
como
se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem
as
folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita
primavera.
Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro
palavras
de dentro do que penso e do que faço, como
se
elas pudessem viver aí, peixes verbais no
aquário
do ser. É verdade que as palavras não nascem
da
terra, nem trazem consigo o peso da matéria;
quando
muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem
mesmo
sangue com que se faz viver as emoções,
e
servem de alimento a outros que as leem como se, nelas,
estivesse
toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me
das
mãos como areia; tento apanhar estes restos de tempo,
de
vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e
vou
atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços
a
que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É
então
que surges: teu corpo, que se confunde com o das
palavras
que te descrevem, hesita numa das entradas
do
verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome
com
a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra
portas
e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens
inúteis
que me separam de ti.
Nuno Júdice, Teoria
Geral do Sentimento. Lisboa, Quetzal Editores, 1999, p. 9
COMO SE FAZ O POEMA
Para
falarmos do meio de obter o poema,
a
retórica não serve. Trata-se de uma coisa simples, que não
precisa
de requintes nem de fórmulas. Apanha-se
uma
flor, por exemplo, mas que não seja dessas flores que crescem
no
meio do campo, nem das que se vendem nas lojas
ou
nos mercados. É uma flor de sílabas, em que as
pétalas
são as vogais, e o caule uma consoante. Põe-se
no
jarro da estrofe, e deixa-se estar. Para que não morra,
basta
um pedaço de primavera na água, que se vai
buscar
à imaginação, quando está um dia de chuva,
ou
se faz entrar pela janela, quando o ar fresco
da
manhã enche o quarto de azul. Então,
a
flor confunde-se com o poema, mas ainda não é
o
poema. Para que ele nasça, a flor precisa
de
encontrar cores mais naturais do que essas
que
a natureza lhe deu. Podem ser as cores do teu
rosto
– a sua brancura, quando o sol vem ter contigo,
ou
o fundo dos teus olhos em que todas as cores
da
vida se confundem, com o brilho da vida. Depois,
deito
essas cores sobre a corola, e vejo-as descerem
para
as folhas, como a seiva que corre pelos
veios
invisíveis da alma. Posso, então, colher a flor,
e
o que tenho na mão é este poema que
me
deste.
Nuno Júdice, Geometria
variável, Lisboa, Dom Quixote, 2005
POÉTICA
Quero
que o meu poema fale de barcos e de azul, fale
do
mar e do corpo que o procura, fale de pássaros e
do
céu em que habitam. Quero um poema puro, limpo
do
lixo das coisas banais, das contaminações de quem
só
olha para o chão; um poema onde o sublime nos
toque,
e o poético seja a palavra plena. É este poema
que
escrevo na página branca como a parede que
acabou
de ser caiada, com as suas imperfeições
apagadas
pela luz do dia, e um reflexo de sol
a
gritar pela vida. E quero que este poema desça
às
caves onde a miséria se acumula, aos bancos onde
dormem
os que não têm teto nem esperança,
às
mesas sujas dos restos da madrugada, às
esquinas
onde a mulher da noite espera o último
cliente,
ao desespero dos que não sabem para onde
fugir
quando a morte lhes bate à porta. E canto
a
beleza que sobrevive às frases comuns, às
palavras
sujas pelo quotidiano dos medíocres,
aos
versos deslavados de quem nunca ouviu
o
grito do anjo. E digo isto para que fique, no
poema,
como a pedra esculpida por um fogo divino.
Nuno Júdice, A Matéria
do Poema. Lisboa, Dom Quixote, 2008, p. 11.
GUIA DE
CONCEITOS BÁSICOS
Use o poema para
elaborar uma estratégia
de sobrevivência
no mapa da sua vida. Recorra
aos dispositivos da
imagem, sabendo que
ela lhe dará
um acesso rápido aos recursos
da sua alma.
Evite os atolamentos
da tristeza, e
acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã
quando o seu tempo
se estiver a
esgotar. Se precisar de
substituir os
sentimentos cansados
da existência,
reinstale o desejo
no painel do
corpo, e imprima os sentidos
em cada nova
palavra. Não precisa
de dominar todos
os requisitos do sistema:
limite-se a
avançar pelo visor da memória,
procurando a
ajuda que lhe permita sair
do bloqueio.
Escolha uma superfície
plana: e deslize
o seu olhar pelo
estuário da
estrofe, para que ele empurre
a corrente das
emoções até à foz. Verifique
então se
todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e
a hora em que o sonho
se converte em
realidade, para que poema
e vida coincidam.
Nuno
Júdice, in revista NEO #9, 2009
Analisa comparativamente os poemas tendo em conta os seguintes aspetos:
- Conceção de poema;
- Perfil psicológico do sujeito poético;
- Linguagem e estilo.