sexta-feira, 16 de setembro de 2011

DONA URRACA (Jorge de Sena)


                                    
         
          
       
Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.
            
Dona Urraca é boa dama
para as donzelas que tem.
Quando elas adoecem
logo o físico ali vem.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

Põe o gorro na cabeça,
não se vê como está nu.
Mas ao dar a medicina
é como tutano cru.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

Físico prodigioso,
que tudo cura por bem.
Mas doenças de donzela
el'cura como ninguém.

Dona Urraca tem um físico
que cura toda maleita.
Quando Dona Urraca geme,
logo o físico se deita.

E dor's de mal maridada,
Dona Urraca que o diga.
Pois antes que el'apareça
aqui se acaba a cantiga.

Dona Urraca tem um físico...
        
          
Do chão, Dona Urraca ergueu os olhos para ele, que continuava montado.
— Vem. Quero contar-te tudo primeiro.
Ele apeou-se, subiu as escadas um pouco atrás dela e, como que arrastado na aragem do vestido roçagante, seguiu-a até aos aposentos.
Dona Urraca encostou-se no vão da grande fresta, de costas para ele, e começou a falar. Mas o que ele ouvia dentro de si era diferente.
         
Eu era muito moça e muito inocente quando meu pai me casou com Gundisalvo.
         
Eu era muito moça, mas dia e noite sonhava com os homens, desde que uma vez vira meu pai nu.
        
Nesse tempo, não vivíamos aqui, mas na corte do Imperador, ou nos acampamentos da Ásia, ao serviço dele.
Gundisalvo era muito mais velho do que eu e enviuvara três vezes antes de casar comigo.
        
        
        
Quando meu pai me fez saber que aprasara casar-me com Gundisalvo, que era seu irmão de armas e se parecia com ele, nos modos e no porte, eu sonhava só com Gundisalvo, e a espada dele, que lhe pendia à cinta, entrava por mim dentro a rasgar-me, como eu não me atrevia a sonhar que meu pai fizesse comigo, e como eu vira que ele ia fazer a uma donzela que gritava.
          
         
Dizia-se que ele tinha matado as outras, e as minhas donzelas e a minha ama todas me avisaram disso. Eu, cheia de medo, atrevi-me a falar a meu pai. Estou ainda a vê-lo rir-se à gargalhada, respondendo que Gundisalvo era seu irmão de armas, que as donzelas e as amas solteironas não entendiam nada dos homens, nem do que podia matar as mulheres casadas. Eu tremia de medo. E disse-lhe que, se era assim, e eu tinha de ir-me para longe dele, não me queria casar. E mais disse que não entendia como ele me casava com um homem tão mais velho que eu, que já tinha tido tempo de, casando com elas, matar três mulheres. Queria ele que também me matasse a mim? Meu pai deixou de rir e, com muito carinho, sentou-me no seu colo.
        
E, quando me disseram que as três mulheres dele tinham morrido, eu tive muito medo, mas pensei que, para ser mulher de verdade e do meu pai, era preciso morrer assim. E outro medo eu tive que me fazia tremer. Eu seria de Gundisalvo, que me levaria para longe e me mataria, sem que meu pai ali estivesse para sentar-me no seu colo, o que era o maior prazer que eu tinha. Se as três mulheres de Gundisalvo não tinham resistido, era porque ele não seria irmão de armas dos pais delas.
        
        
        
        
        
        
E, fazendo-me festas, explicou-me que Gundisalvo não era velho, como ele também não era, e eu é que os julgava velhos porque as donzelas sempre acham velhos os pais. E que as três mulheres dele as conhecera: uma, morrera de parto (e eu jurei para mim que não teria filhos), outra, desvirgara um pajem e ele mandara matar os dois, cortando a cabeça a ela, e a ele tudo e a cabeça também (e eu jurei que nunca teria pajens ao meu serviço), e a outra morrera de doença nas entranhas, porque não era perfeita e não servia para Gundisalvo (e eu jurei que, se era perfeita para meu pai, o seria também para Gundisalvo).
        
Mas meu pai explicou-me de que elas tinham morrido. Uma de parto (e eu jurei que só teria filhos que não fossem, de Gundisalvo), outra por infiel com, um pajem ainda virgem (e eu que, como as outras meninas bem nascidas, mandava aos pajens que se mostrassem, e achava que eles não eram iguais a meu pai, jurei que não teria nunca ao meu serviço senão homens feitos, para ver se eram ou não iguais a ele e a Gundisalvo), e a outra por não servir a Gundisalvo (e, se eu não servisse, morreria contente como esperava morrer).
        
        
Logo que casámos, vi que Gundisalvo era muito diferente do que meu pai pensava, e chorei lágrimas amargas. E como podia eu confessar-me a meu pai e fugir para ele, se meu marido aceitara governar uma marca longínqua, e logo depois meu pai morreu numa batalha com os árabes? Eu não podia compreender como haviam morrido, do que se dizia que fora a morte delas, as duas mulheres que ele não matara. Mas que esta lhe tivesse sido infiel, e fazendo com um pajem o que ele me não fazia a mim e por certo não fizera a ela, isso eu compreendia. Gundisalvo deixava-me sozinha longas temporadas e, quando voltava, era como um terno pai para mim. Quantas noites, aconchegada nos seus braços, que era como ele queria que eu dormisse, eu tentei que ele o não fosse, mas o marido abençoado pela Santa Madre Igreja, a que eu tinha direito, e que meu pai me tinha dado. Até que um dia, em que ele mais terno era comigo, eu lhe perguntei como ele fizera com as outras esposas, e se não queria, como eu não queria, ter filhos. E ele respondeu-me que, morto meu pai, tudo morrera para ele, e que me guardaria como filha. Mas que, se eu não me sentisse feliz, ele iria para não mais voltar, e eu seria livre de viver como quisesse, e de procurar o homem que ele não era para mim. Eu fiquei calada, de lágrimas secas, e nessa mesma noite ele partiu para sempre.
        
        
        
Logo que casámos, no próprio dia do casamento Gundisalvo me levou para longe, à frente dos seus cavaleiros, para tomar posse da marca bem longínqua cujo governo pedira. E, na primeira noite em que acampámos, vi que ele e os seus cavaleiros eram muito outros do que eu imaginava que homens pudessem ser. Eram como dois pajens que uma vez eu surpreendera. E Gundisalvo, no meio deles e com eles, que riam, gritava-me que meu pai era seu irmão, sim, e por isso me guardara para ele, até eu ter idade de casar. E que seria um pai para mim. E todos riam às gargalhadas, pulando ou espojando-se diante de mim, com as túnicas arregaçadas. Quanto mais eu gritava, tapando os olhos com, as mãos, mais eles ficavam desvairados, e foi então que Gundisalvo chamou um deles e mandou que me desvirgasse, e agarraram-me, e esse desvirgou-me com o punho da espada. Todos os homens que conheci não me fizeram esquecer essa noite senão tu. Quando saia a combater, por meses e meses, deixava-me Gundisalvo no castelo, um castelo negro e escuro, perdido nas névoas de um pantanal sombrio, à guarda de umas mulheres que se vestiam como eles, e que dormiam umas com as outras, e que me obrigavam a dormir com elas. Quando vinha de seus fossados, Gundisalvo dormia comigo, e sempre connosco dormia um dos cavaleiros, às vezes mais do que um em cada noite. Mas nenhum deles, e eram homens muito belos, jamais dormia do meu lado.
        
Sozinha, no meu quarto, sabendo que ele não voltaria, fiquei desesperada. Chamei um dos seus escudeiros, moço gentil, e mandei que me possuísse. O medo dele era muito, mas fez de mim uma mulher. Depois, sempre que ele estava no castelo, eu arranjava modo de ele ficar comigo. E o medo e o respeito a Gundisalvo davam-nos um prazer dobrado.
        
Um deles, porém, uma tarde, ao cruzar-se comigo num corredor do castelo, como que hesitou, e eu voltei-me e agarrei-o, e arrastei-o para minha câmara, e fiz dele o homem que ele não era, para ter o homem que não tinha tido. Depois disso, e sempre que era vez de ele ficar connosco, esperávamos que Gundisalvo adormecesse... E era o que fazia mais ardente o amante que eu escolhera.
          
           
O Físico Prodigioso (novela)1966/1977
Jorge de Sena (1919-1978)
            

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/09/16/Urraca.aspx] 

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O FÍSICO PRODIGIOSO (Jorge de Sena)

    
    
        
Ao rio perguntei por meu amigo
aquele que há tanto é partido,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u será que ele se há banhado,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é partido
u lavou triste seu corpo velido,
e por quem morro, ai!
        
Aquele que há tanto é 'longado
e u será que se foi lavado,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amigo
e u se lavou de dormir comigo,
e por quem morro, ai!
        
Ao rio perguntei por meu amado
e u se lavou de nosso pecado,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de dormir comigo
e seu retrato foi nas águas vivo,
e por quem morro, ai!
        
E u se lavou de nosso pecado,
aquele que há tanto é 'longado,
e por quem morro, ai!
        

        
As três donzelas vinham cantando pela margem do rio uma cantiga que uma delas, de repente, começara de improvisar; e as vozes das três juntavam-se para repetir variada cada estrofe que a primeira primeiro cantava. Os passos delas mal se sentiam, não fora os vestidos que roçagavam leves a verdura, e elas seguravam na ponta dos dedos.
        
        
Num leve espadanar de nuvens pálidas que da verdura se elevavam com seus passos, as três deusas, pois se via que eram elas, vinham vindo nuas, de cabelos soltos, e os seios delas devagar dançavam rijos, enquanto as coxas alternavam de róseo brilho a cada lado dos negros triângulos, e os braços se erguiam, ondulantes, mostrando o doce côncavo sombrio.
        
Nisto, a primeira, que vinha um pouco adiantada, tremeu da voz, e calou-se num ciciado sopro e, silenciando as outras com um gesto, com outro gesto apontou. As três ficaram a olhar aquele jovem resplandecente, cuja pele era de mármore sombreado de pêlos que, na cabeça, eram uma suave cabeleira loira. E, vendo-o suspirar, entreolharam-se e desviaram de pudor os olhos ante maravilha tal, em que tudo era mais e maior que uma donzela se atrevia a imaginar.
        
De súbito, as deusas pararam e fitaram-no risonhas, e, com os olhos brilhando como fogo, mediam-no deitado, da cabeça aos pés. Um cálido tremor o percorreu, e um anseio opresso lhe ocupou o peito: suspirou.
        
        
        
        
        
        
        
Mas logo o pudor delas se lhes transformou num afogueado fascínio. E os olhos que se haviam desviado perscrutaram em volta, a ver se ele estava só. E aproximaram-se um pouco mais. O cavalo, que ficara fitando-as, sacudiu a cabeça e relinchou de leve.
        
As deusas, sorrindo do suspiro dele, avançaram mais. E era como que uma ardência o olhar delas, que pelo seu corpo se pregava, e a que o corpo, palpitando, correspondia pouco a pouco. Cupidinhos esvoaçaram tocando flautas.
        
        
Elas estremeceram, e pararam, como congeladas, no medo que ele despertasse. Mas ele apenas respirou mais fundo, entrecortadamente, como se outro respirar do sangue, convergindo, interferisse no exalar opresso.
E as deusas tremularam na neblina que as envolvia agora, com os olhos incitando-o a que se não movesse. E ele apenas se espreguiçou, para que o corpo se expusesse mais, no torpor violento que o invadia.
        
        
        
Foi quando à volta dele surgiu repentinamente um precipitado redemoinho que o envolvia, com regougos ciciados. As donzelas, de olhos esbugalhados, não ousavam entender o que se passava, nem a inocência delas o entenderia. As deusas sucediam-se num turbilhão por sobre ele, um turbilhão em que os seios saltavam, e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que ele se enterrava. Uma dolorida e prazeirosa cócega o percorreu num arranco. As donzelas recuaram aterradas para as árvores próximas, como se tivesse de repente chovido uma água em que as deusas se embebiam. E ele, estendendo os braços num abraço enclavinhado, abriu os olhos e imaginou que, satisfeita enfim a sede de tantos anos, o Demónio o deixaria para sempre.
        
O Físico Prodigioso (novela)1977
Jorge de Sena (1919-1978)



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/09/09/FisicoProdigioso.aspx]        

sábado, 13 de agosto de 2011

POEMA-MONTAGEM (Raul Brandão/José Carreiro)

     
http://www.guayasamin.com/pages/index.html
                
     
      
I

Tem as mãos como cepos.
Para contar fio a fio a sua história
bastava dizer como as mãos se lhe foram deformando
e criando ranhuras, nodosidades, côdeas,
como as mãos se foram parecendo
com a casca de uma árvore.
O frio gretou-lhas,
a humidade entranhou-se,
a lenha que rachou endureceu-lhas.
Sempre a comparei à macieira do quintal:
é inocente e útil e não ocupa lugar,
e não vem primavera que não dê ternura,
nem inverno sem produzir maçãs.
            
Há seres criados de propósito para os serviços grosseiros.
Por dentro a Joana é só ternura, por fora a Joana é denegrida.
A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também as árvores.
              
Mal se compreende que depois de uma vida inteira
esta mulher conserve intacta a inocência de uma criança
e o pasmo dos olhos à flor do rosto.             
             

Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/13/humus.aspx]


     
exposición “CUBA PINTA A GUAYASAMÍN”
    
            
     
II

Todos nós somos árvores.
Há que tempos que deitamos flor
pelo lado de dentro.
Fomos sempre construções vivas,
árvores estranhas que bracejam para o interior
do tronco, ramos e tinta,
mais ramos desmedidos e tinta,
revestidos de casca pelo lado de fora.
Foi por dentro que crescemos,
e só por dentro nos era lícito crescer,
cada vez mais alto até a morte intervir.
           
Até as árvores estranhas, até as árvores só tronco,
que metiam os ramos e a tinta para o interior,
bracejam à custa de gritos ramos e tinta,
ramos desmedidos e tinta para o lado de fora.
               
Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/20/humus2.aspx]
  

               MANOS DEL TERROR - OSWALDO GUAYASAMÍN, MUSEO GUAYASAMÍN (QUITO, ECUADOR)
    
      
     
    
III

Continham-na arames enferrujados,
o medo da morte, o hábito de crer em Deus
(sabendo bem que deus já não existia),
fantasmas, cacos de armadura
que derruíram de um dia para o outro.
       
Descobrir que não há Deus,
que alegria! Põe a gente à vontade.
Respira-se de outra maneira.
Descobrir que a morte não é inevitável
endurece. O mundo muda de aspecto.
Agora é que eu contemplo a vida– e me perco na vida.
Eu sou a árvore e o céu, parte do espanto,
vivo e morro ligado a isto.
       
Com que destino rio ou choro
entre o enxurro de ouro
e os impulsos tremendos
que vêm não sei donde
e caminham desabaladamente
para um fim que não distingo.
       
Tenho medo de mim mesmo!
Que é isto, este sonho, esta dor,
esta insignificância entre forças desabaladas?
Onde hei-de pôr os pés?
Nunca o acaso pariu nada tão monstruoso
e tão grotesco como isto a que se chama a vida
Recreação de Húmus, Raul Brandão
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/08/27/humus3.aspx}
  
  
*
  
  
Oswaldo Guayasamín, El grito II, 1983
   
     
      
E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto.
Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer.
A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros.
Os astros, a Terra, esta sala, são uma necessidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo.
Como é possível?
Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil.
E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia – eu o sei até à vertigem – será o nada absoluto dos astros mortos, do silêncio.
     
Vergílio FerreiraAparição, 1959
      
   
Segundo Jean-Paul Sartre, o existencialismo parte exclusivamente do homem (O Existencialismo é um Humanismo). “Neste sentido, o existencialismo é um optimismo, uma doutrina de acção”. O que importa é o que o homem faz com o que fizeram dele. O homem, responsável pela sua existência, constrói, conscientemente, o seu próprio projecto de vida.
   
http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/28/morte.aspx