O sentido da violência erótica violadora da interdição […] se explicita na declaração poética de outra portuguesa, Natália Correia, que une a vivência do excesso à consciência da dimensão telúrica da mulher:
A EXALTAÇÃO DA PELE
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia, Poemas, 1955
No poema, que já traz no título: “A exaltação da pele”, a inscrição da intensidade, com que se quer recriar a libido feminina desreprimida, se inicia com o desejo da experiência dos violentos movimentos da paixão. Em nome desse desejo, um eu feminino, sabedor de sua existência corpórea, abandona a pureza (“sem lírios”), a passividade (“sem lagos”) e a inexpressividade (“sem gesto vago”) exigidos pela interdição patriarcal do prazer e se projeta no discurso pela sua dimensão animal (“fêmea”), instintiva. Livre de condicionamentos, sua identidade inclui o reconhecimento de seu poder de sedução (“como as sereias”) e o erotismo é requerido pela amante, para além do sonho (3º e 4º versos) e com a força das marés (a sua metade é agora “mar” e não mais serena como os lagos).
A referência poética ao existir “suspensa de mundos cintilantes pelas veias”, numa leitura possível, parece-nos conduzir para o estado pletórico dos órgãos, no momento da conexão erótica.
Na dicção nataliana, todo esse conjunto metafórico constrói a imagem de um “erotismo ardente” (BATAILLE, 1980, p. 36) a ser buscado pela mulher, como um dos modos de desopressão ecológica da subjetividade.
Já em “Cosmocópula”, Natália Correia cria um universo erotizado, pelo poder genesíaco de sucessivamente exceder-se, tal qual acontece ao corpo na cópula. Sua carga imaginal propicia-nos a perceção da unicidade cósmica, do todo interconectado. Assim:
The Flying Green Penis Monster, from Decretum Gratiani with commentary of Bartolomeo de Brescia, Italy, 1340-1345 |
COSMOCÓPULA
I
Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras
II
O corpo é praia
a boca é a
nascente
e é na vulva que
a areia é mais sedenta
poro a poro vou
sendo o curso de
água
da tua língua
demasiada e
lenta
dentes e unhas
rebentam como
pinhas
de carnívoras plantas
te é meu ventre
abro-te as coxas e
deixo-te crescer
duro e cheiroso como o
aloendro
a boca é a
nascente
e é na vulva que
a areia é mais sedenta
poro a poro vou
sendo o curso de
água
da tua língua
demasiada e
lenta
dentes e unhas
rebentam como
pinhas
de carnívoras plantas
te é meu ventre
abro-te as coxas e
deixo-te crescer
duro e cheiroso como o
aloendro
Natália Correia
Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e SatíricaEd. Afrodite, Lisboa, Dezembro de 1966
Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e SatíricaEd. Afrodite, Lisboa, Dezembro de 1966
Ancient roman gold ring with a depiction of phallus (symbol of fertility and good fortune). |
Ora pelo recurso das metáforas, ora pelo dos símiles, vai-se espraiando a sexualidade, em sua analogia com a força e os elementos naturais – espraiamento que, opondo-se à fixação do relacionamento sexual naquelas partes do corpo ligadas à reprodução, promove a reavaliação poética do que, historicamente, tem dado significado à expressão corporal, territorializando-se existencialmente suas pontuações eróticas. Valoriza-se o prazer, pondo-se em alerta todos os sentidos imbuídos da Natureza e, assim, questiona-se o já cristalizado socioculturalmente, em favor de uma realização mais plena da comunhão dos corpos sem barreiras ao gozo feminino.Esse processo reavaliador aponta para uma nova economia libidinal, onde a figura da mulher é construída através da consciência da seletividade e da ultrapassagem do domínio genital masculino, incluindo cada “poro” “dentes e unhas”, o excesso e o prolongamento (“...vou sendo o curso de água/ da tua língua demasiada e lenta”) do “mergulho” ecologicamente preparado pelos amantes.
Angélica Soares, “Por uma recriação ecológica do erotismo: flashes da poesia brasileira e portuguesa contemporâneas de autoria feminina”, pp. 91-92.
Poderá ainda gostar de ler:
► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise
literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia,
2021 (3.ª
edição).
► “A espacialidade erótica/ecológica em poetisas portuguesas contemporâneas”, Angélica Soares, TERCEIRA MARGEM: Revista da Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano VI, nº 7, 2002.
NATÁLIA CORREIA TEVE PARTICIPAÇÃO ACTIVA NA HISTÓRIA DAS EDIÇÕES AFRODITE. Foi a responsável pela composição da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, edição pela qual respondeu em Tribunal. Escolheu os autores e poemas, escrevendo ainda o prefácio e as notas bibliográficas. Posteriormente, "avalizou" a edição pirata da Antologia, após o "desbaste" que as forças policiais do Estado Novo deram a alguns exemplares da edição original. Na editora de Fernando Ribeiro de Mello publicou três livros: um de poesia, intitulado O Vinho e a Lira (também alvo da censura), e duas peças de teatro: O Encoberto e Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, esta numa luxuosa edição, da qual existem mil e quinhentos exemplares numerados e autografados pela autora. Escreveu ainda um dos comentários à Arte de Furtar. Da edição original da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, há uma tiragem especial de 500 exemplares numerados e autografados pela escritora nascida nos Açores. Nesta Antologia, Natália Correia apresenta-se assim:
Natália de Oliveira Correia, nasceu em 1923 na ilha de S. Miguel (Açores) vindo, criança para Lisboa, onde fez os seus estudos liceais.
Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comodidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia. Trata-se de um equívoco em que facilmente resvalam quantos não discernem a poesia senão através de esquemas. A verdade apresenta um aspecto totalmente inverso desta interpretação. Entendendo a poesia como substância mágica desorbitada da sua funcionalidade primitiva, que o poeta desespera por restituir à sua natureza orgânica primordial, afim de a tornar eficaz na recriação do mundo, por esta linha, «ante» e «post» surrealista, se presta a poesia de Natália Correia a ser integrada num movimento que não inventou mas apenas focou esta intrínseca constante do fenómeno poético.
Publicou teatro, ensaio e os seguintes livros de poesia: «Poemas» (1954); «Dimensão Encontrada» (1957); «Passaporte» (1958); «Comunicação»(1960) e «Cântico do País Emerso» (1961).
O erotismo, como ressumbração de uma vivência amorosa individual está longe de caracterizar a obra desta poetisa. Todavia, no sentido lato de um universo erotizado, animado pela impaciência genesíaca de sucessivamente se exceder, é-lhe gradual o desenvolvimento da perspectiva erótica que se afirma, sobretudo, em «Cântico do País Emerso». Esta evolução corresponde a um aprofundamento do mistério telúrico da mulher, que é a própria jornada da sua poesia, resultado no comprazimento de se observar como força genesíaca, deslumbradamente actuante na cópula primordial que a terrena espelha.
► "EDITOR CONTRA: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite"
"EDITOR CONTRA: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite"
http://www.montag.com.pt/editorcontra.html
—
LIVRO DO ANO EM 2015 no OBSERVADOR e no EXPRESSO
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Pré-publicação no OBSERVADOR: http://observador.pt/espec…/sade-salazar-e-o-dali-de-lisboa/
—
"Uma aprofundada investigação sobre uma figura incontornável da cena cultural portuguesa, resgatando-a do enxovalho da memória"
DIOGO VAZ PINTO / JORNAL i / http://goo.gl/EIhMSQ
—
"Livro exemplar"
JOSÉ MÁRIO SILVA / EXPRESSO / http://goo.gl/SPx3o8
—
"A homenagem que aqui se lhe presta não podia ser mais justa"
SARA FIGUEIREDO COSTA / BLIMUNDA /http://www.josesaramago.org/blimunda-44-janeiro-de-2016/
—
"Inegável bom gosto gráfico e paginação elegante"
JOÃO MORALES / TIME OUT
—
"Magnífico trabalho"
LER, Primavera 2016
—
"Trabalho pioneiro, mas complexo e rigoroso, com investigação extensa"
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO / JORNAL DE LETRAS
—
Exibido no programa LITERATURA AQUI
RTP2, 05.04.2016 / http://www.rtp.pt/play/p1990/e230687/literatura-aqui
http://www.montag.com.pt/editorcontra.html
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LIVRO DO ANO EM 2015 no OBSERVADOR e no EXPRESSO
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Pré-publicação no OBSERVADOR: http://observador.pt/espec…/sade-salazar-e-o-dali-de-lisboa/
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"Uma aprofundada investigação sobre uma figura incontornável da cena cultural portuguesa, resgatando-a do enxovalho da memória"
DIOGO VAZ PINTO / JORNAL i / http://goo.gl/EIhMSQ
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"Livro exemplar"
JOSÉ MÁRIO SILVA / EXPRESSO / http://goo.gl/SPx3o8
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"A homenagem que aqui se lhe presta não podia ser mais justa"
SARA FIGUEIREDO COSTA / BLIMUNDA /http://www.josesaramago.org/blimunda-44-janeiro-de-2016/
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"Inegável bom gosto gráfico e paginação elegante"
JOÃO MORALES / TIME OUT
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"Magnífico trabalho"
LER, Primavera 2016
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"Trabalho pioneiro, mas complexo e rigoroso, com investigação extensa"
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO / JORNAL DE LETRAS
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Exibido no programa LITERATURA AQUI
RTP2, 05.04.2016 / http://www.rtp.pt/play/p1990/e230687/literatura-aqui
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/05/14/cosmocopula.aspx]