"O nascimento de Vénus", de Botticelli
A mulher, só por excepção em «Esvelta Surge!»
e, até mesmo, em «Vénus», se aproxima da pintura erótica de um Boticelli, ela
também aqui como uma Sílfid, a lembrar-nos Camões.. A sua presença, em Camilo
Pessanha, é marcada por um certo idealismo,
resultante do seu sentido de frustração até no amor, frustração que no soneto
«Esvelta Surge!» é vencida por um assomo de coragem.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4ª ed.), p. 355. (1ª ed. 1977)
ESVELTA SURGE! VEM DAS ÁGUAS, NUA
Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! — para o expor à Morte...
Mas que ora — a infame! — não se te anteponha.
A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.
Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! — para o expor à Morte...
Mas que ora — a infame! — não se te anteponha.
A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Camilo Pessanha
QUESTIONÁRIO
1. A figura feminina é caracterizada em dois momentos de forma diferente.
1.1. Faça a sua caracterização nesses dois momentos.
1.2. Que consequências se retiram dessa dupla caracterização?
2. Comente o esquema:
Elemento feminino
|
……
|
Elemento masculino
|
|
| |
|
| |
|
Vénus e hidra
|
Virgem e
não virgem
|
3. A relação entre o eu e o tu é dada em
termos de luta.
3.1. Destaque o vocabulário que refere essa luta.
3.2. Que se pode concluir dessa relação?
4. O sujeito poético despreza as convenções de ordem moral.
4.1. Qual a frase que indica esse desprezo?
5. Que elementos simbólicos se encontram neste texto?
6. Qual será o tema do soneto?
3.1. Destaque o vocabulário que refere essa luta.
3.2. Que se pode concluir dessa relação?
4. O sujeito poético despreza as convenções de ordem moral.
4.1. Qual a frase que indica esse desprezo?
5. Que elementos simbólicos se encontram neste texto?
6. Qual será o tema do soneto?
(Aula
Viva.
Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 314)
TEXTOS DE
APOIO
PSEUDO-ÁPICE
Para a nossa leitura interessa frisar que esta
invocação-convite a uma mulher de formas perfeitas, bem definidas e sedutoras,
feita pelo “formoso, moço e casto, forte” gladiador — desdobramento do eu num espaço mitológico — não existe
senão no plano do desejo (repare-se como as noções de futuro se enlaçam no
Presente do Indicativo). Esta mulher, Andrómeda ou Vénus Anadiómena, como diz
Óscar Lopes (Lopes, 1973, p. 386), com quem anseia compartilhar um orgasmo, seria
a configuração sublimada de todos os seus ideais de comunicação, de amor, de perfeição,
de plenitude, que já vimos pouco a pouco destruídos nos passos anteriores. O surpreendente
é que mesmo neste campo do imaginário não falta a ameaça da Morte — “A hidra
torpe” — e só mesmo aí, no sonho, a sua destruição, enquanto princípio de
caducidade, seria possível, de modo a permitir a perenidade da plenitude. E se
tudo isto transcorre numa esfera onírica, a distância para a concretização
torna-se incomensurável.
PAISAGENS DO DESEJO E DA MELANCOLIA
Em “Desce em
folhedos…” temos uma paisagem campestre, dominada pela vegetação; em “Esvelta
surge!...” uma cena marinha. Em ambos, a voz lírica se dirige a uma figura
feminina que surge do seio dos elementos naturais, de uma forma que é,
entretanto, muito diferente em cada um deles.
[…]
Como no antecedente, o desejo materializa uma figura feminina com quem o
sujeito deseja unir-se.
Isolado, como veio nas várias edições em livro, não aparecia reforçada essa
direção de leitura, nem se opunha este soneto tão vigorosamente aos dois outros
sonetos que o poeta intitulou justamente “Vénus”. Lido este em conjunto com o
anterior, permite que vejamos os dois blocos como dois momentos complementares
da invocação da deusa da formosura, do amor e dos prazeres. Neste díptico, no
contexto integrativo, é ela imagem do desejo de comunhão com a paisagem natal,
de recuperação da origem. Naquele outro díptico, pode ela ser vista como uma
figuração dos efeitos adversos do exílio: primeiro, como decomposição do ideal
amoroso; depois, como recomposição, sob o efeito da nostalgia, do ideal desfeito.
De facto, o primeiro soneto da série “Vénus”, que também parece aludir ao
conhecido quadro de Botticelli (“De pé, flutua, levemente curva, / Ficam-lhe os
pés atrás, como voando…”), celebra não o nascimento ou a conquista, mas a morte
da beleza. Ela não é, ali, uma figura inteira, oferecida à contemplação, como
no quadro ou no soneto “Esvelta surge!...“, mas um “esboço na marinha turva”6.
Não há belas formas, nem anseio de posse7. A forma perfeita está ali
reduzida a carne apenas, que se desfaz e exala um odor que embebeda e atrai8.
E a dissolução final do orgânico na mineralidade das “conchas, pedrinhas,
pedacinhos de ossos” não permitirá, pela eliminação do desejo carnal, a
contemplação da “impecável figura peregrina” — da beleza ideal invocada na
primeira quadra do segundo soneto de “Vênus”— mas apenas a sua perceção como
uma “fúlgida visão”, uma “linda mentira”. À perspetiva em que triunfa o tema do
ideal perdido e a afirmação da inutilidade dos esforços de reconstrução ou
recuperação, que caracteriza os sonetos do díptico “Vênus” já nos temos
dedicado, porém, em outros momentos deste trabalho. Não nos estenderemos, pois,
na sua análise. À nossa leitura interessava, aqui, apenas o realce dos contrastes,
para afirmar a singularidade dos sonetos “Desce em folhedos…” e ”Esvelta
surge!...” nos quais acreditamos identificar o momento eufórico da imaginação
produzindo o desejo de comunhão total com o mundo.
Na nossa leitura de “Esvelta surge!...”, a imagem feminina é também,
portanto, projeção ou criação do desejo de comunhão. Mas é certo que até o
quarto verso, a leitura é ambígua: tanto podemos ler os verbos dos dois
primeiros no imperativo, quanto podemos lê-los no presente do indicativo. Isto
é: como expressão de um desejo, ou como narração. O quarto verso, ao estabelecer
um diálogo da voz lírica com essa figura, nos leva a reler os três primeiros, reforçando
o entendimento dos verbos como imperativos. Ambas as leituras, porém,
permanecem ainda possíveis: o poeta descreve o surgimento, das águas, de uma
figura feminina e então a ela se dirige; a voz do poeta deseja esse surgimento,
comanda-o num discurso em que todas as ações se deixam ler no condicional. É
esta última a nossa leitura preferencial, reforçada principalmente pela sequência
dos dois sonetos, que nos faz ler no mesmo modo verbal “Esvelta surge! Vem das
águas...!” e ”Oh vem! De branco! [...] Os ramos, leve, a tua mão aparte”. Por
sua vez, a leitura deste segundo soneto implica a releitura do primeiro, pois
aqui a convencionalidade da representação mitológica, a morte metaforizada em
monstro clássico e a reiterada afirmação da castidade do sujeito obrigam-nos a
afastar a clave realista que ainda podia persistir naquele.
Nostalgia,
exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, pp. 74, 79-83.
ISBN 10: 85-314-0563-7. ISBN 13:
978-85-314-0563-1
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(6) A apresentação do momento de decomposição da forma física como similar
ao momento de criação de um quadro, o seu esboço, lembra o célebre poema ”Une
Charogne”, de Baudelaire. Lemos ali: “Les formes s’effaçaient et n’étaient plus
qu’un réve / Une ébauche lente à venir, / Sur la toile oubliée, et que
l’artiste achève / Seulement par le souvenir”. Seria interessante desenvolver
uma leitura comparativa entre o díptico Vénus
e o poema Une Charogne. Em ambos, a
contemplação do corpo morto se faz de modo a associá-lo ao momento de origem da
vida, à cópula: no de Baudelaire, mais diretamente, pois logo na segunda
estrofe a carniça, de pernas para cima, é comparada a uma mulher lúbrica, numa
imagem forte, que repercutirá ao longo de todo o poema; no de Pessanha, de modo
apenas insinuado, na descrição do movimento da água do mar:”Pútrido o ventre,
azul e aglutinoso,/ Que a onda, crassa, num balanço alaga, / E reflui (um
olfato que se embriaga) / Como em um sorvo, múrmura de gozo”.
(7) Não importa muito à análise, mas registe-se que, caso se trate mesmo
aqui de uma alusão ao quadro de Botticelli, ela opera uma confusão, comum a
outras obras do período (por exemplo, “Ouro sobre Azul”, de Raimundo Correia),
de Afrodite Urânia e Afrodite Pandémia. Uma explicação para essa assimilação,
que atribui uma carga erótica inesperada à construção alegórica renascentista,
poderia talvez encontrar-se na erotização finissecular da beleza frígida e
distante.
(8) Além do verso já referido — v. 6: E reflui (um olfato que se embriaga)
—, lemos ainda nesse soneto: v. 3: O cheiro a carne que nos embebeda! E já que
aludimos, em nota anterior, ao poema de Baudelaire, talvez valha a pena notar
que o cheiro do corpo decomposto, que lá comparece apenas como elemento negativo
(como puanteur) tem no poema de
Pessanha um sentido muito mais ambíguo, pois parece trazer ao sujeito
contemplativo alguma espécie de prazer, de transporte dos sentidos.
Aphrodite betritt die Augeninsel © Ernst Fuchs
official website: ernstfuchs-zentrum.com
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AMOR, COMPANHEIRISMO E
CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
Um ardor ainda mais intenso vibra no soneto
«Esvelta surge». Mas este frémito sucessivamente erótico e guerreiro tem como
diástole o soneto anterior em que «a chama do furor declina». Não por acaso, a
terceira edição (1969) de João de Castro Osório inverteu esta ordem. Lidos à
luz desta reordenação, do primeiro para o segundo soneto como que se descreve
uma curva térmica descendente, um abrandamento em que o objecto do desejo se
desmaterializa, se espiritualiza. Este esbatimento do «furor» que se opera de
um para o outro soneto está perfeitamente em ordem com a teoria do desejo de
cariz schopenhaueriano (o desejo acarreta inevitavelmente frustração e
sofrimento, por consequência é sábio extingui‑lo), enunciada explicitamente por Pessanha,
já anteriormente referida. Assim, a decisão deste leitor (real) que se propõe
interpretar conjuntamente os dois sonetos, iluminando‑os reciprocamente, funda‑se na filosofia do desejo explicitamente propugnada pelo
escritor.
Os sonetos [“Esvelta surge! Vem das águas, nua” e “Desce
em folhedos tenros a colina”] contrastam no cenário, no tipo de mulher e na postura do sujeito.
É marítimo no primeiro, campestre e bucólico no segundo. A mulher, de Vénus,
transfigura‑se em sílfide. Ao desejo ardente, imperioso, sucede um
apelo suavíssimo, uma súplica doce.
Cenário, mulher e modalidade do desejo
harmonizam‑se
perfeitamente. Na verdade, a primeira quadra do primeiro soneto onstitui uma
descrição de Vénus, enquanto, no segundo, só na segunda quadra é que são
introduzidos alguns, leves, traços da mulher. Ambas surgem em movimento, Vénus
timonando uma concha, a sílfide impelida pela brisa (se no primeiro verso
o sujeito gramatical é «colina», dada a ambiguidade cultivada pelo poeta em que
palavras e versos se cooptam, pode‑se supor como sujeito subentendido a sílfide e «a colina» como complemento directo). Neste pressuposto, a
unidade com a paisagem é sublinhada pela preposição em folhedos tenros, em vez da mais lógica por.
A primeira nota de Vénus é «esvelta»40,
enquanto a da sílfide é «de branco». Uma nota sensual versus uma
nota espiritualizante.
A Vénus «surge» de chofre num espaço aberto,
inteira. A sílfide aparece paulatinamente, rodeada pelo
misterioso chiaro-oscuro do arvoredo,
afagada pela blandícia dos tenros folhedos (o arranhão da silva é um ósculo…),
levada, acariciada pela doce brisa. É a essência feminina dimanada da verdura
aprazível e bucólica, «do imo da folhagem», «do imo do arvoredo».
Diversamente, Vénus emerge das águas do mar
(«Vem das águas, nua»), ressumbrando sensualidade («os rins FLexíveis e o seio fremente…»), concitando as
vagas do desejo carnal («morre‑me a boca por beijar a tua.»).
As atitudes do sujeito são diametralmente
opostas. Irrompe enérgico, decidido, pujante de força ‑ «Eis‑me formoso, moço e casto, forte.» ‑ quebrando as barreiras do «vil pudor» e da
«vergonha», certo de a fazer «desmaiar de amor» sob o seu másculo amplexo, pelo
vigor do seu «pulso de jovem gladiador»41. O que torna este soneto
enigmático é a intromissão da morte‑hidra, que sem ela constituiria uma
celebração gaia do amor físico. Parece que Pessanha não consegue abstrair nunca
do espectro da morte, aqui do monstro da morte. Parece que eros traz no seu rasto o seu indesejável irmão, thanatos.
Mas, julgamos, uma leitura freudianamente ortodoxa
veria neste desejo hercúleo de esmagar a morte a vitória de eros, do desejo da vida sobre a atracção
pela morte. Pelo amplexo sexual o poeta está a afugentar, a defenestrar a
morte, mas uma leitura mais ambivalente está mais de acordo com a psique de
Camilo. É na mesma rocha em que a hidra é esmagada que a cabeça de Vénus
pousará para «ir inclinar‑se, desmaiar de amor». Para ser verdadeiramente disjuntiva, o
local da eliminação da morte não deveria ser o mesmo daquele da consumação
amorosa. Já antes, logo depois de se autocaracterizar nos termos mais
eufóricos, acrescenta ‑ «Tão branco o peito! – para o expor à Morte…» ‑ como intuindo de antemão que aqueles
predicados não são suficientemente fortes para resistir ao poder da
morte. Por ora, todavia, não obstante a vitória da morte ser inelutável, que
não se coloque entre si e a amada pois o poeta é suficientemente hercúleo para a vituperar e despedaçar («Mas que ora –
a infame! – não se te anteponha. A hidra torpe! … Que a estrangulo … Esmago‑a»).
Outra leitura, que diverge desta intromissão
estranha da morte, é desenvolvida por Ester de Lemos que vê no impulso amoroso
e no impulso guerreiro duas faces do mesmo sentimento: «da ideia de amor que,
num belo primitivismo, leva o homem a expor‑se, em todo o esplendor da sua juventude, aos
olhos da mulher, passa‑se insensivelmente a uma ideia de guerra e força, sem se perder de
vista o primeiro impulso»42. Mas se ligarmos o presente soneto com
«Vénus» (conjunto mais congruente para Óscar Lopes do que o díptico que
prevaleceu), a imagem sadia do guerreiro que merece, por provada bravura, a
aquiescência da amada desmorona‑se. Com efeito, a «esvelta» e soberba Vénus é verdadeiramente
estraçalhada por feras ondas (último terceto), o objecto do amor é aniquilado
pelo desejo que suscita. Na interpretação de Anna Klobucka, esta subversão da
alvinitente Anadiómede apresenta inequívocos traços de aniquilamento sádico, de
que o próprio sujeito tem consciência («Em que desvios a razão se perde»): «A
penetração do ventre pútrido, «azul e aglutinoso», da afogada pela onda (logo
desdobrada em ondas: a cópula transforma‑se em rapto múltiplo) produz intenso prazer
tanto nos agentes do combate sexual quanto no sujeito falante do poema que,
testemunhando a cena, se situa no papel de um voyeur ou, antes, de um senteur
delirante de gozo («o cheiro a carne que nos embebeda»)»43.
Portanto, nesta pulsão necrófila que se deleita com a decomposição do corpo
que possui, amor e morte estão misturados, não separados.
Assim, se o primeiro soneto palpita de acção,
o segundo é contemplativo. São agora os olhos a sinédoque do sujeito. Toda a
aspiração do poeta está em olhar platonicamente a imagem da sílfide («Meus olhos querem desposar‑te,/ Reflectir‑te virgem a serena imagem»). A palavra virgem tanto pode referir‑se à mulher como ao olhar do poeta e o verbo
desposar traduz um anseio unitivo, uma unidade a realizar por meio dos olhos,
contemplativamente44. Só que não é uma mulher concreta, é mais um esprit du lieu, a emanação feminina e
etérea do imo, do fundo, da essência dos campos, das florestas. É a sua imagem serena que os seus
olhos querem reflectir, não a
sua presuntiva realidade. É um ser quase lendário, composto de alma de silfo e
carne ou corpo de camélia.
Desta maneira, o fogo passional, os arranques
de forcado dão lugar a um devaneio semi‑onírico, que os «tons adormecidos» dos
folhedos sugerem. Para nós, o elo de ligação dos dois sonetos reside nos «olhos
ardidos» pela «chama do furor», em que se retoma o primeiro soneto no segundo.
A vontade retesada pelo desejo físico e pelo desafio da morte não tem forças para suportar esta tensão por muito
tempo, aspirando ao repouso, ao sossego bucólico da amenidade campestre entificado numa espécie de fada contemplada, espelhada pelos olhos à
distância. Não já a dura rocha e o fragor do estrondear das ondas.
Sentimento e Conhecimento na Poesia de Camilo
Pessanha, João Paulo Barros de Almeida, Coimbra,
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p. 91-95.
_______________________
(40) Mário
Garcia, em «Sobre Camilo Pessanha», in Brotéria,
Vol. 122, Nº 4, Abril 1986, p. 388, assinala o slancio que Barbara Spaggiari descobre no v (em vez do b) deste
adjetivo, contribuindo para o frisson
sensual do seu surgimento
(41) No
poema, já referido, «Se medito no gozo que promete», ferve sem rebuço o desejo
físico: «Desejo, nuns transportes de gigante, / Estreitá‑la de rijo entre meus braços, /
Até quase esmagar nestes abraços/ A sua carne branca e palpitante;»; mas com
laivos de morte, como se depreende, mais que do verbo «esmagar», da invocação
da serpente no símile desenvolvido na terceira quadra. Talvez seja digno de
nota constatar que este poema inaugural oscila entre a atracção pelo amor
erótico e pelo amor, à falta de melhor palavra, narcotizante, esvaído em
devaneio semi‑hipnótico e aconchegante: «Eu quisera também, adormecido, / Dos
fantasmas da febre ver o mar,/ Mas sempre sob o azul do seu olhar,/ Envolto no
calor do seu vestido; Como os ébrios chineses delirantes/ Aspiram, já dormindo,
o fumo quieto/ Que o seu longo cachimbo predilecto/ No ambiente espalhava pouco
antes…». Neste símile final, subentende‑se que o
ardor sensual das três quadras iniciais é assimilado ao estado de
hiperexcitação causado pela droga, e que, ao expressar nas últimas três quadras
finais (a estrutura do poema é
dividida ao meio, em partes simétricas) esse outro amor amodorrado, o poeta
intenta mostrar a sua preferência pelo letargo. Como a mulher em «Interrogação»
o protege da perturbação do crepúsculo, assim também é timoratamente que o
sujeito se coloca sob as «saias» da mulher, para ousar «ver o mar», espaço de
aventura, risco e prova. Teríamos assim in nuce alguns dos vectores da vivência
do amor do poeta.
42 Lemos,
op. cit., p. 49.
(43) Anna
Klobucka, «A
(de)composição de Vénus : reflexões sobre dois sonetos de Camilo Pessanha», in Colóquio/ Letras, nº n.º 104/105,1988, p. 39.
(44) É
devido a este anelo de identificação, de se unir e de perder na
união (como também se viu em «Se andava no jardim») que permite a Esther de
Lemos arriscar que por vezes o poeta parece um místico ‑ «…arriscaremos que Pessanha nos
aparece às vezes como um místico, pela força com que deseja fundir sujeito e
objecto: simplesmente o objecto nunca é Deus.», Lemos, op. cit., pp. 31, 32.
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leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas,
por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio
ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/07/esvelta.aspx]