sábado, 7 de dezembro de 2013

ESVELTA SURGE! VEM DAS ÁGUAS, NUA (Camilo Pessanha)



  "O nascimento de Vénus", de Botticelli

          

A mulher, só por excepção em «Esvelta Surge!» e, até mesmo, em «Vénus», se aproxima da pintura erótica de um Boticelli, ela também aqui como uma Sílfid, a lembrar-nos Camões.. A sua presença, em Camilo Pessanha, é marcada por um certo idealismo,  resultante do seu sentido de frustração até no amor, frustração que no soneto «Esvelta Surge!» é vencida por um assomo de coragem.

Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4ª ed.), p. 355. (1ª ed. 1977)

                  
           
            
            
              
ESVELTA SURGE! VEM DAS ÁGUAS, NUA
              
Esvelta surge! Vem das águas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexíveis e o seio fremente...
Morre-me a boca por beijar a tua.

Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
Eis-me formoso, moço e casto, forte.
Tão branco o peito! — para o expor à Morte...
Mas que ora — a infame! — não se te anteponha.

A hidra torpe!... Que a estrangulo... Esmago-a
De encontro à rocha onde a cabeça te há-de,
Com os cabelos escorrendo água,

Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
         
Camilo Pessanha
          
            
QUESTIONÁRIO

1. A figura feminina é caracterizada em dois momentos de forma diferente.
1.1. Faça a sua caracterização nesses dois momentos.
1.2. Que consequências se retiram dessa dupla caracterização?

2. Comente o esquema:


Elemento feminino
……
Elemento masculino
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Vénus e hidra
Virgem e
não virgem
     

3. A relação entre o eu e o tu é dada em termos de luta.
3.1. Destaque o vocabulário que refere essa luta.
3.2. Que se pode concluir dessa relação?

4. O sujeito poético despreza as convenções de ordem moral.
4.1. Qual a frase que indica esse desprezo?

5. Que elementos simbólicos se encontram neste texto?

6. Qual será o tema do soneto?

(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 314)
          
         
TEXTOS DE APOIO
            
PSEUDO-ÁPICE

Para a nossa leitura interessa frisar que esta invocação-convite a uma mulher de formas perfeitas, bem definidas e sedutoras, feita pelo “formoso, moço e casto, forte” gladiador — desdobramento do eu num espaço mitológico — não existe senão no plano do desejo (repare-se como as noções de futuro se enlaçam no Presente do Indicativo). Esta mulher, Andrómeda ou Vénus Anadiómena, como diz Óscar Lopes (Lopes, 1973, p. 386), com quem anseia compartilhar um orgasmo, seria a configuração sublimada de todos os seus ideais de comunicação, de amor, de perfeição, de plenitude, que já vimos pouco a pouco destruídos nos passos anteriores. O surpreendente é que mesmo neste campo do imaginário não falta a ameaça da Morte — “A hidra torpe” — e só mesmo aí, no sonho, a sua destruição, enquanto princípio de caducidade, seria possível, de modo a permitir a perenidade da plenitude. E se tudo isto transcorre numa esfera onírica, a distância para a concretização torna-se incomensurável.


Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, p. 57.
           
           


            
           
             
           
           
           
PAISAGENS DO DESEJO E DA MELANCOLIA

Em “Desce em folhedos…” temos uma paisagem campestre, dominada pela vegetação; em “Esvelta surge!...” uma cena marinha. Em ambos, a voz lírica se dirige a uma figura feminina que surge do seio dos elementos naturais, de uma forma que é, entretanto, muito diferente em cada um deles.
[…]
Como no antecedente, o desejo materializa uma figura feminina com quem o sujeito deseja unir-se.

Isolado, como veio nas várias edições em livro, não aparecia reforçada essa direção de leitura, nem se opunha este soneto tão vigorosamente aos dois outros sonetos que o poeta intitulou justamente “Vénus”. Lido este em conjunto com o anterior, permite que vejamos os dois blocos como dois momentos complementares da invocação da deusa da formosura, do amor e dos prazeres. Neste díptico, no contexto integrativo, é ela imagem do desejo de comunhão com a paisagem natal, de recuperação da origem. Naquele outro díptico, pode ela ser vista como uma figuração dos efeitos adversos do exílio: primeiro, como decomposição do ideal amoroso; depois, como recomposição, sob o efeito da nostalgia, do ideal desfeito. De facto, o primeiro soneto da série “Vénus”, que também parece aludir ao conhecido quadro de Botticelli (“De pé, flutua, levemente curva, / Ficam-lhe os pés atrás, como voando…”), celebra não o nascimento ou a conquista, mas a morte da beleza. Ela não é, ali, uma figura inteira, oferecida à contemplação, como no quadro ou no soneto “Esvelta surge!...“, mas um “esboço na marinha turva”6. Não há belas formas, nem anseio de posse7. A forma perfeita está ali reduzida a carne apenas, que se desfaz e exala um odor que embebeda e atrai8. E a dissolução final do orgânico na mineralidade das “conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos” não permitirá, pela eliminação do desejo carnal, a contemplação da “impecável figura peregrina” — da beleza ideal invocada na primeira quadra do segundo soneto de “Vênus”— mas apenas a sua perceção como uma “fúlgida visão”, uma “linda mentira”. À perspetiva em que triunfa o tema do ideal perdido e a afirmação da inutilidade dos esforços de reconstrução ou recuperação, que caracteriza os sonetos do díptico “Vênus” já nos temos dedicado, porém, em outros momentos deste trabalho. Não nos estenderemos, pois, na sua análise. À nossa leitura interessava, aqui, apenas o realce dos contrastes, para afirmar a singularidade dos sonetos “Desce em folhedos…” e ”Esvelta surge!...” nos quais acreditamos identificar o momento eufórico da imaginação produzindo o desejo de comunhão total com o mundo.
Na nossa leitura de “Esvelta surge!...”, a imagem feminina é também, portanto, projeção ou criação do desejo de comunhão. Mas é certo que até o quarto verso, a leitura é ambígua: tanto podemos ler os verbos dos dois primeiros no imperativo, quanto podemos lê-los no presente do indicativo. Isto é: como expressão de um desejo, ou como narração. O quarto verso, ao estabelecer um diálogo da voz lírica com essa figura, nos leva a reler os três primeiros, reforçando o entendimento dos verbos como imperativos. Ambas as leituras, porém, permanecem ainda possíveis: o poeta descreve o surgimento, das águas, de uma figura feminina e então a ela se dirige; a voz do poeta deseja esse surgimento, comanda-o num discurso em que todas as ações se deixam ler no condicional. É esta última a nossa leitura preferencial, reforçada principalmente pela sequência dos dois sonetos, que nos faz ler no mesmo modo verbal “Esvelta surge! Vem das águas...!” e ”Oh vem! De branco! [...] Os ramos, leve, a tua mão aparte”. Por sua vez, a leitura deste segundo soneto implica a releitura do primeiro, pois aqui a convencionalidade da representação mitológica, a morte metaforizada em monstro clássico e a reiterada afirmação da castidade do sujeito obrigam-nos a afastar a clave realista que ainda podia persistir naquele.

Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, pp. 74, 79-83. ISBN 10: 85-314-0563-7. ISBN 13: 978-85-314-0563-1

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(6) A apresentação do momento de decomposição da forma física como similar ao momento de criação de um quadro, o seu esboço, lembra o célebre poema ”Une Charogne”, de Baudelaire. Lemos ali: “Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un réve / Une ébauche lente à venir, / Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève / Seulement par le souvenir”. Seria interessante desenvolver uma leitura comparativa entre o díptico Vénus e o poema Une Charogne. Em ambos, a contemplação do corpo morto se faz de modo a associá-lo ao momento de origem da vida, à cópula: no de Baudelaire, mais diretamente, pois logo na segunda estrofe a carniça, de pernas para cima, é comparada a uma mulher lúbrica, numa imagem forte, que repercutirá ao longo de todo o poema; no de Pessanha, de modo apenas insinuado, na descrição do movimento da água do mar:”Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,/ Que a onda, crassa, num balanço alaga, / E reflui (um olfato que se embriaga) / Como em um sorvo, múrmura de gozo”.
(7) Não importa muito à análise, mas registe-se que, caso se trate mesmo aqui de uma alusão ao quadro de Botticelli, ela opera uma confusão, comum a outras obras do período (por exemplo, “Ouro sobre Azul”, de Raimundo Correia), de Afrodite Urânia e Afrodite Pandémia. Uma explicação para essa assimilação, que atribui uma carga erótica inesperada à construção alegórica renascentista, poderia talvez encontrar-se na erotização finissecular da beleza frígida e distante.


(8) Além do verso já referido — v. 6: E reflui (um olfato que se embriaga) —, lemos ainda nesse soneto: v. 3: O cheiro a carne que nos embebeda! E já que aludimos, em nota anterior, ao poema de Baudelaire, talvez valha a pena notar que o cheiro do corpo decomposto, que lá comparece apenas como elemento negativo (como puanteur) tem no poema de Pessanha um sentido muito mais ambíguo, pois parece trazer ao sujeito contemplativo alguma espécie de prazer, de transporte dos sentidos.
           
           
            
           

                                         
Aphrodite betritt die Augeninsel  © Ernst Fuchs
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AMOR, COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO

Um ardor ainda mais intenso vibra no soneto «Esvelta surge». Mas este frémito sucessivamente erótico e guerreiro tem como diástole o soneto anterior em que «a chama do furor declina». Não por acaso, a terceira edição (1969) de João de Castro Osório inverteu esta ordem. Lidos à luz desta reordenação, do primeiro para o segundo soneto como que se descreve uma curva térmica descendente, um abrandamento em que o objecto do desejo se desmaterializa, se espiritualiza. Este esbatimento do «furor» que se opera de um para o outro soneto está perfeitamente em ordem com a teoria do desejo de cariz schopenhaueriano (o desejo acarreta inevitavelmente frustração e sofrimento, por consequência é sábio extinguilo), enunciada explicitamente por Pessanha, já anteriormente referida. Assim, a decisão deste leitor (real) que se propõe interpretar conjuntamente os dois sonetos, iluminandoos reciprocamente, fundase na filosofia do desejo explicitamente propugnada pelo escritor.
Os sonetos [“Esvelta surge! Vem das águas, nua” e “Desce em folhedos tenros a colina”] contrastam no cenário, no tipo de mulher e na postura do sujeito. É marítimo no primeiro, campestre e bucólico no segundo. A mulher, de Vénus, transfigurase em sílfide. Ao desejo ardente, imperioso, sucede um apelo suavíssimo, uma súplica doce.
Cenário, mulher e modalidade do desejo harmonizamse perfeitamente. Na verdade, a primeira quadra do primeiro soneto onstitui uma descrição de Vénus, enquanto, no segundo, só na segunda quadra é que são introduzidos alguns, leves, traços da mulher. Ambas surgem em movimento, Vénus timonando uma concha, a sílfide impelida pela brisa (se no primeiro verso o sujeito gramatical é «colina», dada a ambiguidade cultivada pelo poeta em que palavras e versos se cooptam, podese supor como sujeito subentendido a sílfide e «a colina» como complemento directo). Neste pressuposto, a unidade com a paisagem é sublinhada pela preposição em folhedos tenros, em vez da mais lógica por.
A primeira nota de Vénus é «esvelta»40, enquanto a da sílfide é «de branco». Uma nota sensual versus uma nota espiritualizante.
A Vénus «surge» de chofre num espaço aberto, inteira. A sílfide aparece paulatinamente, rodeada pelo misterioso chiaro-oscuro do arvoredo, afagada pela blandícia dos tenros folhedos (o arranhão da silva é um ósculo…), levada, acariciada pela doce brisa. É a essência feminina dimanada da verdura aprazível e bucólica, «do imo da folhagem», «do imo do arvoredo».
Diversamente, Vénus emerge das águas do mar («Vem das águas, nua»), ressumbrando sensualidade («os rins FLexíveis e o seio fremente…»), concitando as vagas do desejo carnal («morreme a boca por beijar a tua.»).
As atitudes do sujeito são diametralmente opostas. Irrompe enérgico, decidido, pujante de força «Eisme formoso, moço e casto, forte.» quebrando as barreiras do «vil pudor» e da «vergonha», certo de a fazer «desmaiar de amor» sob o seu másculo amplexo, pelo vigor do seu «pulso de jovem gladiador»41. O que torna este soneto enigmático é a intromissão da mortehidra, que sem ela constituiria uma celebração gaia do amor físico. Parece que Pessanha não consegue abstrair nunca do espectro da morte, aqui do monstro da morte. Parece que eros traz no seu rasto o seu indesejável irmão, thanatos.
Mas, julgamos, uma leitura freudianamente ortodoxa veria neste desejo hercúleo de esmagar a morte a vitória de eros, do desejo da vida sobre a atracção pela morte. Pelo amplexo sexual o poeta está a afugentar, a defenestrar a morte, mas uma leitura mais ambivalente está mais de acordo com a psique de Camilo. É na mesma rocha em que a hidra é esmagada que a cabeça de Vénus pousará para «ir inclinarse, desmaiar de amor». Para ser verdadeiramente disjuntiva, o local da eliminação da morte não deveria ser o mesmo daquele da consumação amorosa. Já antes, logo depois de se autocaracterizar nos termos mais eufóricos, acrescenta «Tão branco o peito! – para o expor à Morte…» como intuindo de antemão que aqueles predicados não são suficientemente fortes para resistir ao poder da morte. Por ora, todavia, não obstante a vitória da morte ser inelutável, que não se coloque entre si e a amada pois o poeta é suficientemente hercúleo para a vituperar e despedaçar («Mas que ora – a infame! – não se te anteponha. A hidra torpe! … Que a estrangulo … Esmagoa»).
Outra leitura, que diverge desta intromissão estranha da morte, é desenvolvida por Ester de Lemos que vê no impulso amoroso e no impulso guerreiro duas faces do mesmo sentimento: «da ideia de amor que, num belo primitivismo, leva o homem a exporse, em todo o esplendor da sua juventude, aos olhos da mulher, passase insensivelmente a uma ideia de guerra e força, sem se perder de vista o primeiro impulso»42. Mas se ligarmos o presente soneto com «Vénus» (conjunto mais congruente para Óscar Lopes do que o díptico que prevaleceu), a imagem sadia do guerreiro que merece, por provada bravura, a aquiescência da amada desmoronase. Com efeito, a «esvelta» e soberba Vénus é verdadeiramente estraçalhada por feras ondas (último terceto), o objecto do amor é aniquilado pelo desejo que suscita. Na interpretação de Anna Klobucka, esta subversão da alvinitente Anadiómede apresenta inequívocos traços de aniquilamento sádico, de que o próprio sujeito tem consciência («Em que desvios a razão se perde»): «A penetração do ventre pútrido, «azul e aglutinoso», da afogada pela onda (logo desdobrada em ondas: a cópula transformase em rapto múltiplo) produz intenso prazer tanto nos agentes do combate sexual quanto no sujeito falante do poema que, testemunhando a cena, se situa no papel de um voyeur ou, antes, de um senteur delirante de gozo («o cheiro a carne que nos embebeda»)»43. Portanto, nesta pulsão necrófila que se deleita com a decomposição do corpo que possui, amor e morte estão misturados, não separados.
Assim, se o primeiro soneto palpita de acção, o segundo é contemplativo. São agora os olhos a sinédoque do sujeito. Toda a aspiração do poeta está em olhar platonicamente a imagem da sílfide («Meus olhos querem desposarte,/ Reflectirte virgem a serena imagem»). A palavra virgem tanto pode referirse à mulher como ao olhar do poeta e o verbo desposar traduz um anseio unitivo, uma unidade a realizar por meio dos olhos, contemplativamente44. Só que não é uma mulher concreta, é mais um esprit du lieu, a emanação feminina e etérea do imo, do fundo, da essência dos campos, das florestas. É a sua imagem serena que os seus olhos querem reflectir, não a sua presuntiva realidade. É um ser quase lendário, composto de alma de silfo e carne ou corpo de camélia.
Desta maneira, o fogo passional, os arranques de forcado dão lugar a um devaneio semionírico, que os «tons adormecidos» dos folhedos sugerem. Para nós, o elo de ligação dos dois sonetos reside nos «olhos ardidos» pela «chama do furor», em que se retoma o primeiro soneto no segundo. A vontade retesada pelo desejo físico e pelo desafio da morte não tem forças para suportar esta tensão por muito tempo, aspirando ao repouso, ao sossego bucólico da amenidade campestre entificado numa espécie de fada contemplada, espelhada pelos olhos à distância. Não já a dura rocha e o fragor do estrondear das ondas.

Sentimento e Conhecimento na Poesia de Camilo Pessanha, João Paulo Barros de Almeida, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p. 91-95.

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(40) Mário Garcia, em «Sobre Camilo Pessanha», in Brotéria, Vol. 122, Nº 4, Abril 1986, p. 388, assinala o slancio que Barbara Spaggiari descobre no v (em vez do b) deste adjetivo, contribuindo para o frisson sensual do seu surgimento
(41) No poema, já referido, «Se medito no gozo que promete», ferve sem rebuço o desejo físico: «Desejo, nuns transportes de gigante, / Estreitála de rijo entre meus braços, / Até quase esmagar nestes abraços/ A sua carne branca e palpitante;»; mas com laivos de morte, como se depreende, mais que do verbo «esmagar», da invocação da serpente no símile desenvolvido na terceira quadra. Talvez seja digno de nota constatar que este poema inaugural oscila entre a atracção pelo amor erótico e pelo amor, à falta de melhor palavra, narcotizante, esvaído em devaneio semihipnótico e aconchegante: «Eu quisera também, adormecido, / Dos fantasmas da febre ver o mar,/ Mas sempre sob o azul do seu olhar,/ Envolto no calor do seu vestido; Como os ébrios chineses delirantes/ Aspiram, já dormindo, o fumo quieto/ Que o seu longo cachimbo predilecto/ No ambiente espalhava pouco antes…». Neste símile final, subentendese que o ardor sensual das três quadras iniciais é assimilado ao estado de hiperexcitação causado pela droga, e que, ao expressar nas últimas três quadras finais (a estrutura do poema é dividida ao meio, em partes simétricas) esse outro amor amodorrado, o poeta intenta mostrar a sua preferência pelo letargo. Como a mulher em «Interrogação» o protege da perturbação do crepúsculo, assim também é timoratamente que o sujeito se coloca sob as «saias» da mulher, para ousar «ver o mar», espaço de aventura, risco e prova. Teríamos assim in nuce alguns dos vectores da vivência do amor do poeta.
42 Lemos, op. cit., p. 49.
(43) Anna Klobucka, «A (de)composição de Vénus : reflexões sobre dois sonetos de Camilo Pessanha», in Colóquio/ Letras, nº n.º 104/105,1988, p. 39.


(44) É devido a este anelo de identificação, de se unir e de perder na união (como também se viu em «Se andava no jardim») que permite a Esther de Lemos arriscar que por vezes o poeta parece um místico «…arriscaremos que Pessanha nos aparece às vezes como um místico, pela força com que deseja fundir sujeito e objecto: simplesmente o objecto nunca é Deus.», Lemos, op. cit., pp. 31, 32.


            
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/07/esvelta.aspx]

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Escultura poética ou poema-escultura?


         
           
CORTE E DOBRA
Toda superfície cria mistério.
O muro divide, proíbe, estanca,
não passa,
ou bloqueia: é tumba, é campa,
é tampa - não desce e não sobe.
Esse não permanente
aguça e lança:
               e além? e embaixo?
e em cima? e dentro? e fora?
Cria o prazer de romper,
               atravessar,
conquistar o outro lado
o ar, o ver
e amanhecer no mesmo horizonte.

               Quando corto e dobro
               uma chapa de ferro
                     ou somente corto
               pretendo
                     abrir um espaço
                     ao amanhecer na matéria bruta
               luz que vela e revela 
                     a comunhão do opaco
                     com o espaço dos astros
                                                   espaço
               que descobre o renascer
               redimindo a matéria pesada
                     na intenção de voar
Amilcar de Castro
          
         
Em “Corte e dobra”, Amilcar de Castro (1978) define a sua arte: a de poetizar e a de esculpir.
Para melhor entender a sua arte, Maria Heloísa Martins Dias “busca estabelecer relações homológicas entre algumas peças da escultura de Amílcar de Castro e seu poema «Corte e Dobra», com o objetivo de analisar o diálogo entre as duas linguagens colocado em jogo pelo próprio artista, um dos mais instigantes representantes da moderna produção plástica brasileira. A íntima relação entre o verbal e o plástico se estabelece graças a singulares procedimentos de construção criados por Amílcar, os quais revelam resoluções estéticas situadas no ponto de ruptura com paradigmas convencionais de percepção, o que põe em relevo uma arte a solicitar a intensa participação do observador / leitor.”
Maria Heloísa Martins Dias desenvolve a análise em dois textos:
“Escultura poética ou poema-escultura?” inhttp://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero37/escultu.html
O texto literário como objeto: acesso ao prazer” in Apagando o quadro negro, São Paulo, Editora Unesp, 2011, pp. 56-58.
            
  
  

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/06/corte.e.dobra.aspx]

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Rotas no Atlântico, «The sound of kuduro» em outra Angola


  
                 
Neste quadro de disseminação do kuduro pelas costas atlânticas, levado pela emigração de angolanos, surgiu, em 2006, o grupo Buraka som sistema, aludindo a um bairro de periferia da cidade periférica da Amadora. O Buraka, formado por três jovens, filhos de imigrantes angolanos que chegaram a Portugal em fins dos anos oitenta, são os maiores responsáveis, hoje, pela divulgação do kuduro. Responsáveis pela criação de vertentes mais ousadas desse estilo musical, inseriram o ritmo definitivamente no panorama internacional da música contemporânea. É preciso destacar que os rapazes do Buraka não se intitulam músicos, eles se reconhecem como DJs na medida em que suas composições são criadas através de recursos eletrônicos e digitais, com mixers e samplers, e muitas releituras, interpretações e realizações (featurings) com diversos artistas. O grupo, em 2008, alcançou um sucesso retumbante no mundo pop quando lançou a música “The soud of kuduro”, com a artista britânica, de origem tâmil, M.I.A, que, aliás, já incorporara o funk carioca em sua produção musical. O CD Black Diamond,lançado em 2008, além de M.I.A., contou com a participação do cantor de kuduro angolano Puto Prata, a MC angolana Pongolove e a cantora brasileira de funk Deise Tigrona. Assinala-se que, com ações promocionais da rede FNAC, o CD atingiu rapidamente a marca de 700 mil cópias. No entanto, fiéis ao princípio que rege as produções musicais atuais, encontra-se disponível para downloadno sítio oficial do Buraka. Os Buraka já vieram ao Brasil inúmeras vezes, inclusive com apresentação recente no Rock in Rio IV (2011) e, em outubro, lançaram seu último CD, Komba.
O material do Buraka não é, por razões óbvias, imediatamente cooptável pelos estudos literários. As letras de suas músicas, material que nos aproxima desses tipos de objetos, não estão constituídas por um modelo formal que nos inspira à sua leitura como a de um poema. A produção do material dos Buraka envolve outros elementos que se jutam às letras meio recitadas, meio cantadas (característica maior do rap), tais como os ritmos presentes que se misturam ao kuduro (samba brasileiro, techno, semba, salsa, entre outros), e aos roteiros dos vídeo-clips, divulgados pela Internet, via Youtube. A isso devem ser acrescidas as performances em palcos diversos que dão a cada apresentação um sentido único e irrepetível – nele se destaca o sucesso Kalemba (Wegue, wegue), que possui diferentes versões no cd Black Diamond, da qual assinalamos fortemente aquela interpretada pela MC angolana Pongolove.
          
 
          
Em sua interpretação, a letra convoca e traduz uma experiência feminina inédita no panorama angolano, se a compararmos ao que a Literatura Angolana vem destinando a esse público. Se pensarmos que podemos contar uma pouca expressão feminina naquela poesia, das quais se destacam Alda Lara, Maria Alexandra Dáskalos, Maria Amélia Dalomba, Maria Eugénia Neto ou Ana Paula Tavares, e que essa poesia costuma se espantar com os arroubos da dicção mais feminista, o recitativo e a performance de Pongolove ganham uma dimensão inédita para o panorama cultural angolano, comparável à mesma dimensão das cantoras cariocas de funk, notadamente, Tati Quebra-Barraco, Deise Tigrona ou Valeska Popozuda que decididamente invertem, em suas letras, toda e qualquer relação de poder que a tradição patriarcal do ocidente impôs ao feminino. Pongolove, sem disfarçar, impõe o mesmo pussy Powerreclamado e constituído pelas cantoras da periferia carioca. Mas é preciso deixar claro que Pongolove, ao invés de recorrer aos signos corporais e, portanto, sexuais, vai buscar na tradição cultural que engendrou a identidade nacional angolana a dicção mais acertada para o seu empoderamento.

KALEMBA (WEGUE WEGUE)


Wegue
Wegue wegue wegue
Wegue
Wegue wegue wegue
Quando eu entro o palco se move,
Talento aqui chove,
Claro que o povo me ouve
Sou pongolove
Estou com a buraka
Abro a fronteira
Não digo lixo
Nem digo asneira
No microfone sou a primeira
Vou levantar a minha bandeira
Angola o mundo cobiça
Mas é o povo que te enfeitiça
A pong no beat capricha
Porque sou rara tipo welwitchia
Sou mesmo eu a dama ngaxi muito agressiva
Me derrubar nem com macumba
Sou criativa
A buraka é que está a cuiar
Sai fora
Pongolove é que esta a bater
Vão se embora
Wegue
Wegue wegue wegue
São piadas
Wegue
Wegue wegue wegue
Novo esquema
Rima pesada
Tipo embondeiro
Eu faço o que eu quero
Canto para angola
E para o mundo inteiro
No kuduro impero
Sou palanca negra gigante
Sigo a passada de njinga mbandi
Sigo a corrente do dande
Logro o feitiço de tomé grande
Por no mapa oxaena
Terra de grandes nomes do semba
Arraso tipo kalemba
Sou de angola como a mulemba
Mano jukula
(kimbundu)
Mambo exclusivo
Toque de angola
(kimbundu)

A letra é simples, no entanto, contundente. O que Pongolove impõe? Somos obrigados a recorrer a teoria da performance e recuperar a coincidência entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado – observar no discurso e na performance no palco tudo o que está dito e entredito. Pongolove, junto aos Buraka, abre espaço para uma cultura e, consequentemente, um discurso que subvertem a ordem vigente dos gêneros e determinam uma outra forma de abordagem das relações socialmente constituídas. Ela chega, ela irrompe, ela se autoriza, conclamando os signos culturais da tradição, mas, evidentemente, subvertendo-a: Pongolove é o novo esquema! Um corte, uma ruptura, uma cisão! O que está por vir? Desse movimento quase caótico da cultura de massa, em que tudo se move, como Pongolove, o que será fixado? Será que ficará o que a literatura fixou ou fixará? O canônico? O celebrado? Mas Pongolove quer a sua celebração, mesmo sem sair da periferia da cultura! Como não observar esse movimento intenso, caótico, instável – pura kalemba – que move a cultura contemporânea? O que vem das periferias, do império, dos impérios, acaba por mover a cultura e dar-lhe novo revestimento e sentido para o mundo globalizado sem as fronteiras culturais tradicionais.       
«Rotas no Atlântico, “The sound of kuduro” em outra Angola» (Conferência apresentada no I Seminário África e Contemporaneidade, na Universidade de São Paulo, em novembro de 2011), Mário César Lugarinho, Uma nau que me carrega: rotas da literariedade em língua portuguesa. Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 178-181
         

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/05/kalemba.aspx]