Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha
_________
NOTAS
acrópole (verso 11) – parte mais
elevada das antigas cidades gregas; recinto sagrado onde se erigiam templos.
Audição do poema
disponibilizado pelo CLEPUL FLUL:
ORIENTAÇÕES DE
LEITURA
I – Questionário sobre a
leitura do poema «Floriram por engano as rosas bravas», de
Camilo Pessanha.
1.Identifique as expressões que, ao longo do soneto, remetem para a
presença de um «tu» e explique de que modo contribuem para a sua
caracterização.
2.Analise o valor expressivo da aliteração presente nos dois versos
iniciais do poema.
3.Interprete as interrogações formuladas pelo «eu» nos versos 3 e 4.
4.Indique dois efeitos de sentido do adjetivo «nupcial» (verso 9).
5.Refira três dos sentimentos que o sujeito poético exprime ao longo
do poema, fundamentando a resposta com citações pertinentes.
Explicitação
de cenários de resposta:
1. Para
identificar as expressões que, ao longo do soneto, remetem para a presença de
um «tu» e explicar de que modo esses elementos textuais contribuem para a sua
caracterização, devem ser desenvolvidos os três tópicos seguintes, ou outros
igualmente relevantes:
− «meu bem» (v. 3), que designa o interlocutor do sujeito poético
e indica a natureza amorosa da relação entre ambos;
− «Em que cismas» (v. 3), «Porque me calas / As vozes com que há pouco
me enganavas?» (vv. 3-4), pela conjugação das formas verbais na 2.ª pessoa do
singular, que representam a amada como alguém pensativo e silencioso, que «há
pouco» se dirigira ao «eu» com palavras que o enganavam;
− «Teus olhos [...] tristes» (vv. 7-8), «teu vulto» (v. 12), que
referem traços psicológicos e físicos do «tu».
2. Para
analisar o valor expressivo da aliteração presente nos dois versos iniciais do
poema (repetição do som «v» em «bravas», «inverno» e «veio o vento»), devem ser
desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
− cria uma cadência musical harmoniosa;
− sugere o soprar do vento;
− contribui para o ritmo sincopado do verso;
− acrescenta um elemento sonoro à imagem das pétalas desfolhadas.
3. Para
interpretar as interrogações formuladas pelo «eu» nos versos 3 e 4, devem ser
desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
− expressam a sensação de estranheza gerada pela atitude
meditativa da sua amada;
− sugerem apreensão perante o brusco silenciar dela;
− revelam que o «eu» sente como enganadoras as «vozes» (v. 4) que
lhe ouvira.
4. Para
indicar dois efeitos de sentido do adjetivo «nupcial» (v. 9), devem ser
desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
− sublinhar o branco como cor ambiente;
− figurar um manto, ou um «véu» (v. 12), acessório
tradicionalmente associado à cerimónia do casamento;
− sugerir a união amorosa entre o sujeito poético e a sua
interlocutora;
− marcar a intensidade e a solenidade do momento por ambos vivido.
5. Para
referir três dos sentimentos que o sujeito poético exprime ao longo do poema,
fundamentando a resposta com citações pertinentes, devem ser desenvolvidos três
dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
− inquietação, perante o silêncio do «tu» («Em que cismas, meu
bem? Porque me calas / As vozes com que há pouco me enganavas?» – vv. 3-4);
− melancolia, ao notar que os «olhos» (v. 7) da figura feminina
«vão tristes» (v. 8);
− desilusão, por «Tão cedo» os «Castelos doidos» (v. 5) dos sonhos
se terem desmoronado;
− tristeza, sugerida pelo ambiente gelado («na acrópole de gelos»
– v. 11);
− espanto, provocado pela beleza da imagem das pétalas (ou flocos
de neve) a caírem «Sobre nós dois» (v. 14).
(Fonte: Exame
Final Nacional do Ensino Secundário. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 11.º
Ano de Escolaridade. Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho. Prova 734/2.ª Fase e respetivos critérios
de classificação. Portugal, IAVE, 2018)
II - Elabore o comentário global do poema, incluindo o
desenvolvimento dos seguintes tópicos:
nas quadras. a
presença dominante de elementos significativos da ilusão e da efemeridade,
‑
simbolicamente representados pelas rosas
e castelos,
‑
explicitamente caracterizadores da relação eu/tu;
nos tercetos, a riqueza sugestiva da sobreposição das imagens pétalas (das rosas) / neve, gelo / véu;
o desfazer da ilusão do amor, paradigma do desfazer inevitável de todas as
ilusões;
recursos estilísticos relevantes (note a expressividade das aliterações ‑
por exemplo dos sons f e v, nos dois primeiros versos,
ou do/u, no primeiro terceto ‑ da
exclamação e interrogação, da omissão de nexos lógicos entre as frases, do uso
vocabular, a que se refere Óscar Lopes).
(Fonte: Plural
12 A, E. Costa, V. Baptista, A.
Gomes. Lisboa Editora, 1999, p. 162)
O mais extraordinário quanto aos usos vocabulares do
poeta consiste na arte de compor, como em pintura se diria, os valores, isto é,
de iluminar reciprocamente as palavras pela sua simples proximidade.
Em Floriram por
engano as rosas bravas, a expressão cai
nupcial a neve, a alusão a rosas,
a pétalas, ao esparzirde quanta flor, ao véu de noivado ‑ acabam por fundir
numa tonalidade única a visão de um casamento, de um nevão, de um desfolhar
outonal, de um branquear dos cabelos, de um Inverno, uma velhice, um mármore
sepulcral iminentes.
Óscar Lopes. art.
cit.
ANÁLISE DO POEMA
Tema: A condição humana é
efémera, o amor é precário e ilusório ("Floriram por engano",
"As vozes com que ás vezes me enganavas", "castelos
doidos!").
1 ‑ Idêntica organização das duas quadras: constatação de uma mudança,
formulação de perguntas e de exclamações, através das quais se interpela
enfaticamente o TU.
2 ‑ Duas imagens são aqui visualizadas: a Rosa, símbolo da
máxima fragilidade, e os Castelos doidos, metáfora dos desejos
tomados como realidades. Surge também outra expressão com dimensão
simbólica: mãos dadas ‑ união que é negada pela expressão alheio
o pensamento. Esta desunião, este mútuo alheamento, são confirmados pelo
desencontro de olhares (brevidade da conjugação de olhares: um momento).
Talvez por causa desse breve encontro tivessem florido as rosas, mas por
engano... O vento desfolhou-as logo, isto é, a vida desfaz o que é frágil, o
sonho, a ilusão.
3 ‑ Os tercetos, através da copulativa e , estabelecem uma
relação cumulativa com as quadras. Neles, um sujeito plural ("E sobre
nós", "sobre nós dois") suporia, passivamente, a inexorável
passagem do tempo.
4 ‑ A expressão "Em triunfo" chama a atenção para a existência de
uma força superior à vontade Humana.
5 ‑ "Nupcial", "é como um véu", "quanta flor!-do
céu...sobre os nossos cabelos!"-Estas expressões remetem para o cerimonial
do casamento, mas um casamento na "Acrópole de gelos", "na
morte"?
6 ‑ As cores sugeridas ("rosas, "neve", "Inverno")
são simbólicos: amor, castidade, tristeza/velhice. O ambiente parece pincelado
à moda dos impressionistas: neve como pétalas caindo, "como um véu"‑ vento
desfolhando rosas bravas numa paisagem de Inverno, véu que tudo desfoca, esbate
e que torna impreciso os contornos...
A ‘Clepsidra’ de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Esther de Lemos (1956)
Pessanha, o quebrar dos espelhos, Óscar Lopes (1970)
Floriram por engano as rosas bravas / No Inverno, Lilás Carriço (1977)
Aspetos estilísticos da obra de Pessanha, Barbara
Spaggiari (1982)
Realismo e Simbolismo em Clepsidra, João Camilo (1984)
Camilo Pessanha e o ‘Tao Te Ching’, Paulo De Tarso Cabrini Júnior
(2009)
Florescem as rosas bravas simbolistas, Antônio Donizeti Pires (2009)
Amor, companheirismo e conhecimento intersubjetivo, João Paulo Barros de Almeida (2009)
A CLEPSIDRA DE CAMILO
PESSANHA: NOTAS E REFLEXÕES
[...] as rosas bravas florescidas no inverno e
desfolhadas pelo vento são a transposição poética dos sonhos desfeitos, da
alegria efémera, impossível, logo esvaída — alegria que brilhou apenas “por
engano” para quem nunca pode tê-la. [...]
Mas as rosas não são apenas um significante.
A pena de amor que terá dado talvez razão de ser ao
poema (pena de amor que é pena de viver sem viver de todo) pode ter tido a sua
razão vivida em alguma reminiscência — antigo passeio de namorados, passeio
triste, de inverno e solidão.
Esther
de Lemos, A ‘Clepsidra’ de Camilo
Pessanha: notas e reflexões, Porto, Livraria Tavares Martins, 1956, pp.
128-130.
*
PESSANHA, O QUEBRAR DOS ESPELHOS
Floriram
por engano as rosas bravas, a minha poesia predilecta, é um
encanto, não apenas por descobrir um lugar onde (tão estranha como
indubitavelmente) se identificam um esfolhar de rosas, um véu de noivado, uma
queda nupcial de neve e o branquear dos cabelos, mas ainda porque esse lugar dá
sentido único a (digamos à falta de melhor) estados de alma, a intenções sem
qualquer relação conjunta directa com o real ou até com o possível nossos conhecidos: há aí, por exemplo, uma saudade,
partilhada por um casal a envelhecer, de um casamento que afinal se não fez, de
um amor que não foi correspondido, de um engano-desengano inerente a certa
esperança sem consumação, ou inerente a um certo e imaginário diálogo-disfarce
a dois, com que o próprio poeta engana (e não engana) a sua solidão. Isto não passa,
evidentemente, de um esquema; poderia encher-se um ensaio com variadíssimas e
longas paráfrases em prosa a este
simples soneto. O que quer dizer que ele algo contém de inesgotável e de
antecategorial. Ora quando nós procuramos conceber dialecticamente o que seja a
realidade, pensamos, é inevitável, em algo
acerca de que resta sempre muito que dizer e fazer, porque nunca a
língua ou os braços nos chegam para ela. Ela, a realidade, é que nos diz e faz
a nós, até no nosso dizermo-nos e fazermo-nos.
Óscar
Lopes, “Pessanha, o quebrar dos espelhos”, in Ler e Depois, 3.ª ed., Porto, Ed. Inova, 1970, pp. 204-208. Apud História Crítica da Literatura Portuguesa.
Volume VII ‑ Do Fim-de-século ao Modernismo, coord. José Carlos Seabra
Pereira. Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1995.
FLORIRAM POR ENGANO AS ROSAS BRAVAS / NO
INVERNO
«Floriram por
engano as rosas bravas / No Inverno:» ‑ Quantos sonhos desmoronados numa
felicidade enganosa apenas sonhada e não vivida «enganavas... Castelos doidos!»
‑ uma réstia de esperança dilui-se como as
rosas bravas que floriram no Inverno e foram desfolhadas pelo
vento. Tudo isto subentendendo a presença
de uma recetora ‑ «Em que cismas, meu bem? / ... / nós dois» com a qual
dialoga.
E o recordar deste sonho vão está, assim, visualizado
nela que cisma, no desfolhar das
rosas, nos castelos que
ruíram, na neve surda em
triunfo (o véu de noivado que não foi
usado), sugerindo a velhice nos cabelos embranquecidos nessa longa espera que nunca teve o seu termo, por falta
de calor dela. A melancolia que ele sente
transparece na imagem dela ‑ cismas,
calas, olhos tristes.
Lilás
Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto,
Porto Editora, 1986 (4ª ed.), pp.
349-350. (1ª ed. 1977)
*
ASPETOS ESTILÍSTICOS DA OBRA DE PESSANHA
O soneto «Floriram
por engano…», onde o diálogo alterna com extractos descritivos, vale-se de
bruscos cortes na articulação lógico-sintáctica do período. Mas os pensamentos
brotam por via analógica uns dos outros e deslindam-se pouco a pouco.
Responsável por esta impressão é a presença, em pontos nodais da poesia, de
quatro enjambements, que tornam ainda mais lento o ritmo já brando do texto:
(vv.
1-2) Floriram por engano as rosas bravas
No
Inverno: veio o vento desfolhá-las…
(vv. 3-4) Em
que cismas, meu bem? Porque me calas
As
vozes com que há pouco me enganavas?
(vv. 7-8) De
mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutam
nos meus, como vão tristes!
(vv. 10-11)
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando
o chão, na acrópole de gelo
A SINTAXE DE PESSANHA
[…] em Pessanha raramente várias frases principais são
coordenadas entre si; e quando isto sucede, o poeta recorre ao assíndeto, isto
é, à pura e simples justaposição:
(vv.
1-2) Floriram por engano as rosas bravas
No
Inverno: veio o vento desfolhá-las
The Art of Edward Jean Steichen - Gloria Swanson, 1924, published in Vanity Fair
''When I die, my epitaph should read: She Paid the Bills. That's the story of my private life.'' - Gloria Swanson (1897-1983)
REALISMO E SIMBOLISMO EM CLEPSIDRA
Em Floriram por engano as rosas bravas
os dois primeiros versos evocam um acontecimento de ordem geral. Mas dirigindo-se
diretamente à mulher amada nos dois versos seguintes da mesma quadra o sujeito do
poema, faz dessa evocação realista das
«rosas bravas» uma evocação simbólica: a realidade exterior é de novo um meio
de referir-se à realidade interior, a uma situação bem pessoal, particular. Na
segunda quadra a expressão «castelos doidos», que faz alusão ao sonho, aparece
como uma «explicação» dos dois primeiros versos do poema, das rosas bravas que floriram
por engano no inverno e que o vento, naturalmente, acabou por desfolhar. Mas a
prova de que esta alusão é sobretudo simbólica encontra-se no facto de em
seguida, tal como acontecera na primeira quadra, o sujeito do poema evocar diretamente
a sua situação pessoal, as suas relações com a amada. Realismo e simbolismo
coexistem nesta alternância das referências
à realidade exterior e à
realidade privada dos sentimentos. O que não significa que as rosas bravas não tenham de facto florido no
inverno; mas ao referir-se a essa realidade o sujeito do poema pretende sobretudo dar forma à ideia expressa mais claramente em «Castelos doidos!
Tão cedo caístes!...», frase que se
refere às rosas bravas que floriram fora
da época e que por isso foram destruídas pelo vento, mas que resume
também as relações do sujeito do poema com a mulher que ama, pois sugere que
·há um desencontro dos sentimentos, que o amor nasceu fora de tempo, quando não era possível. A neve «nupcial» que cai sobre o casal de namorados e que é
«como um véu» em redor do vulto dela contribui para reforçar a «realidade» da situação descrita (ou o
realismo da descrição), mas sublinha também, simbolicamente, a quase
irrealidade da cena, o ambiente de sonho a que se refere a expressão «castelos
doidos»), as perguntas que não cessa de pôr-se o sujeito do poema e que a interrogação
final retoma.
O que surpreende neste poema é, embora ele e ela estejam
juntos, a alusão ao «engano», à «tristeza», ao pensamento que vai «alheio».
Embora estejam juntos, na realidade estão distantes um do outro; e a neve,
embora seja «nupcial» e caia «em triunfo», obriga o sujeito do poema a
interrogar-se sobre o sentido daquilo que lhe acontece. A interrogação final
acentua à sua maneira a dúvida, o espanto, o sentimento de estranheza. Com
efeito, entre a realidade individual profunda (que é o engano, a ausência, a desilusão) e a realidade aparente ou visível (uma neve que cai, «nupcial», em
«triunfo», como «pétalas» de flor sobre
os dois namorados) há uma diferença, um contraste, que a interrogação final
pretende subtilmente sublinhar. (Não
pode deixar de notar-se, porém, que o que cai sobre eles é neve e não
verdadeiras pétalas de flores ‑ deste ponto de vista, em vez de contraste temos
o reforçar da mesma ideia). Se o poema faz alusão a um momento anterior de
plenitude (o momento em que floriram as rosas bravas), ele refere-se já no entanto a um momento que querendo ouvir as
palavras com que ela o «enganava», o sujeito do poema evoca e deseja o tempo
das ilusões; mas as ilusões depressa se desfizeram e agora, caídos os
castelos doidos, desfolhadas as rosas
bravas, eles estão já separados,
ausentes. A neve, «nupcial», parece criar de novo a ilusão ou a aparência da
plenitude; mas ela cai, simbolicamente e ironicamente, «na acrópole de gelos», e ao
interrogar-se sobre quem
esparze sobre os seus cabelos essas «pétalas» de flor, o sujeito do poema
parece recuperar a consciência do engano e da ilusão e querer sublinhar o sem sentido e a ironia da situação.
Será excessivo ver, nestes poemas em que se afirma a
impossibilidade do amor, não apenas um indício mas a expressão simbólica da
própria incapacidade de viver? Viver para o sujeito dos poemas de CP é amar e
amar é entrar em comunhão profunda e duradoira com o outro. Ora o amor é
impossível, não passa da ilusão de um momento, cedo destruída pela morte, pela
separação, pela ausência, pela lucidez ‑ por forças ocultas e superiores que o
poeta nem sempre refere ou nem sequer sugere, mas que aparecem como inevitáveis
e indissociáveis da própria existência humana. Podemos supor que é a
incapacidade de amar que acaba por implicar a incapacidade de viver; mas
incapacidade de amar e incapacidade de viver são apenas dois aspetos da mesma
incapacidade de sair de si e de entrar em contacto verdadeiro com a realidade.
A distância que sempre separa o sujeito dos poemas de CP da mulher amada, que
faz dela um ser idealizado e imaginado, irreal, inacessível, é a mesma que o
separa do mundo em geral; mas é falando do amor que muitas vezes o poeta dá
forma e expressão mais perfeita a esse sentimento profundo de impossibilidade
de viver.
João Camilo, «Realismo e Simbolismo em Clepsidra», Boletim de Filologia, tomo XXIX, Lisboa, Centro de linguística da Universidade de Lisboa,
1984, pp. 302-304
*
CAMILO PESSANHA E O
‘TAO TE CHING’
Em “Floriram por engano as
rosas bravas”, os
elementos são apenas aproximados, e as relações entre eles
são apenas implícitas, sugeridas. Pessanha abole o elemento de ligação como o
pintor impressionista suprime o contorno
definido: cada frase vem, muitas vezes, solta, pairando, evocando,
sozinha; entrelaça-se nas outras, mais por sutis analogias ou contrastes
subjacentes do que pela via clara e geométrica do pensar lógico.
Camilo Pessanha e o ‘Tao Te Ching’: um capítulo, Paulo De Tarso Cabrini Júnior, Assis,
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2009, pp. 62-63.
FLORESCEM AS ROSAS BRAVAS SIMBOLISTAS
O soneto apresenta versos decassílabos (prevalecem os heróicos,
com cesura 6-10, mas em cada terceto pode-se apontar um sáfico, com acento em
4-8-10: no primeiro, “E sobre nós cai nupcial a neve”4;
no segundo, “Quem as esparze – quanta flor! – do céu”), porém, condizente com
as novidades da estética simbolista, a metrificação não obedece estritamente à
versificação clássica: ao lado do decassílabo heróico (verso 1, por exemplo) ou
sáfico (verso 13), encontramos outros com cesuras em sílabas diferentes do
tradicional (os versos 6 e 7, por exemplo, apresentam acentos nas sílabas 3, 6
e 10; os de número 2 e 4, nas sílabas 2, 6 e 10; o verso 11, nas de número 4, 6
e 10), ou até mesmo um deslocamento violento da cesura no último verso, “Sobre
nós dois, sobre os nossos cabelos?”, que apresenta ER=3-4-7-10. Tudo isso é
importante porque evidencia que o poema, já na sua fatura nova (de larga
fortuna no Modernismo vindouro), um tanto fora dos moldes (embora, frise-se,
prevaleça o acento na sexta sílaba, em favor de um ritmo mais regular), já está
a revelar o estranhamento do próprio eu-lírico, seu descompasso em relação aos
acontecimentos tematizados no poema.
As ambiguidades estruturais estão presentes em outros aspectos da
metrificação, pois é recorrente a não-coincidência da pausa métrica e da pausa
semântica (ou seja, o sentido de um verso não se completa com a marcação
métrica, transbordando para o seguinte), daí derivando o uso frequente doenjambement: este está presente nos versos 1 e 2
(“Floriram por engano as rosas bravas / No inverno”), 3 e 4 (“Por que me calas
/ As vozes com que há pouco me enganavas?”), 6 e 7 (“Onde vamos, alheio o
pensamento, / de mãos dadas?”), 7 e 8 (“Teus olhos, que um momento /
perscrutaram nos meus, como vão tristes!”), 10 e 11 (“[...] de leve / Juncando
o chão [...]”).
Considerando ainda os aspectos gráficos do poema (o estrato
ótico), constata-se que o uso intensivo das interrogações, das exclamações, das
reticências e das vírgulas, por todo o texto, adensa o clima fluido, misterioso
e indefinido das vivências do eu-lírico, que parece oscilar o tempo todo entre
a dor (a mulher) e o prazer (a visão esplendorosa da neve a cair), ou entre o
Outro (a mulher, a (im)possibilidade do amor) e o Eu profundo (reflexivo e
ensimesmado; existencialmente condenado à solidão e à angústia). Tal atmosfera
repercute na indefinição espacial e no próprio clima descrito, que adensam a
sensação de exílio e desconhecimento do eu-lírico: “Onde vamos, alheio o
pensamento, / De mãos dadas?”.
O soneto está vazado no sistema de rimas consoantes
ABBA/CDDC/EEF/GGF, cujas posições nos versos são majoritariamente emparelhadas
(BB/DD/EE/GG) e minoritariamente interpoladas (A...A/C...C/F...F), sugerindo
que a parelha sonora reflete a parelha amorosa tematizada no texto. A impressão
de valor conferido à mulher se adensa se considerarmos que as rimas, quanto à
posição dos acentos tônicos, são majoritariamente graves ou femininas (12
ocorrências, contra apenas 2 agudas ou masculinas, “véu” e “céu”). Quanto ao
ponto de vista gramatical, há apenas 2 exemplos de rimas pobres
(“desfolhá-las/calas” – verbos; e “véu/céu” – substantivos), sendo que os
demais 5 pares (“bravas/enganavas” – adjetivo e verbo; “caístes/tristes” –
verbo e adjetivo; “pensamento/um momento” – substantivo e advérbio; “neve/de
leve” – substantivo e expressão adverbial; “de gelos/cabelos” – expressão
adjetiva e substantivo) são todos ricos, talvez a vincar a raridade e a riqueza
da situação vivenciada pelo eu-lírico: esta inclui o amor e a beleza da neve a
cair, mas suponho que haja uma oscilação sutil para a segunda experiência, como
tentarei demonstrar. Quanto ao ponto de vista fônico (considerando-se a rima
com consoante de apoio, obsessão parnasiana pouco levada em conta pelo
Simbolismo), vê-se que há apenas um exemplo de rima rica, “pensaMENTO/um
moMENTO”, embora seja significativo que esta incida no único substantivo
abstrato do poema, como já a indicar que o pensamento de ambos está alheado/alhures
(no caso dela, distante do amor que ele supostamente lhe devota; no caso dele,
fixado no espetáculo branco e raro da neve a cair, que lhe motiva fundas
cogitações). Mas o sistema de rimas do soneto é ambíguo em outro sentido,
complementar: as rimas da primeira estrofe, além de consoantes (ABBA), também
podem ser consideradas como toantes, pois todas as tônicas finais dos versos
são emaaberto: “bravas”,
“desfolhá-las”,
“calas”
e “enganavas”,
o que confere sutil musicalidade à estrofe. A sonoridade é explorada no poema
de maneira requintada, e esconde um significado importante para a economia do
texto. Vejamos como isto se dá:
Ao lado das aliterações das sibilantes, destaca-se a da fricativa
sonorav,
que perpassa praticamente todo o poema. Esta última, ligada à repetição da
vogaleaberta (“inverno”,
“neve”,
“leve”,
“véu”),
fechada (“veio”)
ou nasal (“vento”)
muito contribui para a massa sonora do soneto. Oeaberto
comparece ainda em “castelos”, “pétalas” e “céu”, mas é mais frequente oenasal
ou fechado, como em “bem”, “cedo”, “alheio”, “pensamento”, “teus”, “momento”, “meus”, “gelos”, “quem”, “cabelos”... Também influi decisivamente na sonoridade a
vogal abertaode “rosas”, “vozes”,
“nós”
(duas vezes), “acrópole”,
“redor”
e “nossos”,
embora se possa considerar que a vogalofechada ou nasal prevalece (12
recorrências, contra sete da outra): “floriram”, “por”, “com”, “pouco”, “doidos”, “onde”, “como” (duas vezes), “sobre” (duas vezes),
“flor”
e “dois”.
Contudo, na releitura atenta do poema, este dá a ver/ouvir que os sons abertos
dee/oé
que adquirem real significado em seu estrato sonoro (conjugados aos sons
límpidos doatambém aberto, como na primeira
estrofe e/ou em palavras como “há”, “perscrutaram”, “nupcial”, “esparze”. Incluamos também aqui o vocábulo “cismas”
e a rima entre “caístes”
e “tristes”,
a despeito da carga semântica negativa destas duas palavras): assim, o
contraste entre os sons abertos e fechados(ouclaros e escuros), com nítida prevalência dos
primeiros, já evidencia, no nível sonoro, que esta será a tônica do poema (uma
apoteose do branco, dir-se-ia). A musicalidade sutil, cristalina, se mantém
mesmo nos momentos em que é invadida pela turvação com que alguns vocábulos emãoeu, mais soturnos e pesados, parecem querer manchá-la,
nas três últimas estrofes: “tão”, “vamos”, “mãos”, “vão”, “chão”, “quanta”, “surda”, “triunfo” e “vulto”.
Em suma, seja pelas rimas (não dispostas como num soneto clássico
petrarquiano ou camoniano), pelas aliterações ou pelas assonâncias, o poema
revela uma sonoridade sugestiva, límpida, bastante trabalhada, mas talvez
estéril (em consonância com os estratos mais profundos do poema, como se
tentará demonstrar). Esta limpidez musical parece corroborar a limpidez do
ambiente descrito pelo eu-lírico (a brancura e a pureza da neve, nupcial,
floral, a envolver a suposta amada como um véu de noivado).
Após estas considerações preliminares, vejamos os estratos mais
profundos do poema:
Na primeira estrofe, as rosas bravas (vermelhas?), como metáfora
do amor e do desejo do eu-lírico, floriram por engano no inverno e foram
desfolhadas pelo vento. Este pode ser claramente tomado como símile das vozes
com que a mulher também engana o poeta, desfolhando suas ilusões. É
sintomático, assim, que esta estrofe, redundantemente, apresente duas vezes o
mesmo sentido de logro, insídia, dolo ou falácia, seja através da expressão
“por engano”, seja no uso da palavra “enganavas”, esta como verbo conjugado no
pretérito imperfeito (indefinido, longínquo, nebuloso, mas de ação contínua e
reiterada). Também chama a atenção a grafia de “vozes” no plural, reveladora
das artimanhas sutis da mulher, como várias são as vozes, as origens, as
direções e a intensidade do vento, em seus aspectos negativos ou positivos. Por
fim, apesar de bravas, silvestres, selvagens, as rosas (o amor, o desejo)
desabrocharam num momento errado, na estação errada (o inverno) e foram
desfolhadas pelo vento, não se sabendo se florirão quando da chegada da nova
primavera, em tese mais propícia às florações. Quer-se dizer com isto, mais uma
vez, que, similarmente, a floração do amor, do desejo (sempre alhures, sempre
inalcançável) do eu-lírico também parece ter sido frustrado e desbaratado pela
dúbia figura feminina. Outrossim, deve-se atentar para o duplo sentido de
“bravas”(ferozes, furiosas, destemidas, brutais, intrépidas...), já que este
adjetivo, aplicado a animais (lobos, leões, cães etc.), foi bastante utilizado,
na poesia finissecular, para caracterizar os desejos masculinos em relação à
mulher. Claro que aplicado a rosas, fora do contexto de silvestres, causa
estranheza, e nos revela, talvez, o aspecto sugestivo, fluido e indefinido da
lírica de Pessanha, tal qual deduzido por Álvaro Cardoso Gomes: animais e rosas
podem ser selvagens, mas apenas os primeiros são ferozes. A delicadeza da
metáfora do poeta, assim, pode revelar não apenas a fragilidade e a
transitoriedade de seu amor, mas a fragilidade, o sem-sentido e a
transitoriedade de qualquer experiência humana, sempre batida pelos ventos
adversos do inverno, do gelo, do esquecimento e da morte.
Na segunda estrofe, a nova imagem de destruição, “Castelos doidos!
Tão cedo caístes!...”, liga-se à das rosas despetaladas, mas apresenta certa
antítese de espaço: enquanto as rosas desabrocham numa natureza aberta, hostil,
os castelos animizados (novamente o uso da prosopopeia, em Pessanha) evocam um
espaço fechado, confortável, onde se guardam os sonhos, os bens, as ilusões, as
esperanças do poeta. Mas tais castelos são “doidos” (nova estranheza) e logo
caem (batidos também pelo vento? Estamos diante, pois, de castelos de cartas,
ou de areia, ou de água?). Tudo parece indicar que sim, dado o aspecto cediço,
fluido, evanescente e quebradiço do mundo poético de Pessanha, inclusive no
soneto em apreço. E continua a desolação existencial da voz lírica, através da
indagação: “Onde vamos, alheio o pensamento, / De mãos dadas?”. O pronome, como
se sabe, causa estranheza gramaticalmente, pois o correto, para indicar
movimento, seriaaonde(o mesmo deslize pode ser apontado no
último terceto do segundo soneto de “Paisagens de inverno” reproduzido acima).
No entanto, em abono do poeta e para a eficaz compreensão de sua poesia,
diga-se logo que o pronome assim utilizado denota um aspecto importante de
paralisia, prisão, falta de rumo e de transcendência (o que se coaduna com a
leitura do símbolo da clepsidra feita acima). A tristeza, enfim, conjuga-se às
ruínas dos castelos e às pétalas desfolhadas das rosas: mas os olhos da amada é
que vão tristes, não os do poeta, que percebe num relance os olhos da mulher,
tristes ao extremo, assim como não sabe o motivo das mãos dadas e tampouco
esclarece se o pensamento dele (ou dela) é que está alheado. Porém, conforme
sugerido anteriormente, a imagem dúbia do alheamento parece contaminar ambos os
atores do texto, o que então evidenciaria sua falta de comunicação, seu
desajuste e distância, apesar das mãos enlaçadas.
Nos tercetos, prevalece a imagem da neve a cair, de modo talvez a
soterrar tudo, pétalas de rosas bravas, castelos arruinados, o próprio
eu-lírico e a amada: a neve, pois, cai de modo nupcial, surda, em triunfo, de
leve, como um véu, como pétalas de branca flor de noivado. Quem derrama tais
flores sobre os dois, a partir do céu? Como atingir este céu? Aonde vão o poeta
e a mulher, imóveis sobre a “acrópole de gelos”, presos sob a neve que cai? A
palavra acrópole, do grego antigo, segundo a definição dicionarizada, significa
a cidadela fortificada e sagrada, geralmente situada na parte mais elevada das
cidades antigas da Grécia, como a que ainda hoje pode ser visitada em Atenas.
Seu uso no poema, seguido do qualificativo “de gelos”, é evidentemente
metafórico, e parece denotar que o eu-lírico e a amada podem estar no alto de
uma colina, mas que esse espaço não é, necessariamente, sagrado e fortificado:
ambos não estariam, portanto, abrigados num local sagrado, mas sitiados num
espaço juncado pela brancura infinita dos gelos, a despeito das imagens
positivas com que a voz lírica qualifica a neve a cair. Insistindo na imagem
“acrópole de gelos”, talvez se possa apontar aqui, num nível mais profundo, uma
espécie de acusação, sugerida pelo eu-lírico, contra o rebaixamento do sagrado
(ou do mito) no mundo moderno e contra o sentimento de decadência que permeia
este mundo: ambos, rebaixamento e decadência, dizem respeito não apenas à
realidade portuguesa da época do poeta (tema explorado em alguns de seus
poemas, segundo vimos), mas são repercutidos na visão de mundo geral que
perpassa o Simbolismo, cujos artistas a ele ligados explicitamente acusam a
degradação do mundo moderno, a falta de magia e o excesso de cálculo,
positivismo e naturalismo. Em contrapartida, veja-se que o poema, conquanto não
seja explicitamente metalinguístico, parece referendar que é somente através da
poesia (simbolista) que se pode resgatar a magia, o sagrado, o mito e a própria
palavra, extremamente desgastada no comércio cotidiano. Daí o título deste
trabalho, “Florescem as rosas bravas simbolistas”: estas, ainda que
desabrochadas num tempo quase impróprio (ou talvez por isso mesmo) é que vão
dar o tônus da melhor poesia do século XX, como se sabe.
Por analogia, pode-se então considerar que a expressão simbólica
“acrópoles de gelo” revelaria a esterilidade do mundo prosaico, coadunando-se,
portanto, com a esterilidade geral que emana do poema. Não há, nessa acrópole,
um templo ou uma fortificação quaisquer, mas apenas as ruínas dos “castelos
doidos” (metáfora para as ilusões e os sonhos do eu-lírico desfeitos tão
precocemente), e sobre estas a neve que cai sem parar, fundindo tudo num
“Branco deserto imenso” (PESSANHA, 1992, p.79) – se aproveitarmos, aqui, o
verso da segunda estrofe de “Branco e vermelho”. Num primeiro momento, a
apoteose do branco estaria a compensar, pela sublimação, a dor e a desilusão do
sujeito poético (daí seu apreço pela beleza das flores brancas – metáfora para
“neve” – que caem do céu); por outro lado, a queda gradativa da neve (branca,
pura, rara; dotada de uma espiritualidade simbólica que a mulher parece estar
longe de possuir), vai indicando, numa espécie de gradação ascendente e
apoteótica, a necessidade do eu-lírico de fusão, dissolução e apagamento no
Todo.
Popularmente, a cor branca significa pureza (este primeiro sentido
é evidente em Pessanha, que não explora as várias gradações do branco que se
percebem em Cruz e Sousa); porém, sendo a cor branca o resultado da união de
todas as outras cores, na escala cromática, ouso considerar que o branco
adquire, em Pessanha, um significado mais profundo: é o símbolo, por
excelência, da fusão com o Todo, quando então se apaga e se dissolve a
consciência fraturada e dolorosa do artista. Se assim é, o tema amoroso, que
parecia ser o mais importante no poema, é desfeito (a mulher, no último
terceto, é apenas um vulto), pois o soneto revela, enfim, a solidão, a dúvida,
a incerteza, a angústia, o desconhecimento dos fenômenos simples e complexos, a
própria ignorância de Deus, dos mistérios e dos desígnios de Deus (ou dos
deuses): “Quem as esparze – quanta flor! – do céu” (o decassílabo sáfico está a
mostrar-nos, na fluidez móbil de seus acentos, o resvalar e o duvidar da
consciência fraturada do poeta).
Analisando mais detidamente o léxico do soneto, constata-se que
este explora muitos substantivos concretos (“rosas”, “Inverno”, “vento”,
“vozes”, “castelos”, “mãos”, “olhos”, “neve”, “pétalas”, “chão”, “acrópole”,
“vulto”, “véu”, “flor”, “céu”, “cabelos”) e um único abstrato (“pensamento”).
Tais substantivos, como sugerido acima, aparecem qualificados por sutil e, às
vezes, insólita adjetivação (“rosas bravas”, “castelos doidos”, “alheio o
pensamento”, “olhos tristes”), que, no caso de “neve”, acumula-se: esta cai
“nupcial”, “surda”, “em triunfo”, em “pétalas” – o que parece corroborar a
leitura proposta acima sobre o alto significado do branco na poesia de Pessanha.
Os advérbios e expressões adverbiais revelam dois aspectos: o
temporal (“No Inverno”, “há pouco”, “tão cedo”, “um momento”) e o modo como as
ações vão se efetivando (“por engano”, “de leve”, “Em redor do teu vulto”).
Porém, o mais importante deles, “onde” (que já mereceu outras considerações,
mais acima), está a denotar a aparente incerteza e falta de perspectiva do
eu-lírico, que parece não saber a qual lugar dirigir-se. Este advérbio é
recorrente na poesia de Pessanha, mas aqui, na verdade, pode-se dizer que o
eu-lírico não almeja ir a lugar algum, uma vez que quer esperar, parado e em
relativo repouso, que o branco da neve assole de vez o espaço onde se encontra:
isto se coaduna com a leitura proposta anteriormente, e novamente enfatiza a
importância do branco na poesia de nosso autor.
A ênfase na gradativa passagem do tempo e nas ações (positivas e
negativas) é evidente no uso dos vários verbos de ação (e/ou de movimento), que
parecem ir numcrescendo:
“Floriram”, “veio”, “desfolhá-las”, “cismas”, “calas”, “enganavas”, “caístes”,
“vamos”, “perscrutaram”, “cai”, “juncando”, “é”, “esparze”. São poucos os
verbos, se os comparamos com os muitos substantivos concretos, mas é a ação
demolidora e dissolvente daqueles sobre estes que cumpre salientar, em abono da
leitura proposta: enfatizou-se, há pouco, os verbos ligados à figura feminina
(quase todos, na verdade: “cismas”, “calas”, “enganavas”, “perscrutaram”, sendo
que um deles, “vamos”, envolve o eu-lírico e a mulher). Aqui já é evidente,
como propõe António Quadros, como a figura feminina, na poesia madura de
Pessanha, é fugidia, fluida (como a água), evanescente.
Vejamos agora os outros verbos: “as rosas bravas” por engano
“floriram”, mas (em castigo?) “veio o vento desfolhá-las” (são dois verbos, “floriram”
e “desfolhá-las” – em clara antítese –, que estão a demonstrar o efeito do
tempo sobre as rosas); dos “castelos doidos” (do sonho e do desejo do poeta,
ora desfeitos), pela apóstrofe sabe-se que “Tão cedo caístes!...” (apenas um
verbo, já evidenciado anteriormente); os demais (“cai”, “juncando”, “é” e
“esparze”), em número de quatro (mesmo número de verbos ligados à figura
feminina, mas com um sentido positivo que não é possível perceber nas ações da
mulher), referem-se claramente ao fenômeno da neve a cair: evidente que, para o
poema, não é o fenômeno em si que interessa, mas a simbologia que se pode
extrair dele. Assim, os adjetivos pinçados do soneto (quatro), ao lado dos
verbos (quatro), no tocante à neve, adquirem uma positividade que, decididamente,
está ausente dos outros motivos explorados no poema (as rosas, os castelos, a
mulher). Estes últimos como que se dissolvem – são, talvez, etapas necessárias
que o eu-lírico atravessa, pois o desfazer-se gradativo deles em pétalas
desfolhadas, ruínas e vã promessa encontra ecos na dissolução final que a voz
lírica almeja para si mesma –, enquanto se adensa, já na superfície e mais
ainda nas camadas profundas do texto, o “Branco deserto imenso” que é a alegria
maior da voz lírica. Pois é neste “Branco deserto imenso”, efetivamente, que é
possível a tão esperada fusão do Poeta com o Todo universal, daí advindo,
finalmente, o apagamento e o apaziguamento de sua consciência fraturada5.
Com isso, constata-se que os vários estratos do soneto são
solidários e nos revelam pouco a pouco o significado profundo aqui exposto:
este repercute, obviamente, em outros poemas do autor português e se configura
como um tema obsessivo em sua poesia. Assim, é possível ligarmos o soneto
“Floriram por engano as rosas bravas” ao “Poema final”, pois há inúmeras
afinidades (temáticas, existenciais, de cosmovisão) entre ambos. Talvez não
sejam os dois mais importantes poemas de Pessanha, mas são absolutamente
reveladores da requintada carpintaria textual do poeta e, no plano humano, da
profunda melancolia e da pulsão de morte que animam sua poesia:
“Onde vamos, alheio o pensamento, / De mãos dadas?”. De onde
viemos? Onde estamos? O desfolhamento (das pétalas de rosas), o soterramento de
ruínas (dos castelos, sejam estes de cartas, de areia, de água ou de sólido
material quase eterno), a vã promessa de amor e felicidade, a vida, enfim, tudo
é transitório e acaba sob o império do branco (“A igualdade é branca”, nos
ensina também o belo filme de Krzystof Kieslowski), sob a neve pura e branca
que possibilita, enfim, a redenção para este bicho da terra tão pequeno. Neve
redentora, branca e pura que, aqui e ali, é vincada ainda pelas pétalas
vermelhas das rosas bravas, a vogar com o vento (a crermos, evidentemente, que
tais rosas bravas são vermelhas, como o sangue dos poetas).
(4)Obviamente,
na leitura deste verso não se pode contar a letra “p” da palavra “nupcial” como
sílaba isolada. Este era um hábito romântico execrado pelos parnasianos, e
chama-se, tecnicamente, suarabácti, assim definido por Geir Campos: “Expressão
adaptada da gramática hindu, para designar avogal de apoiodesenvolvida
por anaptixe e que os poetas utilizam às vezes para, expressamente ou não,
aumentar o número silábico de um verso [...]” (CAMPOS, 19__, p.154; grifos do
autor). Campos cita dois exemplos de versos decassílabos que utilizam o
recurso, ambos colhidos em Gonçalves Dias: “Que importa o fel na taça do
a/b/sin/to” e “Contudo os olhos de i/g/nó/bil pranto”. Não é o caso, no verso
de Pessanha.
(5)Como
já referido à exaustão, a imagem cromáticabranco e vermelhoé
obsessiva em Pessanha, e nos remete ao segundo poema (anteriormente transcrito)
de “Roteiro da vida”, bem como a “Branco e vermelho” (publicado pela primeira
vez no jornalIdeia
nova, de Macau, em 18 de março de 1929, três anos após a morte do
autor), que António Quadros considera “[...] o mais misterioso, mais profundo e
porventura mais belo dos poemas de Camilo Pessanha [...]” (QUADROS, 1989,
p.118). Além disso, tem-se frisado a ousadia, a notável inovação técnica e a
consciência construtiva do poeta neste que talvez tenha sido um de seus últimos
trabalhos – e que permanece como o testamento poético do Artista.
YAMAMOTO MASAO - #40, photograph, flower
AMOR,
COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
Noutro poema, «Floriram por
engano, as rosas bravas», como em «Crepuscular», são dadas as mãos, e os olhares
encontram‑se, mas a
reciprocidade é mais ténue: são duas solidões que se tocam ‑o seu andar de mãos dadas não tem norte, o
pensamento é alheio, não se fixa no outro e o olhar da amada perscruta o dele,
mas apenas por um momento e ensopado de tristeza («como vão tristes!»).
Nos dois últimos
versos da quadra anterior, esboça‑se um diálogo ‑«em que cismas, meu
bem, porque me calas as vozes com que há pouco me enganavas?». As vozes, as palavras da amada seriam, deste modo, sedutoramente
enganosas (repare‑se no paralelo entre o
florir «por engano» das rosas bravas e as vozes enganadoras, bem como o Inverno
da primeira quadra e a acrópole de gelos do primeiro terceto). O que a teria
feito calar e imobilizar‑se na cisma? Eram
essas vozes, por enganosas, castelos doidos fadados a desfazerem‑se e o súbito silêncio a consciência do desengano?
Teria sido a irrupção em meio do Inverno das rosas bravas e o seu desfolhar
pelo vento que teria suscitado na amada a perceção de que o seu amor é tão
passageiro como a floração das rosas, ou este desabrochar prematuro ter‑lhe‑ia despertado a
recordação da juventude que se foi, e daí a profunda tristeza dos seus olhos?
Esse debuxo de drama, de complicação
sentimental é interrompido, sem que se perceba com nitidez qual a relação, pelo
esparzir abundante e «triunfal» da neve. As pétalas que o vento desfolhara retornam
sob a forma de flocos de neve? A neve é nupcial, triunfal, generosa («quanta flor»)
«juncando o chão, na acrópole de gelos», tudo envolvendo, em apoteose de brancura
e beleza. Formavam os dois um casal de cabelos brancos, é a acrópole o espaço
em que a nupcial neve abençoa uma união finalmente realizada? Estas conjeturas
esperançosas esbarram com a simbologia negativa de neve e sobretudo de gelo.
[…] Lede, que é tempo, os Clássicos honrados, herdai seus bens, herdai essas conquistas, que em reinos dos romanos e dos gregos com indefesso estudo conseguiram. Vereis então que garbo, que facúndia orna o verso gentil, quando, sem eles, é delambido e peco o pobre verso. Lede, que é grã cegueira esse descuido, antes bruteza! Mal se ganha o prémio do alto saber sem ímproba fadiga. O meditado estudo aço é, que rijo Fere do nosso engenho a aguda escarpa; e os pensamentos de subtil arrojo faíscas são brilhantes, que ressaltam do batido fuzil aporfiado. Se usamos escrever, destas centelhas ordenadas com próvido artifício se compõe formosíssimo luzeiro ou astro, que nos rudes olhos fere do vulgo, e que a prudentes muito agrada. Como pois esperais compor luzeiros, se os bons não estudais, se da memória os cofres não proveis com abastadas jóias, que os livros bons doar só podem? Eles dão, co’a louça, valente frase preço à sentença aberta e pura, e ao subtil quadro da ficção ditosa dão a cor, dão a luz com que realça. O verdadeiro toque que, árduo, abona a força, a veia do escritor prestante, é quando entorna, como em pronto vaso, com suco e com calor na alma do ouvinte inteiro o néctar das ideias suas, tão suave e no gosto tão activo como ele o preparou no alto conceito, tal que ao leitor colore e embeba a mente, tão fundo e vivo qual no autor nascera. […] Abra-se a antiga, veneranda fonte Dos genuínos clássicos e soltem-se As correntes da antiga, sã linguagem. Rompam-se as minas gregas e latinas (Não cesso de o dizer, porque é urgente); Cavemos a facúndia, que abasteça Nossa prosa eloquente e culto verso. Sacudamos das falas, dos escritos Toda a frase estrangeira e frandulagem Dessa tinha, que comichona afeia O gesto airoso do idioma luso. Quero dar, que em francês haja formosas Expressões, curtas frases elegantes; Mas índoles dif' rentes têm as línguas; Nem toda a frase em toda a língua ajusta. Ponde um belo nariz, alvo de neve, Numa formosa cara trigueirinha (Trigueiras há, que às louras se avantajam): O nariz alvo, no moreno rosto, Tanto não é beleza, que é defeito. Nunca nariz francês na lusa cara, Que é filha da latina, e só latinas Feições lhe quadram. São feições parentas. […]
(“Carta a um amigo” in Poesias. Filinto Elísio. Lisboa: Livraria Sá da Costa-Editora, 1941)
*
O ESTILO
O estilo é o sol da escrita. Dá-lhe eterna palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um tecido do organismo do período. No estilo há todas as gradações da luz, toda a escala dos sons.
O escritor é psicólogo, é miniaturista, é pintor - gradua a luz, tonaliza, esbate e esfuminha os longes da paisagem.
O princípio fundamental da Arte vem da Natureza, porque um artista faz-se da Natureza. Toda a força e toda a profundidade do estilo está em saber apertar a frase no pulso, domá-la, não a deixar disparar pelos meandros da escrita.
O vocábulo pode ser música ou pode ser trovão, conforme o caso. A palavra tem a sua anatomia; e é preciso uma rara percepção estética, uma nitidez visual, olfativa, palatal e acústica, apuradíssima, para a exatidão da cor, da forma e para a sensação do som e do sabor da palavra.
(ln: CRUZ E SOUSA. Obra completa. Outras evocações. Rio de Janeiro: Aguilar, 1961, p. 677-8.)
*
TÉCNICAS
A técnica artística, incluindo a literatura, se constitui, de começo, de um conjunto de normas objetivas, extraídas da longa experiência, do trato milenário com os materiais mais diversos. Depois que se integra na consciência e no instinto, na inteligência e nos nervos do artista, sofre profunda transfiguração. O artista "assimilou-a" totalmente, o que significa que a transformou, a essa técnica, em si mesmo. Quase se poderia dizer que substituiu essa técnica por outra que, tendo nascido embora da primeira, é a técnica personalíssima, seu instrumento de comunicação e de transfiguração da matéria. Só aí adquiriu seu gesto criador a autonomia necessária, a força imperativa com que ele se assenhoreia do mistério da beleza para transfundi-lo em formas no mármore, na linha, no colorido, na linguagem.
A técnica de cada artista fica sendo, desta maneira, não um "processo", um elemento exterior, mas a substância mesma de sua originalidade. Inútil lembrar que tal personalíssima técnica se gera do encontro da luta do artista com o material que trabalha.
(ln: SILVEIRA, Tasso da. Diálogo com as raízes (jornal de fim de caminhada). Salvador: Edições GRD-INL, 1971, p, 23.)
A questão a seguir toma por base um fragmento do poema Em Defesa da Língua, do poeta neoclássico português Filinto Elísio (1734-1819), uma passagem de um texto em prosa do poeta simbolista brasileiro Cruz e Sousa (1861-1898) e uma passagem de um texto em prosa do poeta modernista brasileiro Tasso da Silveira (1895-1968).
Ao abordar o estilo em literatura, Cruz e Sousa acaba conceituando-o com base em alguns pressupostos da própria poética do Simbolismo. Com base nesta observação,
a) aponte um fundamento do movimento simbolista presente na argumentação do poeta;
b) interprete, em função do contexto, o que quer dizer o poeta com a frase: "O escritor é psicólogo, é miniaturista, é pintor - gradua a luz, tonaliza, esbate e esfuminha os longes da paisagem."