quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana



 Natália Correia: Figura emblemática da cultura e da afirmação da identidade açoriana

Por: António Valdemar


A primeira fase da vida e obra de Natália Correia – decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política...


Natália Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer o primeiro nome para as identificar na amplitude da sua criação artística e literária e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Agustina, Amália.
Nasceu nos Açores, na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo. Viveu com a mãe e a irmã Carmem, ora na Fajã de Baixo, ora em Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil.
A mãe de Natália, Maria José Oliveira professora primária, mulher formada nos valores cívicos e culturais da Iª Republica, com formação laica e tendências libertárias – o que era raro na época - além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas, frequentou tertúlias, publicou dois romances mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas incutindo-lhes os princípios da democracia e a aproximação com a modernidade.
Em 1934 a família instalou-se, definitivamente, em Lisboa. Maria José Oliveira quis dar às filhas outros horizontes. Recordou Natália: “Sendo uma intelectual que se não pode realizar, inteiramente, devido ao meio e às circunstâncias procurou preparar-nos». Entendia que «o desenvolvimento espiritual da mulher corresponde a uma atitude social». A permanência em S. Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições «para nos desenvolver espiritualmente». Era «um meio muito exíguo».
Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa, o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou: «Havia uma situação de disciplina, de imposição e de opressão incompatível com a minha maneira de ser. Nessa altura, julgava eu que tal atitude era determinada por preguiça ou relutância aos estudos. Agora sei que as minhas razões eram outras. Descobri, mais tarde, particularmente em trabalhos para que se exigiam disciplina e estrutura, que não podia vergar-me a regras que me fossem impostas de fora. Eu é que as tinha de criar».
Resultou, portanto, num «fracasso total» «a razão imediata da vinda para estudar em Lisboa». A passagem de Natália pelo liceu foi, segundo as suas palavras, de «ave migratória». O problema não se colocava só em São Miguel. Em Lisboa o rumo era o mesmo deparou com os mesmos métodos. A escola não era um espaço de formação e transformação coletiva; nem um lugar de esperança e de procura, de encontro aberto à pluralidade do saber e à difusão do conhecimento.
Natália Correia tem uma formação autodidata. Também aprendeu francês e inglês que falava e escrevia com desembaraço.
Apesar de pertencer a uma família muito católica e muito tradicional Maria José Oliveira ultrapassou a rotina que se circunscrevia ao exercício burocrático do magistério. O ensino era um ato de participação e de cidadania, a fim de pensar e interrogar o mundo.
Teve relações pessoais e literárias com figuras da oposição democrática, entre as quais o jornalista Carvalhão Duarte que viria a ser diretor d’A República. Desde muito jovem, Natália conviveu, com estas personalidades e através delas privou com muitas outras que contribuíram para a sua afirmação pessoal, literária e política.
A partir de meados dos anos 40, tornou-se uma figura de Lisboa ligada aos principais acontecimentos literários e políticos que marcaram, decisivamente, a segunda metade do século XX.
Está perpetuada na toponímia de Lisboa, da Grande Lisboa, da ilha de São Miguel e de outras ilhas dos Açores. O seu nome também se encontra inscrito e com todo o relevo na Fajã de Baixo. E ainda em diversas outras bibliotecas, como é o caso de Carnide e de Odivelas. Tem sido homenageada por universidades públicas e privadas. Foram assinalados, em 2013, com numerosas manifestações o 20º aniversário da morte e os 90 anos do nascimento de Natália Correia. Assumiram, contudo, especial relevo as comemorações que se efetuaram nos Açores promovidas pela Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura, desde a ilha de Santa Maria até à ilha do Corvo.
Natália colocou, no local mais íntimo de trabalho da sua casa de Lisboa, o mítico 52, 5º da rua Rodrigues Sampaio, entre a rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade e onde viveu 40 anos, as imagens tutelares de Antero, de Pessoa e de outros mestres de quem recebera ensinamentos, conselhos e advertências: António Sérgio e Almada Negreiros. Entre eles destacava-se a mãe e um amigo da mãe, Cardoso Martha, que lhe deu explicações de português, francês e história. Antigo seminarista, com profundo conhecimento das humanidades clássicas, da literatura portuguesa e das várias literaturas de expressão românica, Manuel Cardoso Martha (1882 – 1958) era um erudito, um bibliógrafo, um bibliófilo, um colecionador de manuscritos e de livros que adquiriu de muitos modos, sem excluir apropriações ilícitas, em livrarias, em alfarrabistas e até em casas de amigos que visitava e lhe davam almoço ou jantar a troco de pilhérias que era exímio em narrar à sobremesa. Na sua maioria integram grande parte da «Antologia da Poesia Erótica e Satírica» que Natália publicou, nos anos 60, com êxito retumbante e foi apreendida pela PIDE e pela Censura.
Natália, em matéria de formação intelectual reconhecia, no entanto, que ficara a dever à mãe, na infância e na adolescência, os conhecimentos fundamentais para entender a vida e aceder à cultura. Lembrava, com frequência, que a mãe fizera despertar nas filhas o amor pelos livros e pela leitura, para ajudar a ver o mundo com outros olhos e de vários prismas; e, ainda, o sentimento da música, a história grega e romana, a explicação das fábulas, a decifração das figuras mitológicas e reais.
Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, a relação com os Açores foi igualmente profunda. Jamais esqueceu o famoso cozido das Furnas, os inhames e maçarocas de milho «cozidos na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra-pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias».
Uma coisa foi sempre evidente: Natália nunca se desligou das raízes. O seu percurso de quase sete décadas, cabe nestes versos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./ Recém-vinda de ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
A primeira fase da vida e obra de Natália Correia decorreu dos anos 40, ao início dos anos 50. Concilia o jornalismo, a literatura e a política. Frequentou os meios políticos da oposição; colaborou no Rádio Clube Português. Teve o estímulo de dois intelectuais micaelenses radicados em Lisboa: Rebelo de Bettencourt e, sobretudo, do Padre Diniz da Luz que já tinha grande evidência no jornalismo.
Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos intelectuais e políticos da sua geração – por exemplo Mário Soares, Aboim Inglês, Salgado Zenha - não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista.
Escreveu no semanário O Sol fundado e dirigido por Alberto Lelo Portela, militar de prestígio que fez parte dos primórdios da aviação e que se destacou nas lutas da oposição ao salazarismo. A chefia da redação era assegurada por Alves Morgado (1901 - 1980) um jornalista profissional, conhecedor das regras do ofício na elaboração do noticiário, nos contatos com a tipografia, na revisão de textos de jovens colaboradores. Reunia, porém, a colaboração de grandes nomes. António Sérgio foi um deles e exerceu logo influência intelectual em Natália Correia.
Natália escreveu sobre política nacional e internacional: analisou a influência da guerra de 1939 a 1945, em vários setores; condenou a orientação de Hitler, os efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa, a sua disseminação em Portugal, na classe politica, militar, na literatura e na arte.
Teve acesso aos preparativos da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República que se apresentará um ano depois. Para o jornal o SOL entrevistou o general na sua casa em Ponte de Lima. Mais tarde, em 1958, participou na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Em 1969 esteve com Mário Soares e Salgado Zenha na CEUD Apoiou muitos outros movimentos, entre os quais o assalto ao Santa Maria comandado por Henrique Galvão e que deu lugar a um dos seus livros Canto do País Emerso, logo apreendido pela Pide e pela Censura.
Tem neste poema um dos mais vibrantes ímpetos de reivindicação das suas origens: Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos/ minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava/ mestiça de onda e de enxofres vulcânicos/ sou de mim mesma pomba húmida e brava. (….) «Não sou daqui. A minha pátria não é esta/ bússola quebrada dos impulsos./ Sou rápida, sou solta, talvez nuvem/ nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos/ tomai os meus cabelos! Levai-os para a floresta.
Natália integrou o Canto do País Emerso no «desafogo de uma tendência que se acentua nas minhas últimas produções, que é a compreensão de que a poesia se encontra ligada aos momentos mais importantes da vida coletiva e individual» e, por outro lado, «numa temática portuguesa compreendida entre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e a Ode Marítima de Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos».





Os primórdios literários de Natália Correia
acusam a influência do neorrealismo...

Os primórdios literários de Natália Correia acusam a influência do neorrealismo. Desta fase avulta, nomeadamente, o romance Anoiteceu no Bairro. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, no início dos anos 50. Sem profissão de fé declarada ficou próxima do surrealismo. Classificou «uma etapa importante senão fundamental da poesia» do século XX. Luís Pacheco editor dos surrealistas publicou os seus livros Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959) e Canto do País Emerso (1961). Com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’ Neil, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria manteve relações pessoais literárias e artísticas.
Os vínculos são visíveis, nunca os negou, mas costumava dar esta explicação: «se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem-me antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro».
Os momentos altos da obra de Natália – que não é regular e daí a sua autenticidade e a sua força desmedida – multiplicam-se a partir de Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), editadas por Luis Pacheco nas edições Contraponto.
Entre as numerosas controvérsias que Natália Correia desencadeou, antes e depois do 25 de Abril, destacam-se a publicação, no final do salazarismo do já referido Canto do Pais Emerso e da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965) e, na «primavera marcelista» a responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambas apreendidas pela PIDE e pela Censura e ambas julgadas no Tribunal Plenário de Lisboa.
Embora nunca se tivesse submetido à disciplina de escolas, de grupos e de partidos, Natália Correia foi uma das personalidades da sua geração que, (salvaguardadas as diferenças de opinião e de temperamento), era reconhecida em todos os setores.
Natália Correia celebrou a vida, como expressão de euforia, de afirmação de coragem, de libelo acusatório. A sua poesia é dominada pelo arrebatamento lírico, o ímpeto romântico, a exuberância barroca, que se cruzam com a força dos símbolos e a profusão das metáforas.
Contudo, também na linhagem das Cantigas de Escarnio e Maldizer, Natália Correia disseca o poder. Não poupa a aristocracia decadente e com prosápias; a vulgaridade burguesa, os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os políticos arrivistas e corruptos, as manifestações de ignorância e fanatismo. Assim criou as Cantigas de Risadilha.
Juntamente com as irreprimíveis manifestações de açorianidade, Natália Correia estabeleceu uma relação profunda com Lisboa e a grande Lisboa. Em 1971, com a escultora e poetisa Isabel Meireles criou uma sociedade para instalar um bar, restaurante/ café concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro e da própria cidade. Ficou a chamar-se o Botequim, um nome com forte carga literária, politica e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage, de José Agostinho e outros representantes das Arcádias, do pré-romantismo, dos antecedentes culturais e políticos da revolução liberal.
Para o Botequim – e o escritor e jornalista Fernando Dacosta analisou todos estes aspetos num livro notável, acerca da vida e da obra de Natália Correia - se transferiram surrealistas, e poetas e escritores de muitas outras tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros presidentes da República. Representantes do movimento da independência dos Açores. Convergiram no Botequim, devido à personalidade magnética de Natália, as sucessivas fases do processo revolucionário e contra revolucionário que surgiu com o 25 de Abril. A presença diária de Natália irradiou no Botequim durante mais de 20 anos, em noites memoráveis.
Em 1980 ingressou com Francisco Sá Carneiro, na Aliança Democrática. Foi, entretanto, deputada e assumiu posições polémicas, nomeadamente a favor do aborto, que não se identificavam com a linha de orientação estatutária e religiosa do PSD e o CDS. A sua trajetória partidária terminou no PRD, o grupo política que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes.
Ficaram célebres os versos, de Natália Correia ao comentar o deputado do CDS, João Morgado por ter proferido, auge do debate parlamentar da legislação sobre o aborto, afirmações que deram brado na época, nomeadamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália não se conteve e escreveu, de jato um poema que circulou, em todo o País, até porque sairia, no dia seguinte, no Diário de Lisboa: «Já que o coito – diz Morgado -/tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca – truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou – parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão- diz o ditado-/consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»
Este episódio - que passou a fazer parte do folclore satírico de São Bento – constituiu uma das posições de rebeldia e contestação que assumiu perante a classe política, fosse qual fosse o partido, umas vezes fustigada com a energia do protesto, outras objeto de ironia e sarcasmo. Com a morte de Natália morreu o Botequim. Natália Correia estabeleceu sempre uma identificação profunda entre a vida e a poesia e que a destaca como uma das mais notáveis personalidades do século XX em Portugal.
António Valdemar, Correio dos Açores, 15 e 16 de setembro de 2015.





OPINIÃO

Natália Correia – vida com sentido

Aliança da criação literária com a coragem na intervenção política.

Presença vigorosa na sociedade portuguesa, da segunda metade do século XX, Natália Correia (1923-1993) afirmou-se pela singularidade da criação literária e pela determinação e coragem na intervenção política. Justifica a homenagem, hoje em Lisboa (às 18h), na Fundação Mário Soares – presidida pelo próprio Mário Soares, seu amigo e admirador de sempre – e integrada na série “Vidas com Sentido”, para distinguir figuras que prestigiaram a cultura e honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e artistas da sua geração, Natália Correia participou em grandes acontecimentos da oposição democrática – a fundação do MUD, as campanhas para a Presidência da República de Norton de Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras comissões eleitorais, entre as quais a CEUD (1969) liderada por Mário Soares e que se encontra na génese do Partido Socialista. Associou-se aos protestos contra o assassinato de Humberto Delgado; insurgiu-se perante a reabertura do Tarrafal e com a perversa denominação Campo do Chão Bom, exarada no Diário do Governo; e contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura como, por exemplo, Canto do País Emerso, a propósito da ocupação do paquete Santa Maria comandada por Henrique Galvão; a tragédia jocosa Homúnculo; e a Antologia da Poesia Erótica e Satírica que organizou e prefaciou, apreendida pela PIDE, e objeto de processo-crime e julgamento no Tribunal Plenário que a condenou a três anos de prisão, com pena suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa entrevista ao Expresso, Natália Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da Aliança Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi eleita deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua portuguesa, a valorização do património cultural, a defesa dos direitos humanos, os direitos das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre outros temas, a sua passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política ativa não afetou a trajetória literária. Teve um vínculo ao surrealismo, devido às relações pessoais com Mário Cesariny e António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de Lima. Integrou as publicações de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das obras e autores daquele movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de escolas e às cartilhas de grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à energia e originalidade da sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de Mário Sá Carneiro; o impulso desencadeado pelas Odes de Álvaro de Campos, e a torrencialidade da Cena do Ódio de Almada Negreiros. Atingiu a partir dos seus livros Dimensão Encontrada (1957) e Comunicação (1959) momentos significativos da poesia portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento lírico, a exuberância barroca, o ímpeto romântico, a truculência satírica que se cruzam com a força dos símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no herético e no erótico que afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se: “Hoje quero a violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem lagos/ e sem gesto vago/ desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias /metade fêmea, metade mar como as sereias.”
Entre os paradigmas intelectuais e éticos também incluía a figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental, um dos seus patrícios açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as portas da utopia, e a sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do Antero noturno, do poeta e pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à negação e à derrota e num dos seus Sonetos (indisfarçavelmente autobiográficos) confessou: que sempre o mal pior é ter nascido. Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que estimulava o exercício da liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em vida refervendo, a tarde rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis; (...) tu pensamento não és fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não Antero, meu Santo, não me mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar (maldito!) que se pique." Assim, Natália Correia definia o seu comportamento humano e os itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da angústia e desespero do Antero noturno, elegia um bem melhor, o privilégio de ter vivido e continuar a viver até à dádiva interdita. Para sentir todas as volúpias e todas as audácias. A vida, em plenitude.

António Valdemar, Público, 2015-01-22.

     
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
        

 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Povoação - Ilha de São Miguel



Fotografia: José Carreiro, Povoação, 2014-11-30



Igreja construída em 1553, sendo uma das mais antigas da Ilha, conhecida como Matriz Velha da Povoação. Foi mandada edificar por João de Arruda. No passado, esta igreja invocava Nossa Senhora dos Anjos. Está classificada como Imóvel de Interesse Público, por ter sido a primeira igreja da ilha de São Miguel a ser construída. Próximo do ano 1595, foram realizadas obras, aumentado assim o número de naves. No decurso do séc XVI seria instituído o curato de Nossa Senhora da Mãe de Deus. Após a construção da nova igreja da localidade, esta passou a chamar-se Nossa Senhora do Rosário.
http://www.azores.gov.pt/Gra/srrn-cets/conteudos/livres/Povoa%C3%A7%C3%A3o.htm


João Sardinha


576 anos da chegada dos primeiros povoadores à Povoação

Com D. Pedro em Regente
D. Henrique mandou gente
Assinando um papel
Assim nova População
Chegaram à Povoação
Na Ilha de São Miguel

Não é demais nem asneira
Lembramos ser importante
Foi senhorio da Madeira
Este nosso grande Infante

Se senhorio de Lagos
Em Alvor foi seu Regente
Não esquecendo dos cabos
Espartel e São Vicente

Foi D. Henrique o Infante
Senhorio dos Açores
Se Povoar era Importante
Pois mandou mais Povoadores

Povoada Santa Maria
Para o Norte navegaram
E à Ilha da “Cabraria”
Navegadores Chegaram

E foi com muita alegria
Quando à Ilha chegaram
Nome pelo Santo dia
De São Miguel lhe chamaram

Algarvios, Nordestenses
À Povoação chegaram
E os vizinhos Marienses
Ali também não faltaram

Plebeus, nobres e escravos
Sendo casados ou não
Senhores com seus escravos
Chegaram à Povoação

Primeiros Povoadores
Se alguns vieram contentes
Também foram portadores
De gado, alfaia e sementes

Outros dos Povoadores
Até nem mediam riscos
Povoando os Açores
Pensavam em ficar ricos

Muito Ouro até Prata
Pensavam arrecadar
Saiu-lhes floresta e mata
Com campos p’ra trabalhar

Muito limpa estava a praia
Mas lá dita Povoação
Era cedro, urze, faia
E mais por aquele chão

Para entrar na Povoação
Já não falando em medo
Nem ponham os pés no chão
Derivado ao arvoredo

Com o terreno penoso
E difícil de andar
Estando muito custoso
Pois lá tinham que limpar

Sem pararem um segundo
E não era de admirar
Desde que existia o Mundo
Tinham folhas p’ra limpar

Foi tal e qual à Madeira
Se não fossem a queimar
Nem havia ali maneira
De poderem cultivar

Centeio, fava, ervilha
Com cevada até aveia
Pois tudo dava na Ilha
P’ra almoço jantar e ceia

Na velha Povoação
Dito já pelo antigo
Foi muita a comichão
P’ra conseguir um abrigo

P’ra fazerem seus abrigos
Pois, casas eram cafuas
Sendo mesmo tudo amigos
Cada um fazia as suas

Uma barraca em madeira
Por cima a palha cobria
Foi assim feita primeira
Dita casa moradia

Queimando até desbravando
Muitas terras ao chegar
Foram-se acomodando
P’ra dormir e trabalhar

Sacho, arado, machado
Foice, martelo até serra
Isto e trabalho forçado
Serviu p’ra tratar a terra

Terreno foi melhorando
No seu viver dia a dia
Pouco em pouco se alargando
Com saúde e alegria

O dia-a-dia, vivido
Com alguma lentidão
Fica o caso conhecido
Da chegada à Povoação


João Sardinha, Diário dos Açores, 2015-09-29

    
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
       
João Sardinha, Diário dos Açores, 2015-09-30


sábado, 12 de setembro de 2015

250 anos de Bocage





Setúbal celebra 250 anos de Bocage trazendo a sua obra para o século XXI

Contra o esquecimento, a homenagem pretende “trazer Elmano Sadino para o século XXI” e internacionalizar a sua obra.
MIGUEL MADEIRA

Setúbal vai celebrar os 250 anos do nascimento de Bocage com um vasto programa de comemorações, ao longo de um ano inteiro, que pretende reavivar a memória sobre o poeta sadino e internacionalizar a sua obra, anunciou o município setubalense.
As comemorações arrancam oficialmente na próxima terça-feira, 15 de Setembro, dia de nascimento do poeta e feriado municipal de Setúbal, com a cerimónia do hastear da bandeira no edifício da Câmara Municipal e o lançamento do selo postal nacional referente aos ‘250 Anos do nascimento de Bocage’ e do “Meu Selo”, produtos dos CTT e do Instituto Nacional Casa da Moeda (INCM) evocativos da efeméride.
O principal objectivo do ano de comemorações é reavivar a memória sobre Bocage que, segundo a organização, não tem o reconhecimento nacional que merece. “Queremos trazer Bocage para o Século XXI”, sintetiza Maria das Dores Meira, presidente da Câmara de Setúbal.
A iniciativa pretende que “a cidade, os setubalenses e todos os que fazem de Setúbal a sua terra, se apropriem do poeta, que o sintam como seu”, diz a autarca.
“É uma oportunidade quase única de colocar Bocage no seu devido lugar na literatura e na cultura portuguesas” disse ao PÚBLICO Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) e membro da comissão científica das comemorações.
“Por razões várias, Bocage está de alguma forma esquecido, não ocupa o lugar que deveria, quando é de facto um dos maiores poetas portugueses de sempre”, afirma o investigador.
Em declarações ao PÚBLICO, a presidente da Câmara Municipal defende que “Bocage é um dos maires poetas portugueses, equiparado a Luís Vaz de Camões ou Fernando Pessoa” e afirma o “grande orgulho” de Setúbal por ser o berço do poeta.
“É um privilégio para Setúbal ter o feriado municipal no dia de um poeta, diferentemente da maioria dos municípios portugueses que dedicam o seu dia municipal a um santo” destaca Dores Meira.
Quanto às causas do relativo esquecimento em que caiu o nome e a obra do poeta sadino, o investigador Daniel Pires, aponta duas razões principais; o decurso do tempo e a especificidade da escrita bocageana.
“A poesia de Bocage é extremamente difícil, não é uma poesia fácil. Por um lado é um poeta popular mas, por outro, a sua poesia não é assim tão apetecível como isso. Ler e gostar de Bocage não é fácil.” O especialista refere ainda que “250 anos é muito tempo e a sociedade em que viveu é completamente diferente da nossa.”
O ano de celebração de Elmano Sadino, como também é conhecido o poeta natural da cidade do Sado, é uma organização do Município de Setúbal em colaboração com o CEB e mais 25 instituições de todo o país.
O vasto programa de comemorações envolve as escolas e associações culturais e recreativas do concelho de Setúbal e, segundo o vereador com o pelouro da Cultura na autarquia sadina, a receptividade já demonstrada pela comunidade educativa deixa antever grande participação.
“Neste grupo, para o qual estão pensadas dezenas de actividades, está apenas uma ínfima parte de todo o programa comemorativo”, disse Pedro Pina, apontando para um total de 250 iniciativas no total dos 12 meses de celebrações.
Internacionalizar obra

A internacionalização da obra de Bocage é o segundo grande objectivo traçado pela organização das comemorações. A presidente da autarquia setubalense aponta a necessidade de “internacionalizar mais Elmano Sadino” e Daniel Pires explica que a “internacionalização é possível” através da tradução da poesia bocageana.

“Estamos a trabalhar nesse sentido, precisamos que a sua poesia esteja disponível em francês, em inglês e em castelhano, e neste momento procuramos tradutores e editores da sua obra nestes países”, disse o investigador.
Segundo o presidente do CEB, “as coisas estão bem encaminhadas” e a organização conta fazer publicação de edições em português-francês, português-inglês e português–castelhano até ao final do ano das comemorações.
Em Setembro de 2016 deverá ter lugar também um congresso de encerramento, com investigadores de vários países, que, de acordo com Daniel Pires, “é outra forma de internacionalização”.
Apesar do referido esquecimento, a obra de Bocage revela actualmente alguma dinâmica editorial.
A Biblioteca Nacional publicou há um mês uma antologia, preparada por Daniel Pires, com fábulas de Bocage em braille, o alfabeto para invisuais. Para esta terça-feira está previsto também o lançamento de uma biografia ilustrada de Elmano Sadino, com o título ‘Bocage: a Imagem e o Verbo’, preparada pelo mesmo especialista e editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda
Daniel Pires, fundador do Centro de Estudos Bocageanos, que estuda e divulga Bocage há 20 anos, é doutorado pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa com tese sobre Bocage, intitulada ‘A transgressão em Bocage’.
Público, 2015-09-12.

http://www.publico.pt/local/noticia/setubal-vai-celebrar-durante-um-ano-dois-seculos-e-meio-de-bocage-1707535




Registo de batismo de Manuel Maria Barbosa du Bocage


No ano em que se celebram os 250 anos do seu nascimento, o Arquivo Distrital de Setúbal disponibiliza o registo de batismo de Manuel Maria Barbosa du Bocage, filho de José Luís Soares e de Mariana Joaquina Xavier du Bocage, nascido em Setúbal a 15 de setembro de 1765 e batizado no dia 29 desse mesmo mês na paróquia de São Sebastião em Setúbal.
Bocage é uma das figuras mais marcantes e representativas da poesia portuguesa.
Foi também militar – tendo estado nas terras do Oriente -, e, enquanto literato, membro da academia literária Nova Arcádia, onde adotou o pseudónimo Elmano Sadino.
Bocage foi preso na cadeia do Limoeiro em agosto de 1797, tendo sido posterior e sucessivamente transferido para os cárceres da Inquisição de Lisboa em dezembro do mesmo ano (“pelas culpas de compor algumas obras heréticas”), enviado em fevereiro de 1798 para o Convento de S. Bento e finalmente confinado no Real Hospício das Necessidades. Saiu em liberdade ainda no ano de 1798.
Faleceu em Lisboa, a 21 de dezembro de 1805, com 40 anos. 
O referido registo integra o livro de registos de batismos número 8 da Paróquia de São Sebastião (Setúbal), e localiza-se na folha 176 verso, 3º registo (PT/ADSTB/PRQ/PSTB05/001/00008).
Poderá aceder aqui à transcrição paleográfica do registo de batismo de Manuel Maria Barbosa du Bocage.
http://adstb.dglab.gov.pt/registo-de-batismo-de-manuel-maria-barbosa-du-bocage/
2015-08-31



http://www.mun-setubal.pt/temps/noticias/original_09_15_14_42_15_setembro_comemoracoes_bocageanas_18.jpg

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Álvaro de Campos beija-os a todos na boca (Alexandra Lucas Coelho)

Alexandra Lucas Coelho
1. Não desci do comboio como Álvaro de Campos porque já não havia bilhetes. Tudo esgotado: o comboio via Faro, o próximo barco, o polvo no barro, a sardinha assada. O ex-pescador Ostílio acaba de bater o seu recorde de transferências de Tavira Cidade/City para a Ilha/Island, uma vida nas redes, outra no ferry boat, a que ele chama reforma. Tem cara disso, engelhada de sol, e um nome que eu nunca tinha ouvido, pelo menos no masculino.
2. Tudo é velho onde fui novo, achou Campos, descendo do comboio aos 41 anos. Seis anos mais à frente, digo de outra forma, tudo é novo onde sou velha. Certo que Tavira não é a vila da minha infância, mas em Lisboa parece-me o mesmo (e tudo também esgotado, do cacilheiro à calçada). Já sei, é melhor que morrer de fome, e até me dizem que este ano o Algarve não está assim tão cheio.
3. Na verdade, não sei, só vi o pedaço de Faro a Tavira, e da última vez que tinha estado no Algarve ainda não se vendiam garrafas de meio litro de azeite a vinte euros, mesmo comprado no olival de origem, porque é um dos melhores do mundo, ao mesmo tempo que a pracinha da igreja de Tavira oferece uma variedade de aproximadamente vinte e três restaurantes indianos. Hoje, em Tavira Cidade/City os vendedores das lojas dos trezentos, que já não são dos trezentos, nasceram no Rajastão, usam turbante e vendem sardinhas de loiça. Entretanto, Álvaro de Campos, além de rua e biblioteca, é uma rota cultural incluindo a varanda onde escrevo. Ainda não localizei o Álvaro de Campos Coffee Shop & Restaurant, mas as críticas no Tripadviser contêm frases como I love Álvaro de Campos for the best vegetable soup in the world. Ah, amado ao nível do estômago, processado em forma de legume, um Álvaro de Campos enfim concreto, orgânico, vivo, depois de tanta vontade de tudo, o gatuno de estrada, as sombras na viela, as prostitutas, todos beijados na boca, pelo menos um momento,
(Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
estalagem, calabouço número qualquer cousa
(aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló,
ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
meu coração postigo,
meu coração encomenda,
meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice,
eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração)

4. Aquela casa das tias velhas que lhe liam a Nau Catrineta? Podia ser a minha morada em Tavira. A primeira vez que subi as escadas achei que era a pensão das Recordações da Casa Amarela, e a todo o momento o perfil de João César Monteiro seria projectado pelo sol da tarde, cigarrinho bruxuleando. Agora, ao fim de algumas noites, acho que afinal podia ser a casa das tias velhas de Álvaro de Campos, tiquetaque do relógio e tudo. Afinal ou também, porque a sombra de Campos seria quase a de César Monteiro, magro, curvado, cigarrinho bruxuleando, monóculo em vez de óculos. De resto, rangidos, estalidos, portas de bandeira, maçanetas de loiça, chão de tábua, mosaico.
5. Mas saindo colina acima, pela noite, parece-me que a casa de Campos teria de ser mais fidalga, talvez esta, com janelas em arco, ou aquela de sacada, palavra que Fernando Pessoa tanto usou, e agora, como tantas, se usa sobretudo no Brasil, duplicada em sentido (varanda, ou a percepção que de repente sai).
6. Mais fidalga porquê? Porque fidalgo e judeu foi o passado que Pessoa deu ao seu duplo dois centímetros mais alto, engenheiro (in)capaz de toda a sensação. Então, em certo dia de 1930, Álvaro de Campos desembarca de volta a este horizonte de quintal e praia, e a vila da infância é afinal uma cidade estrangeira, distância entre tudo o que era, tudo o que não será, mais aguda por nela ver a sua própria cara.
7. Vem, claro, no lugar do próprio Pessoa, é o seu sensor avançado, em busca dos antepassados de Tavira. E, reparo agora, a travessa que todas as manhãs me leva de casa ao rio Gilão chama-se Jacques Pessoa. Não vou pesquisar, fica no talvez, quem sabe, um tetravô. Em Tavira podemos sempre recuar aos marcos da nacionalidade, por exemplo, chegando ao fim da ponte romana lá está, do lado direito, a placa em memória dos valorosos moradores de Tavira e de Faro que na crise política de 1383 a 1385 defenderam nesta ponte a causa de D. João I, mestre de Avis e nela proclamaram a vitória decisiva do Algarve na luta pela independência de Portugal.
8. Já neste Verão de 2015, a nacionalidade está mais para cerveja artesanal, flor de sal, chamando à vida um figo em várias línguas. Qualquer holandês-alemão-italiano-francês-espanhol dirá, de nariz no ar, em busca de casa para restaurar, como em Portugal se come bem, derivado ao clima mas não só, além, claro, da paz que não há nas duas margens do Mediterrâneo, a que vê os barcos partirem e a que vê os mortos a bordo. Descendo pela Via do Infante, invisível, sozinho, Álvaro de Campos beijá-los-ia a todos na boca, coração rendez-vous da humanidade, pulmões cheios de água.
Alexandra Lucas Coelho, revista 2, Público, 2015-09-06
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/alvaro-de-campos-beijaos-a-todos-na-boca-1706786?frm=pop

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Açorianus maximus (Manuel Leal)

Manuel Leal

Os presuntivos constituintes cognitivos no conteúdo da ideação da açorianidade de Vitorino Nemésio (1980) foram elementos dinâmicos da identidade individual e do grupo.
O autor de Mau Tempo no Canal não expressava apenas a sua perceção, mas o despertar da convergência arquipelágica no discurso em que se tomou consciência do sentido latente de identidade do povo açoriano. A literatura fez-se espelho da realidade que a precedeu. Depois, foi Onésimo Teotónio Almeida que lhe deu voz na academia para além do espaço insular.
A influência de Miguel Unamuno (2005) teria decerto encaminhado Nemésio para a condição arquipelágica, com importantes implicações históricas e existenciais. A açorianidade com Nemésio assumiu-se como manifestação vaga e quiçá figurativa. Nominal na aparência, incubaria uma ideia mais íntima e complexa, porém, que não era novel nem desconhecida no espaço físico do arquipélago. Expressava na narrativa existencial da vivência ilhoa uma comunidade quase imaginada naquela época, construída como uma metáfora por conveniência.
E até, quiçá, insegurança em termos de consequências políticas na ameaça sempre oculta e ubíqua do governo autoritário a partir de 1933. Formou-a na investigação introspetiva do sentido de pertença do indivíduo na sua sociedade.
Nemésio não podia experienciar a açorianidade sem a diferenciação no contraste identitário com outra entidade em competição pelo seu afeto e sentido de participação na sua essência. As identidades não se adquirem nem tomam forma num vácuo. Não o fazia entre ilhas porque no seu conjunto constituíam o todo inseparável do seu imaginário como um gestalt, o padrão comparativo. Ele deu nome à açorianidade, como entidade afetiva e cultural, que depois tentaria evidenciar, cautelosamente, para não ferir a personalidade prescrita do homem açoriano, prostrado na peripeteia profunda do pathos lusíada. A decadência nacional manifestava-se na corrupção do tecido político nacional, agitado pela descrença do período do pós-guerra. A subalternização das Ilhas, omnipresente na sua história, acentuara-se no desgaste da situação social e económica da gente açoriana, cuja condição pesava na convergência solidária do Arquipélago.
As particularidades do momento histórico promovem ou cerram a visão dos povos, como do indivíduo aos estímulos do zeitgeist na dimensão geográfica do pensamento. A teoria do Grande Homem, por outro lado, fez salvadores de pátrias exaustas e céticas da elevação da pessoa na individualidade do esforço coletivo. Teria criado até Einstein no domínio da ciência. Mas não se coaduna com a realidade biológica da espécie ou da evolução cultural. Cada geração beneficia do produto do conhecimento das que lhes precederam.
A cultura, como a define a ciência social, assemelha-se ao curso de um rio em relação a um ponto estático nas margens. A tecnologia do Grande Acelerador de Hadrões inaugurado na Suíça em 2008 teve a sua origem no conceito da organização da matéria de um filósofo grego da antiguidade. No mesmo contexto, a narrativa existencial, como a modernidade ou a ideia do progresso, desenvolve-se de maneira que cada instante experiencial se diria uma fotografia na corrente múltipla de imagens distintas que nos dão a ilusão de movimento.
Onésimo Teotónio Almeida (1989) prosseguiu o trabalho de Vitorino Nemésio, fazendo coalescer no seu volume Açores, Açorianos, Açorianidade as ideias que a ausência da casa materna e do rincão natal, talvez, lhe trouxera enquanto residia, sucessivamente, na Terceira, onde frequentou o seminário, depois Lisboa para se licenciar e por fim os Estados Unidos.
Neste país, na Universidade Brown, obteve um mestrado e o doutorado e ingressou no quadro docente em que já funcionava como adjunto.
Na análise académica, ao modo intelectual de Unamuno, Onésimo deduz o papel do apego psicológico como experiência individual. Mas deixa à associação cognitiva dos seus muitos leitores a interpretação da individualização afetiva da açorianidade para além das implicações históricas e literárias do processo evolucionário na convergência das memórias em ideologia étnica.
Não deixa dúvidas, porém, de que a vive na sua irredutibilidade afetiva, se aqui posso usar a expressão de Unamuno (2005), sentindo-a na “carne da alma”.
A açorianidade não é, porém, de algum modo, apenas a paisagem e naturalidade, um legado genético, uma tradição religiosa, uma história, ou o processo de adaptação da cultura e da língua portuguesas num quadro específico de configuração geográfica. A voz de avós, as carícias da mãe, a reminiscência dos amigos.
E até um modo de pensar a existência e de ser humano, como modo de socialização. É tudo isto, na realidade, mas transcende o indivíduo no perfil de um povo com passado, presente e uma promessa de futuro.
Há na afirmação de Onésimo de ser e sentir-se açoriano um muro conceptual, contudo, que ele não ultrapassa para se reter remoto, mas não alheio, à esterilidade política, quiçá, na definição da condição trágica do povo açoriano.
Este “açorianus maximus” na diáspora e, parafraseando Camões em Os Lusíadas, no mundo que os açorianos criaram na sua comunidade afetiva pluricontinental, conserva-se consistente nesta posição de aparente neutralidade fora do sua aglutinação introspetiva. A redutibilidade da açorianidade de Onésimo não poderia consumar-se sem consequências na sua aceção. Teve, assim, de impor a si mesmo uma disciplina de conduta que obedece ao rigor da ética do seu múnus universitário.
A açorianidade como identidade define-o, mas não o separa nas polaridades entre as quais se constituiu. Neste comportamento, o Onésimo único e multímodo de João Maurício Brás (2015) tem-se mantido fiel à sua própria noção, há muitos anos declarada, de que não cabe à diáspora a participação distante na minúcia e no confronto entreílhas de interesses do processo político no arquipélago. Não é a ausência que o detém. A distância física não o inibe de cruzar o Atlântico numa frequência que para outros dá a impressão de que nunca dos Açores saiu.
No entanto, no seu trabalho de divulgar e investigar a açorianidade revela-se uma aderência ideológica, latente na identidade de que é talvez o seu mais alto expoente na transmissão ideacional. Onésimo tornou-se numa referência obrigatória na temática da açorianidade pelo que ele escreve e pelo que se diria subentender.
O paralelismo com Nemésio não pode passar despercebido.

Manuel Leal, Diário dos Açores, 2015-09-05.

Bibliografia:
Almeida, O. T. (1989). Açores, Açorianos, Açorianidade -- um espaço cultural. Ponta Delgada: Signo.
Brás, J. M. (2015). Onésimo, único e multímodo. Guimarães: Opera Omnia.
Unamuno, M. (2005). Tragic sense of life. (J. E. Futch, Trad.) New York: Cosimo Classics.
Nemésio, V. (1980). Mau tempo no canal: romance (ed. 6ª). Lisboa: Bertrand.