domingo, 19 de junho de 2016

Ana Cristina César

 


     ANA CRISTINA CESAR (1952-1983) deixou em sua breve passagem pela literatura brasileira do século XX uma marca indelével. Tornou-se um dos mais importantes representantes da poesia marginal que florescia na década de 1970, justamente pela singularidade que a distanciava das “leis do grupo”. Criou uma dicção muito própria, que conjugava a prosa e a poesia, o pop e a alta literatura, o íntimo e o universal, o masculino e o feminino - pois a mulher moderna e liberta, capaz de falar abertamente de seu corpo e de sua sexualidade, derramava-se numa delicadeza que podia conflitar, na visão dos desavisados, com o feminismo enérgico, característico da época. 
Entre fragmentos de diário, cartas fictícias, cadernos de viagem, sumários arrojados, textos em prosa e poemas líricos, Ana Cristina fascinava e seduzia seus interlocutores, num permanente jogo de velar e desvelar. Cenas de abrilCorrespondência completaLuvas de pelicaA teus pésInéditos e dispersosAntigos e soltos: livros fora de catálogo há décadas estão agora novamente disponíveis ao público leitor, enriquecidos por uma secção de poemas inéditos, um posfácio de Viviana Bosi e um farto apêndice. A curadoria editorial e a apresentação couberam ao também poeta, grande amigo e depositário, por muitos anos, dos escritos da carioca, Armando Freitas Filho. Dos volumes independentes do começo da carreira aos livros póstumos, a obra da musa da poesia marginal - reunida pela primeira vez em volume único - ainda se abre, passados trinta anos de sua morte, a leituras sem fim.
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13623

CESAR, Ana Cristina.  Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 504 p.  13,5x21 cm.  Curadoria editorial: Armando Freitas Filho. Capa e projeto gráfico: Elisa von Randow. Foto da capa Cecília Leal.   ISBN 978-85-359-2351-3  Col. A.M. 



Biografia
Ana Cristina Cruz Cesar (Rio de Janeiro RJ 1952 - idem 1983). Poeta, ensaísta, tradutora. Filha de Maria Luiza César e do sociólogo e jornalista Waldo Aranha Lenz César, um dos responsáveis, com o editor Ênio Silveira (1925-1996), pela fundação da editora ecumênica Paz e Terra. Aos sete anos, Ana Cristina tem seus primeiros poemas publicados no jornal Tribuna da Imprensa. Entre 1969 e 1970, interrompe o curso clássico no Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia, para estudar inglês no Richmond School for Girls, em Londres, pelo programa de intercâmbio da juventude cristã. Ingressa, em 1971, na Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Desde a vida universitária, participa ativamente da cena cultural carioca e do movimento da poesia marginal, convivendo com poetas como Cacaso (1944-1987) e intelectuais como Heloísa Buarque de Hollanda (1939). Ainda em 1971, inicia a atuação como professora, em escolas de 2º grau e de idiomas. Após a conclusão da graduação, em 1975, colabora para publicações como OpiniãoJornal do BrasilFolha de S.Paulo, com destaque para Beijo, importante periódico de cultura, com sete números impressos, cujo processo acompanha desde sua criação. Em 1979 lança, de forma independente, o primeiro livro de poesia, Cenas de Abril. Seguem-se Correspondência Completa, uma carta ficcional, e Luvas de Pelica, publicado em 1980. Dessa mesma época datam as primeiras traduções, atividade que se torna objeto de estudo na pós-graduação: em 1981, torna-se mestre em teoria e prática da tradução literária pela Universidade de Essex, Inglaterra. De volta ao Brasil, é contratada como analista de textos pela Rede Globo de Televisão e lança, em 1982, A Teus Pés - reunião de títulos publicados até então e ainda o inédito que nomeia o volume. Aos 31 anos, em 1983, comete suicídio. Após sua morte, o poeta e amigo Armando Freitas Filho (1940) organiza sua obra e promove o lançamento dos livros Inéditos e Dispersos, em 1985, Escritos da Inglaterra, 1988, e Escritos no Rio, 1993.
Comentário crítico
Embora comumente identificada aos poetas marginais da década de 1970, Ana Cristina Cesar emprega os procedimentos comuns ao grupo a fim de criticá-los desde o interior: simula o discurso confessional a partir de falsas correspondências e diários; alcança o tom coloquial parodiando textos da tradição literária.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2866/ana-cristina-cesar (Atualizado em: 02-03-2015)


OBRA DE ANA CRISTINA CESAR
Poesia e prosa
:: Cenas de abril. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1979.
:: Correspondência completa. [carta ficcional]. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1979.
:: Luvas de pelica. [diário poético]. Rio de Janeiro: Edição da autora, 1980.
:: A teus pés[reúne os livros: Cenas de abril, Correspondência completa, Luvas de pelica  e Inéditos e dispersos]. São Paulo: Brasiliense, 1982; São Paulo: Ática / IMS, 1998.
:: Inéditos e dispersos (prosa e poesia).. [organização Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
:: Novas seletas [organização Armando Freitas Filho; com um ensaio de Silviano Santiago]. Rio de Janeiro: Ediouro/Nova Fronteira, 2004.
:: Antigos e soltos - poemas e prosas da pasta rosa. [organização e estudo introdutório de Viviana Bosi].. (edição fac-similar). Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2008.
:: Poética. [curadoria editorial e apresentação Armando Freitas Filho; posfácio Viviana Bosi]. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Ensaios
:: Literatura não é documento. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1980.
:: Escritos no Rio. (ensaios e artigos).. [organização e prefácio Armando Freitas Filho]. São Paulo: Editora Brasiliense/Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993.
:: Escritos da Inglaterra(ensaios e artigos).. [organização e prefácio Armando Freitas Filho]. São Paulo: Brasiliense, 1988.
:: Crítica e tradução. [reunião dos 3 livros anteriores e poesias traduzidas inéditas]. São Paulo: Editora Ática, 1999.

Desenhos e anotações
:: Caderno de desenhos[com desenhos e anotações da poeta durante sua estada nas cidades inglesas de Portsmouth e Colchester, em 1980]. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1980.

Correspondência
:: Ana Cristina Cesar – Correspondência incompleta. [organização Heloisa Buarque de Hollanda e Armando Freitas Filho]. São Paulo: Aeroplano/IMS, 1999; reedição.  Selo HB; E-galáxia, 2016.

Biografia
:: Ana Cristina Cesar – O sangue de uma poeta. [autor Italo Moriconi]. E-galáxia, 2016.

Antologias [participação]
:: Os cem melhores poemas brasileiros do século. [seleção e organização Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
:: 26 Poetas hoje. [Organização Heloisa Buarque de Hollanda]. Rio de Janeiro: Aeroplano, 6ª ed., 2007; reedição. Selo HB; E-galáxia, 2016.



Acervo Ana Cristina Cesar O Acervo Ana Cristina Cesar chegou ao Instituto Moreira Salles em quatro etapas que se sucederam entre setembro de 1999 e setembro de 2005. É formado de biblioteca de cerca de 797 itens, entre livros e periódicos, revistas de artes e teses de doutorado, catalogadae de arquivo com aproximadamente: produção intelectual contendo 300 documentos, entre os quais anotações de leitura, crítica literária, poemas e cadernos de notas, correspondência com 40 itens, 590 recortes de jornais e de revistas, desenhos, quatro documentos audiovisuais e provas de impressão de livros. O acervo conta ainda com a máquina de escrever da poeta.
Em 1998, a editora Ática associou-se ao Instituto Moreira Salles para relançar a obra da autora, da qual foram publicados, entre outros, A teus pés e Inéditos e dispersos.
Em meio aos 301 manuscritos existentes no arquivo de Ana Cristina Cesar, a professora Viviana Bosi, da Universidade de São Paulo, localizou os conjuntos organizados pela própria poeta sob os títulos de “Prontos mas rejeitados”, “Inacabados”, “Rascunhos/primeiras versões”, “Cópias”, “O livro” e “Antigos & soltos”. Desse conjunto, resultou a seleção publicada em edição fac-similar pelo Instituto Moreira Salles sob o título de Antigos e soltos, em 2008, com organização e estudo introdutório de Viviana Bosi. Ao assumir a consultoria de Literatura do IMS, o poeta e professor Eucanaã Ferraz promoveu, em 2010, o curso “Aos pés de Ana Cristina”, em quatro aulas.
*
 Poeta de privilegiada consciência crítica, Ana Cristina Cesar, para quem literatura e vida eram indissociáveis, destacou-se na década de 1970 com uma poesia intimista marcada pela coloquialidade e com seu talento para vertentes diversas da atividade intelectual.
Ana Cristina Cruz Cesar nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 2 de junho de 1952, filha de Waldo Aranha Lenz Cesar e Maria Luiza Cesar. Viveu “em estado de emergência”, nas palavras de Florência Garramuño, argentina estudiosa de sua obra, e, desse modo, transitou com avidez por áreas distintas, desde a poesia, passando pelo cinema, pela crítica literária e pela tradução. Licenciada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 1975, sua dissertação de mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ resultou na publicação, em 1980, do livro Literatura não é documento, importante levantamento de documentários sobre escritores e movimentos literários do Brasil. Ainda como aluna da PUC-Rio, não tardou a ser descoberta pela professora Clara Alvim, com quem estabeleceria relação epistolar importante. Em 1975, Heloisa Buarque de Hollanda, também sua professora, a incluiria na antologia 26 poetas hoje, seleção de talentosos representantes da geração daquela década, intérpretes de uma liberdade estética incomum, que aproximou leitor e poesia por meio de informalidade e aparente improviso. No entanto, a própria Ana Cristina declarou, quando lhe perguntaram se sua poesia era racional: “É muito construída, muito penosa”.
De personalidade inquieta, ela estudou na Universidade de Essex, na Inglaterra, onde legitimou seu talento de tradutora ao receber o título de Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation, em 1980. Desse período, resultaria Escritos da Inglaterra (ensaios e textos sobre tradução e literatura), publicado postumamente, em 1988, com organização do amigo e poeta Armando Freitas Filho, dos mais devotados estudiosos de sua obra. Entre os trabalhos de Ana Cristina Cesar mais notáveis no gênero, destaca-se The Annotated Bliss (O conto ‘Bliss’ anotado), tradução do famoso texto de Katherine Mansfield, com 80 notas explicativas, que constituiu sua dissertação de mestrado em Essex. A tradutora se encantava com o “caráter monossilábico da língua inglesa”, o que a levou ainda a se dedicar a Emily Dickinson e outros. Não foi menor sua vocação à crítica literária, coletada em Escritos no Rio (artigos, textos acadêmicos e depoimentos), em 1993, também com organização de Armando Freitas Filho.
Na tradução de Ana Cristina, a personagem Bertha Young, de Bliss, viveu um momento como se “tivesse de repente engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito”. Tal qual a tradutora, tamanha a sofreguidão com que Ana Cristina colaborou com artigos na imprensa alternativa da época, fez resenhas e traduções e deu aulas no ensino secundário na década de 1970.
Em 1982, Ana Cristina Cesar publicou A teus pés, reunião de seus três primeiros livros: Cenas de abril, de 1979, que abre com os versos “é sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço”; Correspondência completa, do mesmo ano, na verdade uma única e longa carta endereçada a “My dear”, publicada em edição diamante, artesanal, no mesmo ano, e Luvas de pelica, de 1980, em formato de diário. As reedições são acrescidas de um quarto conjunto até então inédito, intitulado A teus pés, que dá título ao livro.
Ana Cristina Cesar morreu no Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1983. Por vontade expressa da poeta, seu acervo literário ficou inicialmente na casa de Armando Freitas Filho que, com a ajuda de Maria Luiza, mãe de Ana Cristina, e da amiga Grazyna Drabik, organizou, a partir do material, a edição de Inéditos e dispersos (prosa e poesia), de 1985.



"A poesia de Ana Cristina Cesar caracteriza-se por ser predominantemente confessional, mas o tom de intimidade, não nos deve enganar, pois é apenas um lance de sedução estética. A correspondência, realmente, como apontou Armando Freitas Filho, teve bastante influência sobre a sua dicção poética. Ela cria um verdadeiro jogo de linguagem: textos curtos, poemas fragmentados, cartas, páginas de diário. A poesia torna-se, desta forma, uma inquietante reflexão sobre o próprio fazer literário".  (p. 22)
"Assim percebemos que o texto-colagem da poeta instaura um sujeito estilhaçado, uma memória construída através da subjetividade fincada no corpo coletivo da linguagem. Seu método de composição baseia-se na apropriação incessante de versos e trechos de outros escritores que ela distorce, desloca, alude, readapta, reescreve, parafraseia e parodia. É uma obra que faz uma reflexão constante sobre a natureza do literário".  (p. 27)
"Os poemas de Ana Cristina Cesar, inserida no clima da geração 70, revelam, entre as muitas características que marcaram a produção poética daquela época,  as seguintes: atração pelo insólito do cotidiano; ênfase na experiência existencial num momento especialmente difícil da história e da política brasileira; volta à primeira pessoa, à escrita da paixão e do medo como caminho eficaz no sentido de romper o silêncio e a perplexidade que tomaram de assalto a produção cultural no início da década; o sentido de asfixia, experimentado no cotidiano, mas trabalhado com humor; valorização do coloquialismo; culto do instante, eixo fundamental da nova poesia e do binômio arte e vida. / O binômio arte e vida era a consolidação de uma visão de mundo que valorizava o aqui e o agora: a ideia do presente, eliminando a ideia de futuro." (p. 55)
Textos extraídos da excelente obra de Arminda Silva de SerpaLições sobre asas e abismos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Fortaleza: Imprece, 2009.
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“Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. Um dos escritores mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira.” - Caio Fernando Abreu, 1982
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“Um texto ultrassintético, desdobrável em muitas leituras, mas nunca esgotável. Eu sou apenas um eterno deslumbrado com a poesia, a prosa e a pessoa da carioca.” - Reinaldo Moraes, 1982
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“Entre Ana e o texto, entre Ana e a vida, havia a elipse, o prazer do pacto secreto com seu possível interlocutor. A isso ela chamava ‘páthos feminino’. Disso, ela fez seguramente a melhor e a mais original literatura produzida dos anos 1970.” - Heloisa Buarque de Hollanda, 1984
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“Ela não foi - ela fica - como uma fera.” - Armando Freitas Filho, 1985
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“Ana Cristina Cesar deixou uma obra poética absolutamente singular no panorama da literatura brasileira do século XX.” - Joana Matos Frias, 2005
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“Ana Cristina, assim como outros poetas de sua geração, debate-se com o agora.” - Viviana Bosi, 2013





ciúmes
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente.
abril/68


Tenho uma folha branca
                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca
                            e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma vida branca
                            e limpa à minha espera.

5.2.69

O nome do gato assegura minha vigília
e morde meu pulso distraído
finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos
e patas emergentes. Mas onde repousa

o nome, ataque e fingimento,
estou ameaçada e repetida
e antecipada pela espreita meio adormecida
do gato que riscaste por te preceder e

perder em traços a visão contígua
de coisa que surge aos saltos
no tempo, ameaçando de morte
a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era
marca do meu rosto, garra no meu seio.

2.10.72

E penso
a face fraca do poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura
flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
pânico iminente do nada.


“Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares”
Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os
pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que
enjôo me dá o açúcar do desejo.


é aqui
por enquanto
ainda não tem
cortina
tapete luz indireta
amenizando a noite
quadro nas paredes


Noite carioca
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio
Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento
a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum
segredo.


Mocidade independente
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem
medir as conseqüências. Por que recusamos ser proféticas?  E
que dialeto é esse para a pequena audiência de serão?  Voei pra
cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma
graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por
você, e furiosa: é agora, nesta contramão.


Nada disfarça o apuro do amor.
Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao
céu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.


A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que
nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.


Esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


O Homem Público N. 1
Tarde aprendi
bom mesmo 
é dar a alma como lavada.
Não há razão 
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita 
que vai sendo cortada
deixando uma sombra 
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.




De: Ana Cristina Cesar, Portsmouth 30-6-60  Colchester 12-7-80
São Paulo: Instituto Moreira Salles; Livraria Duas Cidades, sd.
Um "caderno de desenho"  espiralado reproduzindo anotações e desenhos de Ana Cristina Cesar durante sua estada na Inglaterra. Uma bela edição em honra da musa do final do século 20 que persiste no culto  de admiradores. Reproduzimos duas imagens e recomendamos a obra para colecionadores e bibliófilos. Livro-objeto. Memorabilia.

INVERNO EUROPEU
Daqui é mais difícil: país estrangeiro, onde o creme de leite é desconjunturado e a subjetividade se parece com um roubo inicial.
Recomendo cautela. Não personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte teórico da década passada. Os militantes sensuais passam a bola: depressão legítima ou charme diante das mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva não digo nada e indiscretíssima descalço as luvas (no máximo) à direita de quem entra.
         (De A teus pés, 1982)


NOITE CARIOCA
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiro no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
                   (De A teus pés, 1982)


TRAVELLING
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco


MARFIM
A moça desceu os degraus com o robe
monografado no peito: L. M. sobre o coração.
Vamos iniciar outra Correspondência, ela
propôs. Você já amou alguém verdadeiramente?
Os limites do romance realista. Os caminhos do
conhecer. A imitação da rosa. As aparências
desenganam. Estou desenganada. Não reconheço
você, que é tão quieta, nessa história. Liga
amanhã outra vez sem falta. Não posso
interromper o trabalho agora. Gente falando por
todos os lados. Palavra que não mexe mais no
barril de pólvora plantado sobre a torre de
marfim.


COMO RASURAR A PAISAGEM
a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta


PSICOGRAFIA

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não sou e digo
a palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto






Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra
28.5.69


Fisionomia
não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outrart
outra a dor que dói


houve um poema
que guiava a própria ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me console,
nenhum,
e saía,
sirenes baixas,
recolhendo os restos das conversas,
das senhoras,
"para que nada se perca
ou se esqueça",
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante,
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo.


sumário
Polly Kellog e o motorista Osmar.
Dramas rápidos mas intensos.
Fotogramas do meu coração conceitual.
De tomara-que-caia azul-marinho.
Engulo desaforos mas com sinceridade.
Sonsa com bom-senso.
Antena da praça.
Artista da poupança.
Absolutely blind.
Tesão do talvez.
Salta-pocinhas.
Água na boca.
Anjo que registra.


deus na antecâmara
Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, vaiei-nos, santos perdidos)

Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pêlos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sanguinária

(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)

Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero parir ao repartir

filho
pai
e
fogo

DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando

HOMEM: ACORDA!

3.7.69

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/ana_cristina_cesar.html 






Cada busca inútil me traz uma impressão longínqua de despedaçar-se: chegou-se a algum lugar, afinal, pois chegamos quando nos dispomos a continuar; mas a que custo! Seria talvez mais desejável para nós, gente, não chegar, achando quem sabe um último suspiro depois de um último passo.
Cada noite que desce sobre uma espera vã traz-me à boca um gosto de vinagre, aos ouvidos um som qualquer que ensurdeça. Ninguém se disse adeus, e na ausência de luz alguém está morrendo sozinho.
Cada vez que não morremos parece-me que demos mais um passo para trás, progredimos no sentido inverso, chegamos, pois que nos levantamos para prosseguir. E nestes dias de indolência, oco, ânsia oculta, uma sensação de interminabilidade sobe, sobe, pelas veias sobe. Nada. Esta falta de segredo é uma chegada, no seu verdadeiro significado: chegada é sempre escala; ponto para respirar; pela penúltima vez, quem sabe.
Esta brisa marinha semimágica que entra tão sub-repticiamente pela janela denuncia o quê? ou liquefaz meus suspiros em mistério tátil e tácito. Meu Deus, de novo a brisa a me desalienar e desalinhar, despertando o borbulhar que o ano inteirinho pressentiu. Suspirosa e oleosa, uma tonta. Ligo o rádio. Será que eu fui engolida inteira? Faz de conta que a minha digestão é fácil, que as grandes partes se derreteram já, que os ossos cuspidos estão arrumados, insensíveis e ressecando. Ouvi dizer, li em algum lugar: Ana é idiota. Se conspirassem contra mim, talvez eu fosse. A noite despencou e quebrou três estrelas. 
Texto de "Gota a gota", original da autora.

Extraído de:
CÉSAR, Ana Cristina.   Inéditos e dispersos: prosa / poesia. Organização Armando Freitas Filho.  3ª edição.   Instituto Moreira Salles, Editora Ática, 1998.   205 p +16 f. de fotos ilus. p&b   15x22 cm.   ISBN  85-080718-7.  Apoio da Lei de Incentivo à Cultura. Ministério da Cultura. Inclui prosa, poesia e desenhos da autora, copiados dos arquivos da poeta depois de sua morte pela mãe Maria Luiza e Grazyna Drabik e logo selecionados pelo organizador da presente edição.  O texto é o mesmo da 2ª. edição.  Col. A.M.   


*





Poeta Ana Cristina César será a homenageada da Flip em 2016

Após prestar tributo ao modernista Mário de Andrade, festa literária aposta em autora ‘marginal’

Reprodução/Luciana Whitaker/Folhapress
Ana C. em imagem de maio de 1975 que está no acervo do Instituto Moreira Salles, no Rio

‘Ela pertence à última geração consagrada na poesia brasileira. É uma obra que ressoa ainda hoje’, afirma curador
FOLHA
O par de óculos escuros mais famoso da poesia brasileira vai desfilar pelas ruas de pedra. É que a próxima edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece de 29 de junho a 3 de julho de 2016, resolveu homenagear uma moça carioca fora do cânone literário: a poeta Ana Cristina César.
O anúncio foi feito na sexta (13) pela organização do evento, que, após prestar tributo a Mário de Andrade neste ano, agora aposta em um nome com menos cara de medalhão. É uma autora famosa pela poesia, mas que também deixou uma produção em prosa, caso de seus ensaios.
“A Flip tem isso. Uma hora pega um autor já consagrado, em outra um em processo de consagração. É o caso da Ana Cristina e do Millôr Fernandes [homenageado em 2013]”, diz o curador Paulo Werneck.
Ana C., como gostava de ser chamada, morreu em 1983, aos 31 anos, e deixou uma obra curta, que hoje está completa em “Poética” (Companhia das Letras, 2013), organizada por Armando Freitas Fi- lho, melhor amigo da autora.
A escritora surgiu na geração mimeógrafo, no seio da chamada poesia marginal. Estava na antologia “26 Poetas Hoje”, lançada nos anos 1970 por Heloísa Buarque de Hollanda. Fazia parte da mesma turma de Cacaso, Chacal, Torquato Neto e Francisco Alvim.
As poesias mimeografadas tinham tudo a ver com o contexto de censura da ditadura: era mais fácil fazer edições artesanais, fora dos circuitos culturais. Assim, os livros eram vendidos de mão em mão.
Tanto que a primeira obra de Ana publicada comercialmente foi “A Teus Pés” (1982), pela Brasiliense, seu livro mais famoso. Mas trazia poemas que já haviam circulado em edições artesanais, como “Cenas de Abril” e “Correspondência Completa”, de 1979.
Ana e sua geração usavam o coloquialismo, recebendo influência do cinema e da cultura pop —mas sem esconder a erudição da autora. Com essa linguagem, poetas marginais renovavam a proposta estética do modernismo de 1922.
“Ela pertence à última geração que se consagrou na poesia brasileira. É um trabalho que ressoa na poesia contemporânea”, diz Werneck. “Sem ela, hoje não existiriam Alice Sant’Anna, Bruna Beber e Ana Martins Marques.”
O acervo de Ana C. está no Instituto Moreira Salles, no Rio. São mais de 600 itens — de onde, com os holofotes sobre a autora, podem brotar inéditos. (MAURÍCIO MEIRELES)





Ana Cristina Cesar é a homenageada da Festa Literária de Paraty 2016

Depois de Clarice Lispector numa das primeiras edições, é agora a vez de outra autora de culto ser consagrada na FLIP.

A autora carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) é a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) que vai realizar-se no Brasil entre 29 de Junho e 3 de Julho. E é também uma homenagem à Poesia Marginal, de que ela era considerada o expoente. Além de poeta, foi crítica literária e tradutora.
“A poesia é uma força na FLIP: é sintomático que o livro da Matilde (Jóquei) tenha sido o mais vendido na FLIP 2015, e o da Bruna Beber (Rua da Padaria) tenha sido o mais vendido em 2013. E a poesia contemporânea brasileira tem a marca de Ana Cristina”, explica ao PÚBLICO Paulo Werneck, o curador desta festa literária.
Desde a primeira edição, em 2003, é a segunda vez que aquele que é o mais importante festival literário brasileiro terá como homenageada uma mulher, depois de, em 2005, ter sido a escritora Clarice Lispector (1920-1977) a escolhida. Na última edição da FLIP, o autor homenageado foi o escritor Mário de Andrade.
No próximo ano não se comemora nenhuma efeméride relacionada com a escritora que tem a poesia reunida publicada no livro Poética (Companhia das Letras, 2013), organizado pelo poeta Armando Freitas Filho, indicado pela família como curador literário da obra depois da morte da autora no Rio de Janeiro.
“A intenção é jogar luz sobre uma autora extraordinária, nada mais do que isso. Ana C. morreu há quase 35 anos, é um bom momento para voltar a sua obra”, afirma Paulo Werneck lembrando que entre os poetas que estiveram nas últimas edições da FLIP, Ana Cristina Cesar é uma espécie de marca fundamental.

A autora que em Portugal tem a sua poesia publicada na antologia Um Beijo que Tivesse um Blue (edições Quasi, 2005, com selecção e prefácio de Joana Matos Frias) “influenciou profundamente” toda uma geração de poetas brasileiros como Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Bruna Beber, Mariano Marovatto, Marília Garcia e até Gregorio Duvivier. “Para não falar em Francisco Alvim, Eucanaã Ferraz, Carlito Azevedo, ou mesmo na Matilde Campilho”, lembra ainda Werneck. “Queremos sublinhar essa influência e fazer conhecer melhor a obra de Ana Cristina. Além disso, a homenagem convoca a geração da Poesia Marginal, que tem poetas muito importantes e activos, alguns em vias de consagração”, acrescenta.
O curador da FLIP explica que esses poetas marginais dos anos 1970 (época da ditadura militar no Brasil), da chamada “Geração Mimeógrafo’, tinham um “ímpeto admirável” de divulgação das obras através de meios alternativos. Faziam-no à margem do mercado editorial - na praia, em festas, através de espectáculos e de performances, bem ao espírito desses anos 70 mas com uma relação directa com o que se passa hoje em dia. Estes autores fizeram também "uma leitura fundamental" de Drummond e dos grandes poetas do modernismo brasileiro. “Vai ser bonito ver isso tudo em Paraty”, conclui o curador que estará à frente da programação da festa literária pelo terceiro ano consecutivo. 
Alguns poemas de Ana Cristina Cesar estão incluídos na importante antologia26 poetas hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, que foi sua professora e onde a autora carioca aparece ao lado de outros colegas do movimento Poesia Marginal, como Cacaso (Antonio Carlos de Brito), Chacal, Francisco Alvim, Charles Peixoto, Geraldo Carneiro, Waly Salomão, Eudoro Augusto.
Mas a obra que a revelou aos leitores brasileiros e fez começar um culto que se tem estendido por décadas, como lembra a organização da FLIP em comunicado, foi o primeiro livro da célebre colecção Cantadas Literárias, da editora Brasiliense, A teus pés que reunia três livros publicados por Ana Cristina Cesar em edição artesanal: os versos de Cenas de Abril, aCorrespondência completa (longa carta endereçada a “My dear”) e o diário Luvas de pelica





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Ana Cristina César, ‘poeta marginal’ dos anos 70, será homenageada na Flip

A poetisa carioca é a segunda mulher a ser celebrada na maior festa literária do país

Uma mulher, poetisa e expoente da literatura marginal brasileira nos anos 70, será a homenageada da próxima Festa Literária de Paraty. Ela é Ana Cristina César (1952-1983), carioca que foi ícone literário de sua geração e cuja obra – em poesia, tradução e crítica literária – convida a um resgate que ainda está por acontecer. A escolha da Flip, que após 13 anos de existência põe pela segunda vez uma autora feminina em destaque (a primeira foi em 2005, com Clarice Lispector), endossa os movimentos de mulheres em prol de liberdades individuais e direitos coletivos que ganham, desde outubro, as ruas do país. Por outro lado, põe em foco a Poesia Marginal, movimento do qual fez parte e que eclodiu com a antologia 26 poetas hoje (1975), de Heloísa Buarque de Hollanda.
Paulo Werneck, que é o curador da Flip pelo terceiro ano consecutivo, conta que Ana C. (como os amigos a chamavam), estava na mesa de discussão sobre os homenageados da festa há algum tempo. “Este ano ela se impôs graças à importância de sua obra, mas também pelo fato de a poesia contemporânea funcionar muito bem na Flip”, afirma o curador. Vale lembrar que, na última edição da festa, a jovem poetisa portuguesa Matilde Campilho foi uma das autoras mais celebradas nas mesas literárias e também nas livrarias – seu livro de estreia, Jóquei (editora 34), foi o título mais vendido em Paraty. Dois anos atrás, na edição de 2013, outras duas jovens poetisas, Ana Martins Marques e Bruna Beber, brilharam também – e Rua da padaria (Record), de Beber, foi o título mais vendido daquele ano.
Ainda que um revival de Ana Cristina César já tenha se esboçado em 2013 com a publicação pela Companhia das Letras da antologia Poética, pode-se esperar muito mais a partir de agora. Elizama Almeida, assistente cultural da curadoria de literatura do Instituto Moreira Salles, que detém o acervo da escritora no Rio de Janeiro, comemora: “Ana C. foi incluída no grupo da Poesia Marginal, mas nunca deixou de se destacar dentro dele, com uma voz própria. Há inclusive uma tradição clássica em sua obra, influenciada por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira", explica a pesquisadora. Entre as influências de fora, aparecem especialmente as inglesas Katherine Mansfield e Sylvia Plath, que ela traduziu ao português.


Não sei como poderei pegar no sono. A literatura me perturba. Uma caixa cheia de cartões-postais me perturba. A renúncia me perturba. Até uma caixa d’água, um otorrino gauche, um índice onomástico. Tomo tudo na veia"
ANA C. EM CARTA DIRIGIDA AO AMIGO E POETA ARMANDO FREITAS FILHO
A poesia da carioca é marcada por um tom confessional, direto e de grande coloquialidade. Seus primeiros livros,Cenas de abril e Correspondência completa, foram editados de maneira 100% independente e caseira, pela própria autora e por seus colaboradores e amigos mais próximos, o poeta Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda. Em 1982, surge seu primeiro livro lançado por uma editora (a Brasiliense): A teus pés. “Esse foi o primeiro livro da série Cantadas literárias, que tem uma importância enorme por ter lançado não só Ana Cristina, mas escritores como Caio Fernando e Marcelo Rubens Paiva”, diz Paulo Werneck. Para Elizama Almeida, A teus pésamplia o espectro da autora, “porque ela sai do fazer experimental e passa, em um ambiente mais formal, a dialogar com um público mais amplo, que a consagrou”.


Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca"
ANA C. EM CARTA DIRIGIDA A HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
A morte precoce de Ana C., que se suicidou aos 31 anos, é um tema que permeia as discussões sobre a escritora. Mas tanto o curador como a pesquisadora preferem afastar essa lupa ao analisar seu legado. “A homenagem da Flip tem o objetivo, junto ao público, de ajudar a apresentar um autor  que ainda não se conheça e também desfazer lugares comuns ao redor dele. No caso da Ana Cristina, esse é um aspecto, mesmo evocando uma força e até certo mistério, que limita sua obra”, opina Werneck. Elizama diz que as portas do IMS estão abertas a pesquisadores e interessados no vasto universo da poetisa. E esclarece: “Os momentos mais difíceis na vida dela foram os dois últimos anos antes do suicídio, segundo relatam amigos, e as cartas que ela deixou. Ana era uma pessoa alegre e inteligente, e seria errado que sua morte servisse de chave de leitura principal de sua obra”, diz a especialista, que recomenda o documentário Bruta Aventura em Versos, de Letícia Simões, aos curiosos.
A 14a edição da Flip acontece entre os dias 29 de junho e 3 de julho de 2016. E, no rastro desta homenagem, a poesia marginal deverá impregnar a programação, assim como – espera-se – a voz literária (normalmente silenciada) das mulheres.




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Ana C. INSTITUTO MOREIRA SALLES

Ana Cristina Cesar, uma morta vivíssima em Paraty

Mais de 30 anos depois da sua morte, a obra da "moça eterna" vive nas novas gerações de poetas. A escritora brasileira é a homenageada da FLIP e ganhou uma fotobiografia.
Ana Cristina Cesar (1952–1983) é a autora homenageada da 14.ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) que começa nesta quarta-feira e termina domingo. Ricardo Araújo Pereira, o convidado português, participa sexta-feira na sessão Mixórdia de Temáticas com a escritora e cronista brasileira Tati Bernardi, numa conversa moderada pelo humorista Gregorio Duvivier.
Quem vai à FLIP sabe que “as mesas de poesia fazem um grande sucesso”, explica ao PÚBLICO Paulo Werneck, o curador pelo terceiro ano consecutivo daquele que é o mais importante evento literário brasileiro. Falou-se muito deMatilde Campilho no ano passado, mas em edições anteriores houve Alice Sant’Anna, Bruna Beber e  Ana Martins Marques – “três poetas sensacionais da geração que está se firmando na poesia brasileira”. “Elas sempre roubam a cena.”
Por isso, esta escolha foi também “uma questão de observação”. Ana Cristina “está viva na obra dessas poetas, está sendo lida, tem uma enorme importância actual”, acrescenta Paulo Werneck. “Os seus companheiros de geração, que na época eram undergroundcomo Armando Freitas Filho, hoje estão consagrados”.
A sessão de abertura da festa nesta quarta-feira terá como convidado principal o poeta brasileiro Armando Freitas Filho, que foi amigo de Ana Cristina Cesar e é o responsável pela edição da sua obra. Ao seu lado estará o cineasta Walter Carvalho, autor de um documentário sobre a vida e a obra deste poeta, Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície. O filme será exibido a seguir à conversa moderada por Eucanaã Ferraz, poeta, consultor de literatura do Instituto Moreira Salles (IMS) e organizador de Inconfissões – Fotobiografia de Ana Cristina Cesar, que terá lançamento em Paraty. Segue-se um sarau com vários poetas da nova poesia marginal, herdeira dos poetas marginais dos anos 1970/80.

Moça eterna

A escolha de Ana Cristina Cesar como autora homenageada representa “uma renovação da FLIP importantíssima”, explica Armando Freitas Filho ao telefone, antes de partir para Paraty. Isto porque uma escritora que morreu com 31 anos é colocada ao lado de escritores muito mais velhos, como Carlos Drummond de AndradeManuel Bandeira, Graciliano Ramos ou Oswald de Andrade, homenageados em edições passadas.
“Deu um tom mais alegre” à festa literária, e “mais intenso” também, porque apesar de Ana Cristina ter morrido há 33 anos, a escritora mantém, década após década, “uma inserção, uma importância e uma necessidade” cada vez maiores. “Ela é uma morta viva, vivíssima!”, diz o autor de Rol, que em Portugal tem publicada Uma Antologia (2006) nas edições Quasi.


ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
Foi aliás nesta editora, e no mesmo ano, que saiu em Portugal uma antologia da obra de Ana Cristina Cesar, Um Beijo que Tivesse um Blue, organizada pela professora universitária Joana Matos Frias. Valter Hugo Mãe, que foi editor das Quasi juntamente com Jorge Reis-Sá, lembra que quando os dois criaram a colecção para autores brasileiros ponderaram um conjunto de autores, e que o nome da Ana Cristina Cesar aparecia em todas as conversas. “Subitamente estávamos a conversar com o Armando Freitas Filho, convidando-o para editar connosco, e ele colocava a obra da Ana Cristina Cesar como obrigatória, quase nos motivando a dar prioridade à edição dela antes da edição dele”, conta o escritor, que está a terminar o seu próximo romance e é um dos portugueses com mais sucesso na história da FLIP.
Valter lembra-se também de visitar o pai da poeta na sua casa no Rio de Janeiro, e de este ter ficado comovido ao ser-lhe formalizado o convite dos editores portugueses. “Havia em quase todos os poetas brasileiros renomados uma quase frustrada ofensa por nunca haverem sido publicados em Portugal. Isso foi assim com Manoel de BarrosFerreira Gullar ou Armando Freitas Filho. O pai de Ana Cristina, junto a uma janela por onde se viam os edifícios vizinhos, espreitou e disse-me que aquele era ‘um dia de luz’. Havia uma triste alegria em imaginar que a obra da filha chegaria a Portugal. Foi muito especial”, lembra o escritor, que já não estava na editora em 2006, quando o livro foi efectivamente publicado por Jorge Reis-Sá.
Para Valter não há dúvida de que a obra de Ana Cristina deixa um carinho muito peculiar nos seus leitores. “Inevitavelmente impressionados com a juventude com que nos deixou, creio que encontramos nos seus poemas uma maturidade surpreendente e um certo olhar astuto sobre o mundo”, diz, enfatizando o quanto gosta dela. “Há uma tragédia do tipo estrela rock que a envolve, mas nada nessa dimensão pop que se lhe colou a destitui da beleza ou da inteligência."
Por sua vez, Armando Freitas Filho lembra que se trata de uma poesia que “abriu muitas frentes para muita gente” e que esta homenagem na FLIP é o reconhecimento da arte de Ana Cristina Cesar, uma arte que teve escassíssimos quatro anos de vida publicada: o primeiro livro é de 1979, o último de 1983. “Fez cinco livros magros, de poucas páginas, e com eles teve essa repercussão, logo no começo. O seu primeiro livro teve logo uma segunda edição, o que para poeta é uma verdadeira façanha”, explica Freitas Filho. “Isso deu uma alegria à festa literária, esta é a FLIP da moça eterna, compreende?”.

Criança autora

No documentário Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planícieé lida a carta de despedida que Ana Cristina César escreveu para Armando Freitas Filho antes de se suicidar no Rio de Janeiro em 1983, na sequência de uma longa depressão, poucos meses depois do lançamento do seu livro de poemas A Teus Pés na importante editora Brasiliense. “Fiz quatro livros póstumos [Inéditos e DispersosEscritos de Inglaterra, dedicado aos seus ensaios sobre tradução; Escritos no Rio, reunindo textos publicados em jornais; e, em conjunto com Heloísa Buarque de Hollanda, Correspondência Incompleta, que acaba de ser reeditado em ebook], porque por vontade expressa dela à mãe as coisas e [os] papéis dela ficaram aqui em casa”, conta o curador da obra, que em 2003 reuniu toda a sua poesia em Poética(Companhia das Letras) e que diz não estar a pensar publicar mais inéditos da escritora. O que existe agora no acervo de Ana Cristina Cesar à guarda do IMS é material para os investigadores, acrescenta. 


Ana Cristina Cesar aos dois anos, em 1954 WALDO CESAR/ACERVO ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
A poesia de Ana Cristina César, explica ainda, baralha três matrizes: a conversa coloquial, a carta e o diário. “Dali sai um texto muito instigante porque parece que ela está falando directamente com cada leitor.” Às vezes, o leitor esquece-se até de que está a ler um livro. "Parece que se está a ler uma confissão particular, secreta; ou melhor, uma inconfissão. Tudo elaborado de uma maneira muito fina. É um texto baseado em coisas fúteis e ao mesmo tempo é exigente. Não é um poema que você lê uma vez e passa para outra folha. Você sempre tem vontade, pelo menos, de ler uma outra vez para ver se compreendeu bem aquilo. E não é nada pernóstico, pelo contrário, é até uma escrita simples que põe você interlocutor.”
O título da primeira fotobiografia dedicada a Ana Cristina Cesar é aliásInconfissões. É editada pelo IMS, que na sua casa em Paraty irá ter uma exposição dedicada à homenageada.
Eucanaã Ferraz, que organizou esta fotobiografia, onde também colocou poemas e textos em manuscritos e dactiloscritos, não conheceu pessoalmente Ana Cristina Cesar. Para ele, como escreve na introdução, ela era “apenas uma fotografia na parede”, tal como no verso de Drummond, mas tornou-se muito real à medida que o trabalho avançava.
Numa conversa telefónica, o poeta explica ao PÚBLICO que ao organizar este livro experimentou aquilo que todos sabemos teoricamente: qualquer biografia é uma narrativa que tem uma dimensão ficcional. À medida que ia recolhendo as imagens e os muitíssimos manuscritos, e que ia pedindo depoimentos, Eucanaã ia escolhendo. “Essa Ana é uma Ana minha. É uma ficção, estou construindo uma fala que implica escolhas, abandonos, idiossincrasias. É uma fotobiografia feita por mim, pelas minhas escolhas dentro do material a que tive acesso, por isso muito aleatória.”
Eucanaã entendeu também como é absolutamente verdade que um biografo se envolve com a personagem que vai criando. “Ela vai ficando real. Fui ficando encantado com Ana Cristina e fui-me envolvendo muito mais do que estava até então. Eu só conhecia a poesia dela e os textos sobre poesia, nunca tinha lido as cartas.”
E quando as leu, ficou encantado. Ligava para Armando Filho e para Heloísa Buarque e dizia-lhes: “Mas que moça adorável!”. Utilizava a palavra “moça” porque ali não estava a poeta Ana Cristina mas “uma moça com problemas muito banais": dinheiro, um director da escola que ela achava reaccionário, escolhas de que se arrependia... “Tudo me pareceu de uma banalidade tão grande, e foi essa banalidade que me encantou porque ela se tornou muito real”, diz Eucanaã, lembrando que Ana Cristina já era poeta na infância. “Ela tem produção aos dez, 12 anos, e são poemas interessantes. Antes de escrever, ditava poemas para a mãe. E mais tarde tinha uma editora a que chamou Problemas Universais para publicar os próprios poemas. O que passa pela cabeça dessa menina? Ela tinha ambição de carreira literária aos dez anos. Não é uma autora criança. É uma criança autora. É uma outra dimensão.”

Por trás dos óculos escuros

Nas variadíssimas imagens desta fotobiografia, Ana Cristina Cesar parece “uma menina de hoje”, reforça Eucanaã. “Aquelas roupas, aquele cabelo, aqueles óculos, aquela postura, aquela pose – e sobretudo aqueles poemas. Que são muito contemporâneos porque a poesia contemporânea fez aqueles poemas serem contemporâneos. Muitos poetas hoje escrevem influenciados pela Ana Cristina. Ela é o poeta mais influente na poesia contemporânea no Brasil, não tenho dúvida”, afirma o investigador. “À época, nos anos 70, ela não era tão contemporânea. Se você olhar a produção dos seus companheiros de geração, ela parece um pouquinho deslocada para trás. Os outros tinham versos muito curtinhos, eram instantâneos da realidade. Enquanto a Ana tendia a uma elaboração maior, a uma atenção maior à tradição poética, a uma conversa com João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Drummond, e com poetas estrangeiros como T.S. Eliot ou Sylvia Plath. Ela tinha uma atenção grande a isso, era muito intelectualizada, o que de certo modo a aproximava do poeta Cacaso, da sua geração, mas a distanciava, por exemplo, de poetas como Charles ou Chacal, porque aqui interessava muito mais uma atitude contracultural.”


A escritora em Valparaíso, no Chile, meses antes da sua morte WALDO CESAR/ANA CRISTINA CESAR/INSTITUTO MOREIRA SALLES
A poesia de Ana Cristina é também fragmentária, mas cada fragmento tem uma densidade biográfica, de retrato. “Não temos muito a noção de como esses retratos se ligam uns aos outros, o que dá à sua poesia uma sensação muitas vezes de hermetismo, de uma conversa um pouco enigmática. Por isso o leitor tem muita dificuldade em entrar. A poesia dela é muito fechada, tudo parece que flui como um retrato do dia-a-dia, do quotidiano, não acontece nada de extraordinário. O vocabulário, os arranjos, tudo parece muito coloquial mas tem muitos cortes; as coisas não se emendam, há buracos, há muitos vazios. A poesia dela é muito estranha. Parece que você está assistindo a uma coisa a que não tem acesso. É como se fosse uma private joke."
Nas fotografias, em que Ana Cristina Cesar aparece muitas vezes de óculos escuros, de certo modo isso também se nota. “Essa impressão de que ela está lhe dando acesso só a uma parte da coisa. Tem um certo desejo de enigma ali, uma certa recusa de se dar inteiramente. Fazer uma fotobiografia de alguém que deixou produzir tantas imagens de si mesma e ao mesmo tempo parece que nunca dá acesso ao personagem inteiro é uma coisa muito perturbadora e muito sedutora”, conclui Eucanaã Ferraz. Durante os próximos dias, o enigma Ana Cristina Cesar será desvendado em Paraty. 

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OBRAS SOBRE ANA CRISTINA CESAR
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ALVES, Maria Lúcia Barbosa. Sob os óculos escuros: rostos, mitos, incômodos de Ana Cristina Cesar.(Dissertação Mestrado em Letras. Universidade Federal do Ceará, UFC, 2006.
ALVES, Maria Lúcia Barbosa. Ana Cristina Cesar: um corpo de crítica. (Tese Doutorado em Estudos da Linguagem). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, 2013.
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ARAÚJO, André Luís de. Ana Cristina Cesar: o devir de um corpo. Em Tese (Belo Horizonte), v. 9, p. 21-30, 2005.
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CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. (Tese Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, 1990.
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. 1ª ed., Chapecó - SC: Argos, 2003. v. 1. 328p.
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terça-feira, 14 de junho de 2016

Cada palavra dita é a voz de um morto, Fernando Pessoa







Há um poema inédito de Pessoa num caderno de viagem


“Cada palavra dita é a voz de um morto” é o primeiro verso deste poema agora revelado pela Folha de S. Paulo, numa versão integral e limpa, num caderno de viagem do escritor e crítico José Osório de Castro Oliveira. 

Afinal, o “baú” de Fernando Pessoa continua a reservar-nos surpresas. Esta não saiu directamente da famosa arca do autor de Mensagem, antes saltou do outro lado do Atlântico, numa notícia revelada este sábado pela Folha de S. Paulo: um poema inédito de Pessoa foi encontrado num singular caderno de viagem vendido por um alfarrabista português ao bibliófilo (pessoano) e advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa - Uma quase-autobiografia (editado em 2012 em Portugal pela Porto Editora).
“Cada palavra dita é a voz de um morto” é o primeiro verso deste poema, de resto já compulsado na recolha feita por João Dionísio na edição de 2005 da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Poemas de Fernando Pessoa: 1915-1920. Só que a versão que agora veio a lume é anterior e substancialmente diferente da já publicada, e tudo leva a crer que é a versão definitiva do poeta. Foi escrita, aparentemente de uma só penada, em 1918 – tinha Pessoa 30 anos.
O “livro de autógrafos” em causa foi adquirido por Cavalcanti Filho, por uma soma não divulgada, junto de um alfarrabista, que não terá tido consciência da importância do seu conteúdo. Num caderno com capa de couro vermelho, e a inscrição, em letra desenhada, “No alto mar, a bordo do König Wilhelm II”, um adolescente de apenas 13 anos foi registando, ao longo de uma viagem entre o Brasil e Portugal, em 1913, algumas recordações dos seus companheiros de travessia. O referido jovem era José Osório de Castro Oliveira (1900-1964) – filho de Ana de Castro Osório (1872-1935), escritora, militante republicana e activista pelos direitos das mulheres –, que se tornaria depois um eminente jornalista, poeta e crítico literário – publicou, em 1922, um ensaio sobre Oliveira Martins e Eça de Queirós.
Na folha escrita por Fernando Pessoa, alguns anos depois da viagem de Castro Oliveira a bordo do König Wilhelm II, o poema em causa mantém os dois primeiros versos da versão até agora conhecida  “Cada palavra dita é a voz de um morto./ Aniquilou-se quem se não velou”  e, depois, dois outros versos. “Os demais foram reescritos – em alguns casos, alterando radicalmente o próprio sentido original do texto. Ou foram excluídos. Com numerosos acréscimos. Tudo a resultar em algo novo”, escreve José Paulo Cavalcanti Filho num texto publicado pela Folha de S. Paulo e que acompanha a notícia da descoberta e que será publicado em Portugal pelo JL- Jornal de Letras como explicou ao PÚBLICO José Paulo Cavalcanti Filho poremail. 
O autor da notícia, Maurício Meireles, avança que esta é “a única versão íntegra e clara do poema”, e infere daqui tratar-se da “versão final do texto” de Pessoa. A Folha de S. Paulo cita também os nomes de dois reputados pessoanos, Richard Zenith e Jerónimo Pizarro, que admitem a veracidade e ineditismo da descoberta.
“É a caligrafia de Pessoa, sim. Ele devia ter dois ou três rascunhos e, como tinha que deixar uma lembrança nesse caderno, pegou os papéis e registou uma versão mais limpa. A descoberta esclarece muito a situação do poema”, diz Pizarro ao jornal brasileiro.
No seu testemunho à Folha de S. Paulo, José Paulo Cavalcanti Filho – autor de Fernando Pessoa, uma quase-autobiografia (Porto Editora, 2012), e que neste ano adquiriu num leilão uma secretária e a máquina de escrever do poeta – reconstitui a história da viagem transatlântica de 1913 e as circunstâncias em que José Osório de Castro Oliveira reuniu os testemunhos de alguns dos passageiros do König Wilhelm II. (E explica que este foi o mesmo navio em que Pessoa chegou pela primeira vez a Lisboa, com a sua família, vindos de Durban, na África do Sul, em Setembro de 1901).
Entre os viajantes, além do autor dos heterónimos e outros passageiros anónimos, encontravam-se também três figuras que haveriam de deixar marca na geração do Orpheu e do modernismo português, como Luiz de Montalvor, director do 1.º número desta revista, Augusto Ferreira Gomes, colaborador do 3.º número, que já não chegou a sair do prelo, e Luiz Pedro Almeida, advogado e amigo de Pessoa.
Já sobre o poema de Pessoa, que ocupa a última página do “livro de autógrafos” de José Osório de Castro Oliveira – que depois se tornaria amigo próximo de Pessoa , Cavalcanti Filho vê no seu primeiro verso um reflexo das inúmeras perdas familiares que o poeta já sofrera nessa data, lembrando, de resto, que “o tema da morte é recorrente” na sua obra. E cita, como exemplo, este verso de Álvaro de Campos: “A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida” .

O poema
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velouQuem na voz, não em si, viveu absorto.Se ser Homem é pouco, e grande sóEm dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.




Notícia corrigida às 21h22: o poema não foi escrito na travessia do Atlântico, em 1913, mas em 1918



Bibliófilo encontra versão inédita de poema de Fernando Pessoa

MAURÍCIO MEIRELES
COLUNISTA DA FOLHA

Pessoa, em 1929, em foto do livro 'Fernando Pessoa. Uma Fotobiografia', de Maria José de Lancastre

A crise econômica em Portugal, que começou em 2008, fez surgir nos alfarrabistas –os sebos lusitanos– raridades de um tempo perdido. Documentos e livros raros de colecionadores, quase sempre anônimos e precisando de dinheiro, brotaram da poeira dos séculos.

Quem pode faz a festa nessas horas. Foi o caso do bibliófilo e advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho. No ano passado, ele recebeu a ligação de um alfarrabista português, que queria vender um "livro de autógrafos" com um manuscrito de Fernando Pessoa na última página.

Alfarrabista é bicho esperto, mas às vezes se engana. É verdade que nem Cavalcanti se deu conta, mas a poesia no caderno, que começa com "Cada palavra dita é a voz de um morto" –aparentemente conhecida–, é uma versão inédita de texto do qual até hoje só se conheciam rascunhos.

Um dos rascunhos do poema no acervo de Pessoa


Também é a única versão íntegra e clara do poema. Para se ter ideia, mesmo quem não é especialista na caligrafia de Pessoa –que escrevia garranchos, às vezes bêbado– consegue lê-la. Conclui-se, do documento, que o escritor registrou ali a versão final do texto. Nem o acervo do autor, guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, tem a poesia.

O caderno ainda guarda uma história inusitada. Ele pertenceu a o intelectual português José Osório de Castro e Oliveira. Aos 13 anos, em 1913, viajando do Rio a Lisboa, ele pedia para os passageiros escreverem o que quisessem.

O navio König Wilhelm 2º, no qual estava Osório, era o mesmo em que Fernando Pessoa foi da África do Sul para Lisboa em 1901.

Jeca, como sua mãe lhe chamava, cresceu e continuou a usar o caderno. Em 1918, pediu a Pessoa para escrever algo –e ganhou o poema.

"Nem o dono do caderno nem o alfarrabista sabiam que o poema era inédito. Senão, teria custado três vezes mais", conta Cavalcanti, que não revela o valor pago. Antes disso, ele –que tem uma das maiores coleções privadas de Pessoa do mundo – já havia comprado a mesa e a escrivaninha do poeta por 95 mil euros (hoje R$ 365 mil).

O poema inédito encontrado agora
Nem o bibliófilo se deu conta do que tinha em mãos. Ele diz que foi depois de uma conversa com Richard Zenith, um dos principais estudiosos da obra pessoana no mundo, que resolveu checar.

A fonte de consulta nessas horas são as edições críticas com a obra de Pessoa que a Casa da Moeda lusitana tem publicado nas últimas décadas. Quem olha o volume organizado por João Dionísio, em 2005, com poemas de 1915 a 1920, pode atestar que a versão no documento é inédita –e sem lacunas, como as conhecidas até hoje.

Por via das dúvidas, a Folha pediu a Jerónimo Pizarro, pesquisador da Universidade de Los Andes, na Colômbia, e líder de uma nova geração de estudiosos da obra do poeta, para avaliar uma imagem do documento.

"É a caligrafia de Pessoa sim. Ele devia ter dois ou três rascunhos e, como tinha que deixar uma lembrança nesse caderno, pegou os papéis e registrou uma versão mais limpa. A descoberta esclarece muito a situação do poema", afirma Pizarro.

*

O poema

Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.


A primeira página do caderno de autógrafos do colecionador José Paulo Cavalcanti


Poema inédito de Fernando Pessoa é encontrado em caderneta

Revelação é feita por biógrafo na véspera do dia de aniversário do poeta




POR JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

A descoberta de um inédito. Quem escreve sobre algum autor, durante longo tempo, sempre sonha encontrar um inédito dele. Pelo só prazer de ter feito a descoberta. Ou por imaginar que o destino conspirou para que assim tenha sido. Este caso de agora é curioso. Trata-se de um caderno de autógrafos que vai trocando de mãos. Sem que nenhum dos seus anteriores proprietários se tenha dado conta de que o texto de Pessoa, ali escrito, era mesmo um inédito. Talvez porque, em 2005, algo que seria um como que rascunho dele tenha sido publicado em Poemas de Fernando Pessoa, 1915-1920, numa edição de João Dionísio para a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em Portugal. Pensava-se, era mesmo natural, que seria o tal poema sem título que começa pelo verso Cada palavra dita é a voz de um morto. Mas desse rascunho, publicado antes, Pessoa manterá só os dois primeiros versos.
E outros dois, em seguida. Os demais foram reescritos – em alguns casos, alterando radicalmente o próprio sentido original do texto. Ou foram excluídos. Com numerosos acréscimos. Tudo a resultar em algo novo. Para compreender como isso aconteceu, é preciso O caderno de couro vermelho. Em 29 de janeiro de 1913, o jovem José Osório de Castro e Oliveira está No alto mar, a bordo do König Wilhelm II – assim, com letra desenhada de quem acabara de fazer 13 anos, escreve na primeira página daquele caderno.
Presente de sua mãe, Ana de Castro Osório (pioneira na luta pela igualdade dos sexos, em Portugal), por ocasião do aniversário de seu filho Jeca (apelido pela qual o chama), ocorrido há dois dias. Como recordação de sua viagem de regresso à formosa Terra da Pátria, escreve ela. O pai, Paulino e Oliveira, poeta e ativo membro do Partido Republicano, depois de frustrada rebelião em que participou, está residindo no Brasil (onde morreria pouco depois, de tuberculose, em 13 de março de 1914). Apenas mãe e filho viajam, de volta a Portugal.
No alto dessa primeira página está um selo do Deutsches Reich (com carimbo da Linie Hamburg Südamerika, de 30 de janeiro de 1913). E pouco abaixo, escrito à mão, Livro de Autógrafos. No canto inferior esquerdo há hoje, colado, um ex-libris com desenho de castelo cristão medieval com quatro torres e a inscrição, numa bandeira, Força na Paz.
Colada posteriormente, tem-se a impressão. Dado refletir sentimento comum no país a partir da Primeira Guerra, sobretudo. Marca pessoal do José Osório, talvez (a conferir). Seja como for, era mesmo algo então natural, dado ser o ex-librismo usado com frequência no século XIX/princípios do século XX.
Em consulta ao Serviço do Correio Imperial Alemão, se vê que essa companhia transatlântica usava dois grandes navios na rota América do Sul (Buenos Aires, Montevidéu, Rio de Janeiro) – Europa (Lisboa, Hamburgo). O König Friedrich August e o dito König Wilhelm II. A imprensa de Lisboa anunciou em 1º de fevereiro de 1913, um sábado, que este último estava no porto. Vinha do Rio. E seguiria, depois, na direção da Alemanha. Ali, nas gares marítimas de Alcântara, desceram José Osório e sua mãe.
Curioso é que a bordo desse mesmo König Wilhelm II Fernando Pessoa, em férias sabáticas do padrasto, veio pela primeira vez de Durban para Lisboa. Malhas que o Império tece!, disse n’O menino de sua mãe. O jornal O Século de 14 de setembro de 1901 (pág. 4) faz constar: No navio alemão König, vieram de Durban o cônsul [João Miguel dos Santos] Rosa e 3 filhos – que seriam Pessoa (com 13 anos), a irmã Teca (com 5) e o irmão Luiz (com 2). Faltaram, nessa relação, a mãe de Pessoa, dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira; a ama Paciência; e também, para serem enterrados em Portugal, os ossos (ou talvez fossem as cinzas) de uma irmã morta de Pessoa, Magdalena Henriqueta.
Anotações. O jovem José Osório começa, então, a colecionar depoimentos de viajantes daquele navio. Quase todos desconhecidos. Uma argentina, R. (mais sobrenome ilegível), o chama de simpático portuguesito (29 de janeiro de 1913). Outra, Maria Lia Lobo, de simpático compañero (31 de janeiro de 1913). Um argentino, J. Auber, escreve conselhos si tu veux devenir um bonito rapaz (31 de janeiro de 1913). Há mais, no caderno, instigante coincidência. Uma anotação, de 1º de fevereiro de 1913, dirigida Ao meu sobrinho adoptivo José Osório. Assinada por Manuela Nogueira. Uma homônima da sobrinha verdadeira de Pessoa, autora bem conhecida em Portugal. Inquirida sobre esse fato, declarou dona Manuela Nogueira jamais ter ouvido falar de alguém que tivesse o seu mesmo nome. Fica o mistério. Como ensina uma das Regras da Vida de Pessoa, Felizes aqueles para quem o mistério se resume em Padre, Filho e Espírito Santo. Deles é a felicidade.
O menino cresce. Nascido em Setúbal (27 de janeiro de 1900), ainda cedo José Osório se destaca como jornalista, crítico literário e ficcionista. Mais tarde se tornaria escritor de renome, com prefácios usualmente assinados por seu irmão João de Castro Osório. Primeiro ensaio foi Oliveira Martins e Eça de Queiroz (1922). Depois, mais dez livros. Inclusive, editado no próprio ano de sua morte (Lisboa, 3 de dezembro de 1964), História breve da literatura brasileira. Em 1917, já com 17 anos, dá início a publicações literárias nas páginas do jornal A capital. A partir dos anos 1930, torna-se um divulgador da literatura cabo-verdiana e defensor da aproximação entre Portugal e Brasil. Casado com a escritora Raquel Bastos, em 1930, sua filha Isabel (Maria Bastos Osório) de Castro (e Oliveira) foi atriz de sucesso, com vários prêmios no teatro e na televisão, tendo participado em cerca de 50 filmes.
Novas anotações. A partir de 1915, José Osório decide aproximar-se das letras. E usa seu caderno para colher mais depoimentos. Como, sem data, o de Carmem de Burgos (e Segui, Almería, 1867 – Madrid, 1932), que discorre sobre o interesse pela arte. Carmem – jornalista, escritora e ativista dos direitos da mulher espanhola – era, certamente, próxima da mãe de José Osório, Ana Castro. (Artur Ernesto de Santa) Cruz Magalhães (Lisboa, 1864-1928) deixa (também sem data) enigmática frase – Ser bom é saber sofrer.
Talvez uma reflexão sobre sua própria vida. Cruz Magalhães, com numerosos livros publicados, é responsável (sem colaboração do governo) pelo magnífico Museu Bordalo Pinheiro, instalado num anexo de sua residência – na Rua Oriental do Campo 28 de Maio (atual Campo Grande), em Lisboa. E veio a morrer, pouco depois, sem jamais ter tido o reconhecimento que imaginava merecer. Contando-se ainda, nessa relação, três nomes importantes do “Primeiro Modernismo” – que nasceu com a geração da revista Orpheu. A Luiz de Montalvor. Em 1917, Montalvor escreve, no caderno, sobre tempos anteriores à Restauração Portuguesa. E finda com essa afirmação: Filippe II foi o Rembrandt do claro-escuro da Morte... Luiz da Silva Ramos, seu nome verdadeiro, foi assessor de Bernardino (Luís) Machado (Guimarães), Ministro Plenipotenciário de Portugal (em 1912-1915) no Rio de Janeiro, cidade em que nasceu. O mesmo Bernardino que, depois, foi Presidente da República por duas vezes – em 1915/1917 e 1925/1926. Um carioca Presidente de Portugal... Pessoa, que tinha opiniões críticas sobre nosso país (E tu Brasil,“república irmã”, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir – assim disse no Ultimatum), deve ter se divertido com isso. Montalvor, que dirigiu (foi, também, responsável pela introdução) o primeiro número da revista Orpheu, depois dirigiria a revista Centauro. E seria responsável, juntamente com João Gaspar Simões, pela edição das Obras Completas de Pessoa, pela Editora Ática, sete anos depois da morte do amigo – por ele definido como O Ícaro de um sonho. Mais tarde (2 de março de 1947), em gravíssima crise financeira e com problemas familiares, lança-se com seu carro no Tejo. Junto com mulher e filho.
Augusto Ferreira Gomes. Em maio de 1917, Gomes deixa no livro seu poema Hydromel, que começa pelo verso Meu elmo já não brilha em tardes de parada. Augusto Ferreira (de Oliveira Bogalho) Gomes foi administrador das minas do Porto de Mós, jornalista, especialista em artes gráficas e também poeta que escreveu para as revistas Orpheu 3 (que nunca seria editada), Contemporânea e Athena (dirigida por Pessoa). Seu livro Quinto Império teve prefácio escrito por Pessoa. Acabaram se aproximando a partir do interesse de ambos pelo misticismo. Ou pela crença comum na Utopia do Quinto Império. E continuaram amigos, em Lisboa, inclusive depois que Gomes passou a ter relações mais próximas com o primeiro ministro António de Oliveira Salazar. Enquanto Pessoa, ao tomar as dores da Maçonaria, escrevia poemas (censurados) como Liberdade (em 16.3.1935), dizendo que Mais que isto/ É Jesus Cristo/ Que não sabia nada de finanças – sutil crítica àquele que um dia foi professor de Ciências da Finanças, em Coimbra. Ou esse (um dos três escritos em 29 de março de 1935, com título único de Salazar), assinado pelo heterônimo Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência – nome inspirado em discurso de Salazar, na entrega dos prêmios (em 21 de fevereiro de 1935) num concurso em que Mensagem ganhou o Prêmio Antero de Quental para poesias curtas:
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, com os diabos!
Parece que já choveu.
Luiz Pedro Moitinho de Almeida era filho do patrão de Pessoa na Casa Moitinho, onde foi escrita a Tabacaria. Essa tabacaria, só para constar, era a Habaneza dos Retrozeiros – situada na esquina da Rua da Conceição (então dos Retrozeiros) 63/65 com a Rua da Prata 65. Onde hoje está a Pelaria Pampas, especializada em vender artigos de couro argentino. E não A Morgadinha (como consta na maioria dos textos portugueses), situada esta na Rua Silva Carvalho 13/15. Bem próxima do apartamento de Pessoa. O engano se deve aos versos Janelas do meu quarto/ Do meu quarto de um dos milhões do mundo... Algo mesmo natural, posto que seria das janelas desse quarto que saudava o amigo íntimo (Joaquim) Esteves, à porta daquela tabacaria, em conversa com seu proprietário (Manuel Alves Rodrigues). Mas se trata de algo impossível. Porque o quarto em que dormia Pessoa na Rua Coelho da Rocha 16 (em Campo de Ourique), para evitar o frio responsável por suas frequentes crises de gripe, nunca teve janelas. Como confirmaram sua sobrinha Manuela Nogueira (que ocupava o quarto da frente, aquele com janelas) e António Manassés (filho do barbeiro de Pessoa – que acompanhava o pai quase todos os dias àquele quarto, para a barba).
E nem poderia, mesmo. Porque dita A Morgadinha seria constituída só em 3 de junho de 1958 (registro 32.082 na Conservatória do Registro Comercial). Enquanto o poema foi escrito bem antes, em 1928 (publicado, em junho de 1933, no número 39 da revista Presença). Voltando a Luiz Pedro, é dele o depoimento de que O Augusto Ferreira Gomes deixou-me a impressão de ser o melhor amigo de Pessoa – ou, pelo menos, aquele com quem Pessoa mais frequentemente privava.
Augusto participaria, também, no estranho episódio do suicídio do mago inglês Aleister Crowley. Nascido Edward Alexander Crowley, em criança cuspia na água benta e martirizava moscas para desafiar Deus. Consta que matou um indígena, no Oriente, para sentir o prazer de gosto para ele até então desconhecido. Um místico e charlatão que chegou a ser considerado, pelos jornais britânicos, o pior homem da Inglaterra. Crowley veio a Portugal, em 2 de setembro de 1930, para se encontrar com Pessoa – quando estava era em fuga dos credores pela falência da sua editora, a Mandrake Press. E ter-se- ia, segundo o Diário de Notícias de Lisboa (27 de setembro), suicidado no Mata-cães de Cascais. O mesmo Augusto (ligado ao jornal), em divertida trama com a participação de Pessoa, declarou ter encontrado, no local do (suposto) suicídio, uma cigarreira que seria do Mago (na verdade emprestada, para a encenação, pelo cunhado de Pessoa, Caetano Dias – que a comprara em Zanzibar). E um bilhete, em papel timbrado, do primeiro dos hotéis em que ficou (o L’Europe). Escrito por códigos e assinado Tu Li Yu. Quando Crowley, em 23 de setembro, atravessava placidamente a fronteira de Vilar Formoso, na direção da Alemanha – onde já estava, à espera, sua amante (de 19 anos) Hanni Larissa Jaeger.
O poema de Fernando Pessoa. A última página do caderno foi escrita por Pessoa. Ele e José Osório foram bons amigos, pela vida. Ficaram na Arca (de Pessoa) cópias de duas cartas que lhe escreveu. Uma de 14 de maio de 1932, em que Pessoa promete-lhe artigo sobre Goethe. E outra, sem data (mas seguramente de 1932), respondendo pergunta de José Osório: Quais foram os livros que o banharam numa mais intensa atmosfera de energia moral, de generosidade, de grandeza de alma, de idealismo? Pessoa diz terem sido, Em minha infância, e primeira adolescência... Pickwick Papers, de Dickens... Em minha segunda adolescência,... Shakespeare e Milton, assim como acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses... talvez Shelley, aquele com cuja inspiração mais convivi. E, no que posso chamar de terceira adolescência a... Dégénérescence, de Nordau. Findando a carta com indicação, escrita por Pessoa, de que O paradoxo é meu: sou eu. Sem mais notícias da relação entre os dois. Sabe-se, apenas, que José Osório não foi ao enterro de Pessoa (em 2 de dezembro de 1935, no Cemitério dos Prazeres).
Cada palavra dita é a voz de um morto, assim começa o poema. Difícil imaginar em que pensava, quando escreveu o verso. Talvez se lembrasse da já vasta legião de perdas que o assustavam: Os fantasmas de meus mortos eus, como definiu em The mad fiddler. O pai morre tuberculoso, em Lisboa, quando tem apenas cinco anos (1893). O irmão Jorge (1894), também tuberculoso, sem ter um ano de vida. A avó materna, Magdalena Pinheiro Nogueira (1896), na Ilha Terceira. O tio Manuel Gualdino da Cunha (1898), em Pedrouços. Duas irmãs – Magdalena Henriqueta (1901), em Durban; e Maria Clara (1906), em Lisboa. A querida avó paterna Dionísia (1907), que sofria de “loucura rotativa”, no hospício de Rilhafoles. A mãe do padrasto, dona Henriqueta Margarida Rodrigues (1909), numa casa de saúde em Belas. A tia-avó Maria e a tia-avó Adelaide (1911), em Lisboa. O amigo Sampaio Bruno (1915), em Lisboa – o mesmo que, para Pessoa, morreu logo que morreu. A tia-avó Rita (1916), em Pedrouços. E, finalmente, o querido Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), sua mais sólida e duradoura amizade. A Pessoa deixou bilhete, quando se suicidou no Hotel de Nice (hoje des Artistes), na zona do Butte Montmartre, em 26 de abril:
Um grande, grande abraço do seu pobre Mário de Sá Carneiro. Pessoa lhe dedica poema (Sá-Carneiro) em que diz Éramos só um.
O tema de morte é recorrente, na obra de Pessoa. Alguns exemplos, só para constar. A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida! (Passagem das horas, Álvaro de Campos). Agora que estou quase na morte vejo tudo já claro (Dois excertos de ode, A.C.). Não sentem o que há de morte em toda a partida./ Do mistério em toda chegada,/ De horrível em todo o novo (Nuvens, A.C.). Sou já o morto futuro,/ Só um sonho me liga a mim –/ O sonho atrasado e obscuro/ De que eu devera ser – muro/ Do meu deserto jardim (O Andaime, Fernando Pessoa).
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços/ E chama-me teu filho (Abdicação, F.P.). Primeira Veladora: Por que é que se morre?/ Segunda Veladora: Talvez por não se sonhar o bastante (O marinheiro, F.P.). Muitos outros. Como, agora se vê, está nesse poema inédito. Superior. À altura do melhor Pessoa. E que segue, aqui, como prova de devoção.
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou,
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou;
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
19.IX.1918.

* José Paulo Cavalcanti Filho é autor de “Fernando Pessoa, uma quase autobiografia” (Record).


O escritor Fernando Pessoa.


O mais belo autógrafo de Fernando Pessoa

Um poema do escritor português é descoberto na última página do diário de um intelectual


No baú de Fernando Pessoa não cabe tudo de Fernando Pessoa. Um poema escrito em 1918, quando o escritor tinha 30 anos, foi descoberto no Brasil, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Como muitas vezes acontece com as histórias do escritor, o breve poema interessa mais por suas circunstâncias do que pelo texto literário, já publicado, embora em uma versão, como pode ser verificado agora, menos definida.
O advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti, maior colecionador de objetos e textos de Pessoa, recebeu de um antiquário uma oferta com um diário de viagens que, em sua última página, incluía um poema de Pessoa. Cavalcanti, autor de Fernando Pessoa, Uma Quase Autobiografia (Editora Record, 2011), o adquiriu para sua coleção sem avaliar a transcendência do poema e se a letra era ou não do genial escritor.
Cada palavra dita é a voz de um morto”, começa Pessoa. “A verdade é que esse poema é como um sinal do destino, um tiro na consciência”, diz Antonio Sáez Delgado, professor da Universidade de Évora e especialista nas obras de Pessoa.
Em 1913, com 13 anos, o futuro intelectual português José Osório de Castro e Oliveira estava viajando no transatlântico König Wilhelm II, do Rio de Janeiro a Lisboa. Para se distrair durante a travessia, pedia aos viajantes que escrevessem em em seu livro de autógrafos. Era 1913, mas a última página, escrita à mão por Pessoa, data de 1918.
Naqueles tempos, os mares não eram atravessados por muitos navios; de fato, em 1901, Pessoa havia embarcado no mesmo König Wilhelm II para se deslocar da África do Sul a Portugal. Por isso, esse barco e os tempos mais tranquilos tornaram possível que o caderno reunisse depoimentos de vários anos. Também não eram frequentes reuniões de intelectuais, de modo que Osório e Pessoa coincidiram em muitas delas, descobriram que haviam viajado juntos no König e acabaram se tornando bons amigos.
Sáez acrescenta uma coincidência: “Osório era filho de Ana de Castro, republicana e feminista, e um dos contatos mais próximos em Lisboa de Carmen de Burgos, cujo pseudônimo era Colombine, e de Ramón Gómez de la Serna. Na verdade, Colombine também aparece no caderno. Carmen de Burgos publicou uma série de artigos em 1920 e 1921 na revistaCosmópolis, de Madri, dedicados à nova literatura portuguesa e escreve, em As Escritoras, de 1921, sobre Ana de Castro Osório. Um novo elo que coloca Pessoa e os escritores espanhóis no mesmo contexto”.
Desvendada a história do livro de autógrafos, resta saber a importância literária. Joaquín Pizarro, autor da versão mais recente de O Livro do Desassossego, organizado em ordem cronológica, confirma a autenticidade do texto e da caligrafia, mas esclarece que não é inédito.
O poema foi publicado pela primeira vez em 2005, pela Casa da Moeda, emVolume de Poesia 1915-1920, que compila 300 poemas. “É uma nova versão, diferente, mais completa, que resolve problemas de leitura, e isso para mim é importante”, destaca Pizarro, que está em Lisboa para dar um seminário na fundação do escritor. “Há três ou quatro versões, mas este verso é mais bonito, mais definitivo.”
Os primeiros dois versos do texto descoberto são iguais aos já publicados, mas os 10 restantes sofreram uma grande mutação, ao ponto de alterar o sentido geral do poema.
Pizarro afirma que não era raro Pessoa escrever em objetos de outras pessoas. “Por isso utilizava muito os livros de autógrafos. Já temos dois ou três casos, como o livro de assinaturas de Moutinho-Almeida, onde trabalhou, ou em bilhetes com os quais pagava suas águas-ardentes nos bares.”
O colombiano é um dos grandes especialistas em pessoalogia, atualizando edições com base em descobertas nesse baú de originais de Pessoa, que parece infinito. Pizarro revolucionou a pesquisa sobre o escritor ao organizar seus textos de forma cronológica, e não por assunto ou pseudoautores. Nesta semana, Pizarro apresenta nas livrarias de Lisboa sua versão de Obra Completa de Alberto Caeiro, um dos heterônimos nos quais Pessoa se transfigurava.
“Já vejo a descoberta com outra perspectiva”, disse Pizarro, “porque ainda há milhares de inéditos”. “Seria possível publicar um por dia; mas este é interessante por pertencer a uma época em que Pessoa escrevia muito.”
Pizarro anuncia mais novidades sobre Pessoa: “Haverá mais inéditos. A família ainda tem muito material; nem tudo foi leiloado em 2008; embora recentemente tenha doado 80 volumes, estimo que ainda existam mais 800, e alguns estão sendo vendidos por debaixo do pano”.

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

sexta-feira, 10 de junho de 2016

biblioteca camoniana ou glosa a mote próprio (Fernando Martinho Guimarães)


Seus olhos, Garrett
, ilustração de Marta Madureira, 2012



Quando meus olhos teus olhos olharam
E o meu rosto no teu rosto pousou
Todo o sonho que os sonhos ousaram
Logo se desvaneceram no que sonhou

Nada nesta vida assento merece
Tudo nesta vida é ousio fugaz
Nada fica e tudo esmorece
Tudo passa e não satisfaz

Nada é certo e tudo é incerto
Assim gira o que da vida pensamos
Querendo segurar o que segurar não podemos
Que tudo é incerto é o que de certo temos

E mais não é e para pouco serve
O que de certo temos no incerto
Desta vida o incerto leve como certo

O desconcerto deste mundo
É já desacerto no meu lembrar
No concerto incerto de sonhar
O que por certo tomei no teu olhar


Fernando Martinho Guimarães
Ponta Delgada, 2016-06-10


Ao desconcerto do mundo, Camões, ilustração de Marta Madureira, 2012