domingo, 26 de fevereiro de 2017

Sérgio Godinho




2.º ANDAR DIREITO

Ele vinte anos, e ela dezoito
e há cinco dias sem trocarem palavra
lembrando as zangas que um só beijo curava
e esta história começa no instante
em que o homem empurra a porta pesada
e entra no quarto onde a mulher está deitada
a dormir de um sono ligeiro

E no quarto, às cegas,
o escuro abraça-o como que a um companheiro
que se conhece pelo tocar e pelo cheiro
e é o ruído que o chão faz que lhe traz
o gosto ao quarto depois de uma ruptura
faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura
dos dias em que um beijo bastava

E agora, da cama
vem uma voz que diz sussurrando: És tu?
e a luz acende-se sobre um braço nu
e a mulher pergunta: a que vens agora?
é que não sei se reparaste na hora
deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora
amanhã tenho de ir trabalhar.

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes, que o amor ainda acorda
deixa-o dormir o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E o homem, de pé
Parece um rapazinho a ver se compreende
e grita e diz que ele também não se vende
que quer a paz mas de outra maneira
e nem que essa noite fosse a derradeira
veio afirmar quer ela queira ou não queira
que os dois ainda têm muito a aprender

Se temos...! Diz ela
mas o problema não é só de aprender
é saber a partir daí que fazer
e o homem diz: que queres que responda?
Não estamos no mesmo comprimento de onda...
Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda
e eu com ar de filme americano

Somos tão novos, diz o homem
e agora é a vez de a mulher se impacientar
essa frase já começa a tresandar
é que não é só uma questão de idade
o amor não é o bilhete de identidade
é eu ou tu, seja quem for, ter vontade
de mudar e deixar mudar

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes, que o amor ainda acorda
deixa-o dormir o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E assim se ouviu
pela noite fora os dois amantes falar
e o que não vi só tive de imaginar
é preciso explicar que sou o vizinho
e à noite vivo neste quarto sozinho
corpo cansado e cabeça em desalinho
e o prédio inteiro nos meus ouvidos

Veio a manhã e diziam
telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais
que viveste uns dias assim tão brutais
e que precisas de convalescença
sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença
mete um atestado ou pede licença
sem prazo nem vencimento, se preciso for
(espero que não seja preciso, porque não
sei como é que eles vão viver sem os
dois salários...)

Vá fala que o bebé está acordado
e vizinho deve estar já acordado
e o amor, pronto, também está acordado
mas tem cuidado, trata-o bem
muito bem, de mansinho
que ainda agora vai pisar outro caminho.

Sérgio Godinho (Letra e música), álbum Pano-cru, 1978.

Notas:
1. A parte entre parêntesis é uma locução feita pelo Hugo Lourenço.
2. Pode ler-se como um conto. Há dois personagens e um narrador que lá para o fim da história se há de assumir como personagem também. Em 2700 caracteres Sérgio Godinho conta a história corriqueira de um casal na fronteira entra a guerra e a paixão, de um amor jovem a tentar sobreviver a rotinas antigas. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).




FOTOS DO FOGO

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
«às suas ordens, meu tenente!»
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato

Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas

estás são e salvo e logo
«viver é bom», proclamas

Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias
Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila

O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terramotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?

Refrão
Chega-te a mim […]

Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nessa morada

Godinho, Sérgio (2007), 55 canções: partituras, letras, cifras, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 113. In: Sérgio Godinho (1993), Tinta Permanente. EMI-Valentim de Carvalho.

Nota:
“Chega-te a mim/ mais perto da lareira/ vou-te contar/ a história verdadeira.” É o princípio do texto e há-de ser o seu refrão, repetido ao fim de cada episódio que vai sendo contado. Um homem, supõe-se que ex-soldado no Ultramar, revolve uma caixa de fotografias e memórias de guerra e conta, supõe-se que a um filho, a história verdadeira dos horrores que viu, viveu e cometeu. Uma short story em 1800 caracteres, cinematográfica como muitos dos melhores textos de Godinho. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).




EMBOSCADAS

Foste como quem me armasse uma emboscada
ao sentir-me desatento
dando aquilo em que me dei
foste como quem me urdisse uma cilada
vi-me com tão pouca coisa
depois do que tanto amei

Rasguei o teu sorriso
quatro vezes foi preciso
por não precisares de mim
e depois, quando dormias
fiz de conta que fugias
e que eu não ficava assim
nesta dor em que me vejo
do nos ver quase no fim

Foste como quem lançasse as armadilhas
que se lançam aos amantes
quando amar foi coisa em vão
foste como quem vestisse as mascarilhas
dos embustes que se tramam
ao cair da escuridão

Resgatei o teu carinho
quatro vezes fiz o ninho
num beiral do teu jardim
e depois, já em cuidado
vi no teu espelho do passado
a tua imagem de mim
e esta dor em que me vejo
de nos ver quase no fim

Foste como quem cumprisse uma vingança
que guardavas às escuras
esperando a sua vez
foste como quem me desse uma bonança
fraquejando à tempestade
de tão frágil que se fez

Resgatei o teu ciúme
quatro vezes deitei lume
ao teu corpo de marfim
e depois, como uma espada
pousei na terra queimada
o meu ramo de alecrim
e esta dor em que me vejo
de nos ver perto do fim.
Sérgio Godinho (Letra e música), Na Vida Real, 1986

Nota:
É um poema apenas, armadilhado de verbos no conjuntivo em que Godinho descobre uma musicalidade inesperada. Armasse, urdisse, lançasse, vestisse, cumprisse, desse. São 1100 caracteres que lustram um dos seus contributos maiores para a língua portuguesa: o de nos pôr a cantar palavras bicudas nas quais nunca suspeitáramos que a música pudesse habitar. Ouve-se no álbum Na Vida Real, de 1986, no mesmo alinhamento de “A Lisboa que Amanhece” ou “Pode Alguém Ser Quem Não É”. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).





PRIMEIRO DIA

A principio é simples, anda-se sozinho
Passa-se nas ruas bem devagarinho
Está-se bem no silêncio e no borborinho
Bebe-se as certezas num copo de vinho
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
Diz-se do passado, que está moribundo
Bebe-se o alento num copo sem fundo
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
Entra-se cansado e sai-se refeito
Luta-se por tudo o que se leva a peito
Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito!
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
Olha-se para dentro e já pouco sobeja
Pede-se o descanso, por curto que seja
Apagam-se dúvidas num mar de cerveja
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Enfim duma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio
Navega-se sem mar, sem vela ou navio
Bebe-se a coragem até dum copo vazio
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
E outra maré cheia virá da maré vazia
Nasce um novo dia e no braço outra asa
Brinda-se aos amores com o vinho da casa
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Sérgio Godinho, Pano-cru, 1978





COM UM BRILHOZINHO NOS OLHOS

Com um brilhozinho nos olhos
e a saia rodada
escancaraste a porta do bar
trazias o cabelo aos ombros
passeando de cá para lá
como as ondas do mar.
Conheço tão bem esses olhos
e nunca me enganam,
o que é que aconteceu, diz lá
é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa 
no mundo não há.

Com um brilhozinho nos olhos
metemos o carro
muito à frente, muito à frente dos bois
ou seja, fizemos promessas
trocamos retratos
trocamos projectos os dois
trocamos de roupa, trocamos de corpo,
trocamos de beijos, tão bom, é tão bom
e com um brilhozinho nos olhos
tocamos guitarra 
p'lo menos a julgar pelo som

E que é que foi que ele disse?
E que é que foi que ele disse?
Hoje soube-me a pouco. [x4]
passa aí mais um bocadinho
que estou quase a ficar louco
Hoje soube-me a tanto [x4]
portanto,
Hoje soube-me a pouco

Com um brilhozinho nos olhos
corremos os estores
pusemos a rádio no "on"
acendemos a já costumeira
velinha de igreja
pusemos no "off" o telefone
e olha, não dá p'ra contar
mas sei que tu sabes
daquilo que sabes que eu sei
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos parados 
depois do que não te contei

Com um brilhozinho nos olhos
dissemos, sei lá
o que nos passou pela tola [o que nos passou pelo goto]
do estilo és o "number one"
dou-te vinte valores
és um treze no totobola [és o seis do meu totoloto]
e às duas por três
bebemos um copo
fizemos o quatro e pintámos o sete
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos imóveis
a dar uma de "tête a tête"

E que é que foi que ele disse?
...

E com um brilhozinho nos olhos
tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

E que é que foi que ele disse?
...
Sérgio Godinho, Canto da boca, 1981

Nota:
Uma aventura de paixão que faz nascer uma amizade contada em três mil caracteres corridos. É dos melhores exemplares de um exercício literário em que Godinho é mestre: revelar a poesia que se esconde nas frases feitas e em outros lugares comuns da língua. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).



terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Fernando Pessoa lido por Teresa Rita Lopes


Teresa Rita Lopes: ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’


Estuda a obra de Fernando Pessoa há meio século e já deu a volta aos 27 mil documentos do espólio por mais de uma vez. Teresa Rita Lopes, que acaba de publicar Livro(s) do Desassossego, fala sobre a sua relação com o poeta e sobre ‘o vandalismo’ da edição crítica.


Porque achou que era preciso mais uma edição do Livro do desassossego, quando já existem tantas?
A última foi uma edição crítica do Jerónimo Pizarro. Quando ele veio para Portugal, no início de 2000, foi meu aluno e do Fernando Cabral Martins, de maneira que acho que lhe pegámos esse interesse pelo Pessoa. Não ficou no meu grupo por razões que não vêm ao caso, e foi trabalhar para o grupo do atual orientador da edição crítica, que se chama Ivo Castro. Sabe disso, não sabe?
Não.
Quando fez 50 anos da morte do Pessoa, em 1985, o António Alçada Batista, que foi um grande obreiro da cultura, constituiu uma comissão para os festejos. E essa comissão decidiu que íamos fazer uma edição crítica do Pessoa, porque até aí cada um fazia as edições a seu bel-prazer. O Alçada Batista convidou-me, mas eu disse: ‘Não entro para esse convento’.
Porquê?
Porque não sou filóloga e aborrecem-me aquelas edições críticas, que são muito chatas, com muitas notas de rodapé. Gosto de fazer edições muito mais depuradas e que deem prazer ler. E foi então designado esse senhor, Ivo Castro, que é filólogo e professor na Universidade de Letras. Só que o homem é medievalista, de Pessoa não percebe patavina, e escreveu um livro em que diz que para se fazer uma edição crítica de Pessoa é preciso não perceber nada de Pessoa.
Para ter distanciamento?
Para ter uma objetividade científica. O que é um perfeito disparate, porque esse método só poderia ser aplicado a textos publicados em vida pelo autor. Antes do Ivo Castro, foi designada para fazer isso uma senhora italiana especialista em Literatura Portuguesa chamada Luciana Stegagno Picchio. E ela dizia-me: ‘Ó Terresa, vamos fazer isso’ [com sotaque italiano]. ‘Mas vamos fazer isso como?’. ‘Meto no computor’ [risos]. Nessa altura eu já tinha estado no espólio e sabia que aquilo é tremendamente difícil.
De decifrar?
Em 1990 publiquei dois calhamaços chamados Pessoa por Conhecer. É que toda a gente fala do Pessoa como se o conhecesse. Estava à procura desse livro para lhe mostrar. Então leia lá este manuscrito do Álvaro de Campos.
‘A alma humana é porca como…’
[Ri-se] Leia por cima que é mais fácil.
‘Um cu’.
O Pessoa faz isto: quando escolhe mesmo, risca o que está na linha corrida. Mas a maior parte das vezes não risca, e põe uma variante em cima, ao lado ou entre parêntesis. As edições críticas tratam da mesma forma a emenda e a variante. Aqui não faz diferença porque o que estava na linha corrida era ‘como um ânus’ e assim até fica mais forte. Agora leia o resto.
‘E a vantagem dos…’.
É o que está a pensar.
‘A vantagem dos cara****”?!
É isso mesmo. Uma das coisas que divertiu muito as pessoas é que na primeira edição crítica eles leram ‘canalhas’ porque acharam que o Pessoa não podia ter escrito um palavrão. Mas neste caso é mais pela curiosidade. No Alberto Caeiro é mais evidente. Eles assassinaram o Alberto Caeiro, com esse processo de confundir a variante com a emenda. Fazem as escolhas que o Pessoa não fez.
Assassinaram? Mas o que lá está não deixa de ser Pessoa…
Quando fazem uma edição crítica e dão notícia das variantes, tudo bem. Agora as edições que o Ivo Castro coordenou para o Expresso já não dão notícia da variante, portanto o texto fica perfeitamente definitivo, e é aquilo que os meninos vão levar para a escola e que os tradutores vão usar.  O Pessoa ainda anda por aí todo deturpado e deformado e é por isso que estou com um espírito de missão de o salvar do vandalismo da edição crítica.
Porque começou a fazer edições do Pessoa se dizia que não queria entrar para esse convento?
Em 1990, o David Mourão Ferreira, que eu estimava muito, chamou-me: ‘Teresa Rita, tem de fazer a crítica a este livro, ao Álvaro de Campos’. E eu disse-lhe: ‘Nem pense, tinha de ir a todos os originais e demorava dois anos.’ Só que ele era um homem inteligentíssimo e percebeu como havia de me convencer. ‘Se a Teresa Rita não fizer ninguém faz, e tem a obrigação cívica de o fazer’. Perante isso, rendi-me. Levei dois anos. Nessa altura era mais difícil porque tínhamos de ir para a Biblioteca Nacional, manusear aqueles papelinhos todos. E saiu uma edição minha do Álvaro de Campos, contestando a do Ivo Castro.
Pode falar-me sobre a sua experiência de lidar com os originais?
Antes de morrer, o Pessoa começou a arrumar os seus livros. Fez maços e esses maços estão hoje na Biblioteca Nacional como foram achados em casa dele. Quando foram arrolados na BN eles respeitaram isso. Agora o nosso trabalho de investigadores está muito facilitado. Já não precisamos de ir consultar os originais na Biblioteca Nacional porque muitos de nós temos um disco externo.
Com tudo digitalizado?
Sim, a senhora da BN deu isso aos investigadores. Depois os investigadores passaram aos seus discípulos – foi o meu caso. Hoje em dia todos os que trabalham em Pessoa têm isso. Às vezes é mesmo necessário ver o original, mas no computador a gente pode ampliar, de maneira que eu, de cada vez que faço um livro destes, volto sempre a ver os originais. Já dei a volta aos 27 mil e tal documentos mais de uma vez – estou muito distraída a ver aquilo. Ainda ontem tive o prazer de descobrir dois novos poemas do Ricardo Reis que estão metidos no meio de outras coisas. Às vezes ele escrevia até no rol da roupa suja, aproveitava todos os papelinhos, e nós temos que ver cada papelinho como um detetive, à lupa.
A caligrafia muda consoante o heterónimo que está a escrever?
É verdade que sim, porque ele faz questão de se despersonalizar. Isto tem qualquer coisa de espírita.
Como se o médium encarnasse o espírito da pessoa?
Ele fazia escrita mediúnica, escrita automática, a ver se os espíritos se manifestavam através dele. Veja aqui, isto é a assinatura dum espírito. Ele fez este poema e depois o espírito disse-lhe: ‘No good’ – não presta. Ele estava sempre nesse limiar entre acreditar e brincar com isso. Olhe este aqui: ele faz este poema e no fim assina ‘Vardur [um dos espíritos] + Pessoa’. E depois o Vardur diz-lhe assim: ‘This poem is yours, my boy’.
Além do espiritismo e da astrologia, Pessoa interessava-se por outras áreas?
Ele era um extraordinário estudioso. Deve ter havido poucas pessoas tão cultas neste país como ele. Porque ele vivia para essa ânsia de saber. Lia, lia, lia – já desde miúdo que era assim – comprava todos os livros que conseguia, depois vendia-os para comprar outros. Interessava-se por tudo. Escreveu sobre sociologia. Sobre as ciências da psique – meu Deus, o que ele escreveu! As pessoas pensam que ele era só um poeta, mas não. Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos. Ainda há muitos livros de Pessoa que deverão ser feitos.
Porquê o interesse pela psicologia?
A avó paterna dele morreu louca e ele assistia aos acessos de loucura da avó em pequenino. Toda a vida ele se preocupa com o que chama ‘génio e loucura’. O Pizarro até reuniu esses textos – ele é um grande trabalhador, não digo mal do meu aluno. Só tenho pena que tenha seguido o método da edição crítica.
Pode falar-me da sua relação com o Pessoa, como o descobriu?
A minha relação com esse rapaz… Descobri o Pessoa aí pelos meus 13 anos no Liceu de Faro. Ia à Biblioteca do liceu e depois tinha um caderninho onde escrevia os poemas de que gostava. O Álvaro de Campos é que me caiu no goto.
Mais tarde vai para França. A relação com Pessoa mantém-se?
Em Novembro de 63 a PIDE não sabia que eu tinha mudado de casa e foi-me prender à antiga casa. Entretanto fui avisada e raspei-me no dia seguinte no Sud Expresso. Em Paris nessa altura não se sabia quem era o Pessoa. O meu diretor de tese, um homem muito célebre na altura, quando eu lhe falei do Pessoa, disse: ‘Eu não conheço’. Hoje não há nenhum estudioso ou mesmo pessoa culta em França que se atreva a dizer que não sabe quem é o Pessoa.
Ainda assim podia estudar bem Pessoa a partir de Paris?
Comecei a vir a Portugal em 1969, depois de o Salazar cair da cadeira. E a primeira coisa que eu fiz foi ir para o baú, em 69. E de 69 a 75 mexi no espólio diretamente.
Recorda-se da primeira vez que foi ao baú?
Para consultar o que estava na casa da irmã tinha de ter uma autorização e fui ao ministério para a pedir. O senhor que lá estava não ma deu e eu estava a ver aquilo muito mal parado. O Veiga Simão, quando soube do que se tratava, mandou-me chamar e disse que sim. Comprei uma máquina de fotocópias muito complicada e comecei a ir para a casa da irmã, que me recebia muito bem.
Era a única pessoa lá?
Na altura aquilo estava a ser arrolado por umas senhoras da BN que nem sei donde vinham, mas tiveram um excelente papel, porque numeraram aquilo tudo. Aqui há tempos fiz para o SOL um texto sobre a segunda arca do Pessoa. Na altura descobriu-se que a família tinha ficado com dois mil e tal documentos que não vendeu à BN e que estava a vender em leilões. Isso é grave porque refazer a obra do Pessoa não é como refazer um puzzle. É refazer vários puzzles. Quando faltam peças é uma chatice.
É quase como uma escavação arqueológica?
Refazer a obra do Pessoa exige de nós gosto e o talento para a arqueologia, porque é reunir as pedras dispersas daqui e dali. As senhoras da BN davam-me os envelopes, e eu ficava ao pé delas a ver aquilo tudo, a fotocopiar e a assistir às conversas. O Pessoa, prevendo que ia morrer, deixou aquilo arrumado. Só que a irmã era uma senhora muito simpática e deixava toda a gente mexericar naquilo. Quando as arroladoras lá chegaram, aquilo já estava tudo misturado. Elas pegavam num papel, uma lia alto e a outra dizia assim: ‘O homem era mesmo maluco’.
A irmã partilhou memórias consigo?
A irmã disse-me uma coisa de que já desconfiava: que o Pessoa era extremamente pudico da sua obra e da sua vida particular. Falava pouco de si. A irmã dizia-me: ‘Ai, nós não fazíamos a mínima ideia de que o Fernando viesse a ser tão importante’. [risos] Eles não davam nada por ele.
Pessoa trabalhou até morrer?
Sim. O que vem na certidão de óbito é que morreu com uma cólica hepática. Agora estão a fazer diagnósticos depois de morto – em que eu não acredito muito – um médico até escreveu um livro sobre isso.
Temos dados suficientes para reconstituir um dia na vida dele?
Mais ou menos. Ele viveu toda a vida com apertos de dinheiro, apesar de ter recebido cinco contos de réis do prémio da Mensagem. Tinha de ganhar o pão com o suor do rosto. Simplesmente exigia não ter horários fixos. Era a sua liberdade. Como era muito conceituado pelos patrões – escrevia cartas comerciais em francês e inglês – além do mais tinha feito um curso comercial no último ano em que esteve em Durban, 1904.
Era um bom funcionário?
Os patrões prezavam-no imenso, davam-lhe muito valor. Mas ele queria ganhar à peça, não ganhava ao mês nem à semana, para ter a liberdade de ir lá quando lhe apetecia. Passava pelos escritórios – tinha mais do que um – para fazer as cartas que deixavam para ele. Mas tinha crises do que ele chamava neurastenia – uma vez escreveu a um amigo: ‘Tive uma crise de neurastenia que me atou o cérebro’ – havia períodos em que não podia trabalhar. Ele foi um homem muito infeliz, de certa maneira.
Mas também deve ter tido momentos de grande exaltação criativa e satisfação.
A gente percebe pelos manuscritos que ele escrevia num frenesi, numa exaltação. A sua mão não acompanhava a vertigem do seu pensamento. Devia ser aquilo que chamam um ciclotímico [alguém que alterna períodos de euforia com períodos de depressão].
Como é que consegue isto nas horas livres? Roubava ao sono?
Ele normalmente ia à tarde. Provavelmente escrevia à noite. E tinha insónias. Por isso é que não durou muito tempo. Além do mais curtia as suas bebedeiras.
Em casa?
Em casa. Aliás ninguém o via bêbedo. Conheciam-no por isso. Às vezes levantava-se do escritório e ia beber um bagaço durante as horas de trabalho. Mas isso deixava-o imperturbável.
José Cabrita Saraiva, jornal SOL, 2016-02-17


Livro(s) do Desassossego de Fernando Pessoa
e Teresa Rita Lopes. ISBN: 9788526022065


Livro(s) do Desassossego
SINOPSE
É o livro da vida de Fernando Pessoa, finalmente editado como o autor queria, respeitando todos os semi-heterónimos que fazem parte dele, devidamente assinados - Vicente Guedes, Barão de Teive e Bernardo Soares. Vale explicar que a expressão "semi-heterónimo"é do próprio Pessoa, que considerava como heterónimos apenas três: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ainda assim, são vozes muito próprias, que partem de biografias inventadas como personagens de teatro. Não estarem misturados ou até preteridos como em publicações passadas é a grande novidade dessa edição, preparada por uma das mais respeitadas especialistas na obra de Fernando Pessoa, Teresa Rita Lopes. Por isso a sugestão do plural do nome: Livro(s) do Desassossego. Assim como o autor foi vários, o livro também é. A primeira parte é O livro de Vicente Guedes. Os textos nessa época ainda são muito influenciados pela corrente literária simbolista. A segunda parte, O livro do Barão de Teive, já assume um tom mais seco, de um personagem que definiu por si o fim da própria vida. A terceira parte, O livro de Bernardo Soares, é notoriamente parte do que conhecemos como Modernismo. Todos têm introduções que iluminam suas leituras, escritas por Teresa Rita Lopes, em linguagem descomplicada, ainda que contendo profundo conhecimento de causa. Ler essa obra é como espiar as décadas de dedicação aos textos, tanto da parte de Fernando Pessoa quanto dos pesquisadores de seu espólio. Teresa Rita Lopes conta que frequentemente a caligrafia do poeta é indecifrável. Somente a convivência com as leituras por anos e anos de seus poemas, muitos deles escritos à mão, ou mesmo datilografados e corrigidos à mão, é que torna possível a publicação.

https://www.wook.pt/livro/livro-s-do-desassossego-fernando-pessoa/16954370


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. 

 

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Rómulo de Carvalho - António Gedeão

Rómulo de Carvalho no seu armário feito por medida, meticulosamente arrumado e onde escrevia sempre de pé.
Foto cortesia Cristina Carvalho para http://observador.pt


Chamava-se Rómulo como o mítico fundador de Roma, foi um homem do Renascimento mas viveu no século XX. Cientista, professor, poeta, homem livre nas margens da ditadura e da revolução morreu há 20 anos.
Dizia que tinha vindo de uma terra assombrada, que não acreditava na bondade humana, nem no mistério da poesia, escrevia sempre de pé, bebia as manhãs a café com leite sempre na mesma caneca, percorreu anos e anos as mesmas ruas, meteu a chave na fechadura de casa à hora em que o esperavam, não usava gravata, não se sentava à mesa do poder nem do povo, não pertenceu à ditadura nem à revolução, não foi em grupos, não teve amigos, não meteu cunhas, não foi boémio, alcoólico, fanfarrão. Falava mais com os olhos que com as palavras, tinha muitos admiradores, não tinha intimidades. Respirava melhor o amplexo do mundo fechado num laboratório do que na orla do grande mar.
Sabia muito bem que só sendo ferozmente banal poderia ser radicalmente livre. Por isso, a pior coisa que podem fazer a Rómulo de Carvalho/António Gedeão é continuarem a aprisioná-lo num “sonho comanda a vida”. Porque tudo o que ele foi desmente essa leitura superficial do poema: a pedra filosofal de Gedeão não é o sonho. É sim o trabalho, a dúvida, a reflexão, o pensamento que engendra nas mãos a escultura, a máscara, a catedral, a máquina. O único ouro possível de obter pelo alquimista é a sabedoria (como a poesia e a Liberdade) só se alcança pela dúvida, pela experiência, pela humildade de se saber nada perante a infinitude de um universo em perpétuo movimento.
“Devia pedir desculpa por ter escrito esse poema [Pedra Filosofal]”, confessou um dia à filha Cristina Carvalho. Porque afinal fora um poema “escrito a assobiar para o lado” e que “agora serve para tudo desde anúncios de prostitutas a publicidade a colchões”. O poema, musicado por Manuel Freire, tornou-se uma balada pueril para saudosistas da revolução porque se for lido com atenção, afirma a filha do poeta em entrevista ao Observador, “vemos que ele fala daquilo que o homem construiu quando, saindo das imobilidade onírica, deitou mãos ao trabalho e fez acontecer. A Pedra Filosofal não é um poema sobre estarmos deitados a sonhar. É antes sobre a urgência do fazer pois, é pelo fazer que se tece a grande epopeia humana de que fala o poema, desde a pedra em sobressalto até ao foguetão. É mais uma história de construtores do que de alquimistas”.

Com o passar dos anos Rómulo de Carvalho ostentava um rosto antigo como o mundo. Aqui a ler o seu poema para Galileu, já com quase 90 anos. Foto: Cortesia de Cristina Carvalho
Agora, quando passam 20 anos sobre a morte de uma das mais marcantes figuras que atravessaram a cultura do século XX português, vale a pena lembrar que Rómulo de Carvalho, mais do que um homem de palavra foi um homem de trabalho: das ciências exatas às ciências sociais, do desenho, à poesia e à fotografia, da construção de objetos de madeira, à feitura de livros manufaturados, de professor de adolescentes a pedagogo, de ensaísta a divulgador de ciência e escritor de manuais escolares.
Porém, e tendo em conta, a sua mística mãe Rosa de Oliveira, Rómulo/António foi também um enfeitiçador de almas, um guardião dos mistérios, como um verdadeiro homem do Renascimento, como Camões, como Montaigne, como Da Vinci, ele sabia que cada explicação não abre caminho para uma verdade, um determinismo mas é tão só a primeira porta para uma nova estrada de dúvidas, interrogações, experimentações, pois tudo está precariamente equilibrado sobre a tectónica do caos. E Deus? Deus ele nunca soube se existia ou não. Era agnóstico e poupava-se a grandes conversas sobre o assunto.
Aliás Rómulo também não gostava muito de conversas, como ele próprio afirmava “precisava de muito tempo para estar consigo próprio, para os seus pensamentos”. A solidão, esse mal que parece atingir fatalmente tantos homens e mulheres, e são bom pasto para tanta poesia e tanta literatura do século XXI, não eram problema para o poeta que, como o estóico Séneca, sabia que “só quem vive bem consigo mesmo vive bem com os outros”.

“Abaixo os mistérios da poesia”

Era uma vez um menino
que não era nada feio
O que tinha de extraordinário
era um feitiço no meio”
(Rómulo de Carvalho, com 5/6 anos)
Aprendeu a escrever precocemente, numa casa onde viviam duas irmãs mais velhas, uma mãe leitora compulsiva e um pai cantor coral (além de funcionário dos Telégrafos e Correios de Portugal). Na Graça, num terceiro andar com vista para o Tejo, escreveu os primeiros versos por volta dos 5/6 anos. Ainda se chamava apenas Rómulo Vasco da Gama Carvalho, mas já usava palavras complexas e, sem saber, elaborava metáforas dividindo o mundo entre o sagrado e o profano, entre o visível mundo da carne e o invisível mundo dos feitiços.
Aos 10 anos, já tinha completado a escola primária, atreveu-se a continuar os Lusíadas. Leu a épica obra e se Camões parou no reinado de D. Sebastião ele havia de prosseguir até ao reinado de D. Manuel I. O que veio a ser o “XI Canto dos Lusíadas” foi publicado no Diário de Lisboa, com direito a fotografia do poeta vestido de marujo mais para gáudio da família que do próprio, que só haveria de voltar a publicar poemas seus quarenta anos mais tarde.

Rómulo de Carvalho, com 10 anos, quando escreve e publica o XI Canto de Os Lusíadas no Diário da República. Foto cortesia de Cristina Carvalho
Nasceu em 1906 no estertor da monarquia, foi criança durante a 1ª República, fez-se adulto durante a ascenção do salazarismo. Tinha 68 anos no 25 de Abril de 1974. Recusou cargos na Universidade, no Ministério da Educação, na reitoria dos liceus. Desprezava que a ditadura usasse o poder obscurantista para dominar os outros e desprezava que as democracias usassem a ilusão da liberdade para dominar os outros. Sim, sim, é este o homem, o poeta que escreveu a Pedra Filosofal e que neste documentário de Diana Andringa, de 1996, um ano antes da sua morte, declara: “Não acredito nos seres humanos, não acredito na capacidade de os homens fazerem qualquer coisa socialmente boa, a não ser se isso beneficiar os seus interesses pessoais”.
“Era uma pessoa totalmente desencantada”, lembra a filha, também escritora, Cristina Carvalho. “Porém, não era amargurado. A sua descrença notava-se apenas na ironia subjacente a quase tudo o que dizia. Nunca o ouvi dar uma gargalhada. Apenas sorria e o seu sorriso era sempre pontuado por uma mais clara ou mais disfarçada ironia”.
Essa ironia, que a crítica literária e ensaísta Maria Lúcia Lepecky há-de afirmar ser “em exemplo da sua superior inteligência e uma das características da sua poesia” parece ser hoje em dia cada vez menos legível e a sua poesia arrumada no dossier dos anos do PREC. Talvez porque a sua ironia trabalhada na fímbria de linguagem complexa, multireferencial, erudita, onde a ciência se funde com a filosofia e com o quotidiano dos homens, seja hoje difícil de entender, tal como as formas tradicionais e antigas que escolheu (a rima, a redondilha, o vilancete) façam confusão aos ouvidos desabituados das coisas longínquas.
E no entanto, se houve poeta a cultivar o registo coloquial, antes dele estar na moda como hoje está, foi António Gedeão. Se houve poeta que trouxe o quotidiano dos homens comuns, dos deserdados para dentro da poesia foi Gedeão. Basta ler-se os célebres Calçada de Carriche ou Lágrima de Preta (no tempo em que os poetas podiam dizer preta sem serem chamados de racistas). Como bastaria ler com alguma atenção Poema a Galileu, para ver o que é a capacidade de usar a palavra não apenas na sua simplória função designativa, mas para fazer uma duríssima crítica à ditadura ao mesmo tempo que celebra a Ciência, o livre pensamento, explica a teoria de Galileu e entabula com ele um dialogo que é, também, um dialogo consigo mesmo enquanto cientista e enquanto poeta:
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angustias, a todos os contratempos,
enquanto eles, no alto inacessível das suas alturas,
foram caindo
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
ininterruptamente
na razão direta dos quadrados dos tempos”
Como lembra Cristina Carvalho, “António Gedeão é hoje considerado um poeta menor pela nossa intelligentsia. Isto foi-me dito assim tal e qual por uma poeta que recebeu o prémio António Gedeão. E eu pergunto: menor porquê? menor para quem?”.
Contrariando os desígnios da infância, Rómulo de Carvalho não seguiu um curso de literatura. Formou-se em Ciências Fisico-Quimicas. Tornou-se professor de liceu. E o nosso espanto plutocrático não pára de crescer. Mas apenas isso? Um professor de liceu? “Ele queria era que o deixassem em paz”, diz Cristina Carvalho. Quando era professor no Liceu Camões foi pressionado pelo reitor a inflacionar a nota de um aluno para que este entrasse na Universidade. Pediu a transferência para outra escola. Depois do 25 de Abril, quando um aluno que tomava conta da porta do Liceu Pedro Nunes lhe bateu com uma vara de madeira no braço e declarou à boa maneira ditatorial do novo regime “este pode entrar”, Rómulo de Carvalho meteu os papéis para a reforma.
Pelo meio tinha construido quase sozinho o laboratório experimental daquela escola que tantos cientistas formou. Tinha escrito dezenas de livros de divulgação cientifica destinados mesmo a ensinar ciência num pais quase analfabeto. Elaborou currículos e manuais escolares, ensinou professores. Entre os seus alunos diletos estavam Mariano Gago, António Mega-Ferreira, Marcelo Rebelo de Sousa, Nuno Crato. É Mariano Gago que, em 1996, vai instituir o 24 de Novembro, dia em que nasceu Rómulo de Carvalho, como Dia Nacional da Cultura Científica. Ele que nunca recebeu prémios, nem foi um poeta do establishment tem, desde 2012, um prémio de poesia com o seu nome, instituído pela Federação Nacional de Professores (FENPROF) e a SECRE-Corretores de Seguros. Até agora foram distinguidos com o galardão Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice.
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Escrevia sempre de pé num armário feito por medida e rodeado de pequenos objetos cheios de significados íntimos. Foto cedida por Cristina Carvalho

Tal como o cientista Rómulo, também o poeta António falava mais para o futuro do que para o seu tempo, que falava mais aos vindouros do que aos seus coetâneos e sobretudo rejeitava a postura do poeta separado assepticamente do mundo de que fala. Por isso ele dignificou como poucos o homem comum. Não lhe glorificou as misérias mas restituiu-lhe o lugar nos mistérios filogenéticos. Neste insondável universo, sem salvação e sem Deus somos todos igualmente irrelevantes. E, como muito bem lembra Urbano Tavares Rodrigues, quem escutar bem a poesia de Gedeão encontra nela ecos desse outro genial inadaptado que foi Raul Brandão.
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser
verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

Rómulo de Carvalho e a máquina do mundo

Filho de uma mãe que aos domingos lia nas cartas destinos gloriosos ou funestos, que durante a vida a adulta não saiu de casa mais do que umas poucas dezenas de vezes, Rómulo, foi também ele tocado pelos mistérios que a ciência não explica e pelas regiões de sombra que só as palavras superficiais e sentimentais parecem resolver. “Era aristocraticamente distante, a sua autoridade vinha do seu exemplo, da sua auto-exigência. Era delicado mas poderosamente frontal. Detestava e desconfiava seriamente dos sentimentalismos”, recorda a filha do poeta.
Talvez por uma auto-exigência, mas também por timidez ou insegurança, só vai atrever-se a publicar a sua poesia perto dos 50 anos, depois de muito rasgar. No livro de memórias Rómulo de Carvalho/António Gedeão, o Príncipe Perfeito (ed. Estampa), Cristina Carvalho conta que ele nunca deixou de escrever poesia, mas que rasgava tudo não temendo “deitar a perder todo aquele sofrimento (…) Rasgava todos os poemas que tinha e os que ia escrevendo, protegia-se de toda a dor e de todos os entendimentos.”


A utilização de um pseudónimo simples sobre o seu nome cheio de ressonâncias arquétipicas (Rómulo foi um dos fundadores míticos de Roma, juntamente com o irmão gémeo Remo, ambos filhos da loba), foi ainda uma forma de se proteger dessa sua persona mais frágil, mais exposta. No entanto o nome simples, com um certo gosto neorrealista, não foi nunca sinónimo de um poeta simples. Nunca se enquadrou em qualquer grupo ou movimento literário, embora a sua lírica fosse claramente de pendor órphico e modernista. Foi elogiado por Gaspar Simões, prefaciado por Jorge de Sena, com quem de resto mantém uma correspondência ao longo de muitos anos.
Talvez porque o que eu escrevia fosse a expressão do meu sofrimento pessoal, um sofrimento sem literatura…” (Rómulo de Carvalho, “Memórias”)
Como Camões, lido aos 10 anos, Rómulo cria uma poesia profética, onde a ciência é mostrada como conquista e como desastre, certamente como desconhecido a avançar dentro de outro desconhecido a Vida. O mundo é uma máquina nas mãos de um hesitante experimentador, que avança e recua, que cria e destrói. Perante essa máquina nunca o olhar do poeta deixa de ser desalentado, descrente. Cada vez mais crítico e combativo à medida que se sucedem os livros: Movimento Perpétuo (1956), Teatro Do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Linhas de Força (1967), ao qual volta a seguir-se um hiato de 16 anos até aparecerem os dois volumes com os irónicos títulos de Poemas Póstumos e Novos Poemas Póstumos. Rómulo de Carvalho matou António Gedeão, não obstante a fama que este conquistara, em especial depois de ter sido musicado e cantado por Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, José Nisa ou Carlos do Carmo.

As “Memórias” de Rómulo de Carvalho, publicadas pela Fundação Gulbenkian, são um testemunho que atravessa todo o século XX português
Como ele próprio há-de declarar, com o seu habitual desassombro, no documentário de Diana Andringa, “não tinha mais nada a dizer como poeta”. E se é verdade que a sua poesia pôde, através dos cantautores, chegar a um público mais vasto que a elite que habitualmente lê poesia, “o que muito lhe agradou”, também é verdade que Gedeão acabou por ficar acantonado no tempo da revolução “o que tem prejudicado a sua leitura e descoberta pelas novas gerações”, admite Cristina Carvalho.
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê- lo, erguê -lo e defrontá- lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo
(Máquina do Mundo, António Gedeão)
O “intervalo”, o “entre”, lugar arrepiante onde não há tempo, nem espaço, onde nenhuma geometria é possível logo só nos resta cair, cair infinitamente. E o poeta-cientista olhou esse intervalo, curioso e aterrado porque ele sabia o poder da interrogação. “Era no caos de todas as ordens que ele se encontrava e explicava, explicava e transmitia o que conseguia aperceber-se, desde a aleatoriedade e formação das nuvens aos desorganizado voo das moscas”, escreve Cristina Carvalho.
Por isso a sua vida foi um demanda, uma viagem em busca dos mistérios onde um claro desejo futurante se cruza com a memória, a rememoração, o gosto pelo antigo, pelo arquivo. Cantou a luz mas vivia consciente da omnipresente escuridão. Por isso escreveu ensaios absolutamente inovadores na área da História, entre eles o já clássico História do Ensino em Portugal desde a Fundação da Nacionalidade até ao fim do Regime Salazar-Caetano. Escreveu dezenas de livros de divulgação cientifica, artigos científicos sobre física, química, educação, filosofia, astronomia. Estudou homens vanguardistas como Pascal, Descartes, Einstein, Dürer. E em 1995, com perto de 90 anos, surge com um volume insólito O texto Poético como Documento Social. Entre, muitas, muitas outras coisas que podem ser estudadas no seu espólio depositado na Biblioteca Nacional.
A escritora Natália Nunes foi um amor tardio de Rómulo de Carvalho. Ela tinha 22 anos ele quase 40. Foto: Cortesia de Cristina Carvalho

Enquanto foi cientista, escritor, poeta, professor Rómulo de Carvalho também teve dois casamentos, dois filhos (Frederico Carvalho, físico-nuclear, e Cristina Carvalho, escritora), cosia os seus próprios botões, criou sozinho uma filha bebé quando a mulher, a escritora Natália Nunes, passou mais de um ano em Paris a estudar, ia religiosamente ao cinema todos os sábados à noite.
Aos 25 anos foi dado como inapto para o serviço militar por ter, nas palavras do médico, “um coração de velho”. Talvez este médico tenha percebido que o coração de Rómulo vinha de longe, “do fundo do tempo”, assombrado. A verdade é que só aos 90 anos o coração lhe falharia em consequência de uma isquémia cardíaca. Morreu uma semana depois de ser operado. Era o dia 19 de fevereiro de 1996.
Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
vindo de qualquer pai,
acorda e vai.
Vai.
Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos moinhos
e as rodas que os eixos movem,
o tear que tece o linho,
a espuma roxa dos vinhos,
incêndio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com ele.
Bagas de instintos despertos
ressuma-lhe à flor da pele.
Vai, belo monstro.
Arranca
as florestas com os teus dentes.
Imprime na areia branca
teus voluntariosos pés incandescentes.
Vai
Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.
Vai
Lábios húmidos do amor da manhã,
polpas de cereja.
Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.
Vai
À tua cega passagem
a convulsão da folhagem
diz aos ecos
“tem que ser”.
O mar que rola e se agita,
toda a música infinita,
tudo grita
“tem que ser”.
Cerra os dentes, alma aflita.
Tudo grita
“Tem que ser .”
(“Estrela da Manhã”, António Gedeão) 




 "António Gedeão, o poeta que veio do fundo dos tempos morreu há 20 anos", por Joana Emídio Marques. Observador, 2017-02-19


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O mais importante na vida, por António Botto


António Botto


O mais importante na vida
É ser-se criador - criar beleza.

Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.

Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir a voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.

Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.

E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.


António Botto (1897-1959), "O mais importante" in Canções (1920)





Manuela de Freitas in «Poemas de Bibe» [em parceria com Mário Viegas] (1990)
Tradução para inglês de Fernando Pessoa em: «Songs» (1930) / Translation by Fernando Pessoa
Música: Bernardo Sassetti (1970-2012), "Inocência - Movimento I"



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Manuel António Pina


     LUZ

Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu).
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.

Manuel António Pina

                                          *

TALVEZ DE NOITE

Não abras a porta,
se for o sublime diz que não estou,
já temos palavras de mais, sentimentos de mais.

A glicínia não floriu este ano,
antes floria à volta de tudo
o que resta de azul à nossa volta,
envelheceu, anima-a só o desejo de voltar a casa, de ser uma casa.


Manuel António Pina, Como se desenha uma casa





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