sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Alejandra Pizarnik, poetisa argentina que queria viver apenas nos seus textos

Retrato de Alejandra Pizarnik

ÁRVORE DE DIANA

6
ela se desnuda no paraíso
de sua memória
ela desconhece o feroz destino de suas visões
ela tem medo de não saber nomear
o que não existe

16
construíste tua casa
emplumaste teus pássaros
golpeaste o vento
com teus próprios ossos
.
terminaste sozinha
o que ninguém começou
.
20
disse que não sabe do medo da morte do amor
disse que tem medo da morte do amor
disse que o amor é morte é medo
disse que a morte é medo é amor
disse que não sabe
.
A Laura Bataillon
23
uma mirada a partir da sarjeta
pode ser uma visão do mundo
.
a rebelião consiste em olhar uma rosa
até pulverizar-se os olhos.
.
33
alguma vez

.            alguma vez talvez
eu irei sem car-me
.               eu irei como quem se vai

A Ester Singer

alejandra em frente a árvore

OS TRABALHOS E AS NOITES
Encontro
Alguém entra no silêncio e me abandona.
Agora a solidão não está a sós.
Tu falas como a noite.
Te anuncias como a sede.
.
Os trabalhos e a noite
para reconhecer na sede meu emblema
para significar o único sonho
para não sustentar-me nunca de novo no amor
.
eu fui toda oferenda
um puro errar
de loba no bosque
na noite dos corpos
.
para dizer a palavra inocente
.
Mendiga voz
E ainda me atrevo a amar
o som da luz em uma hora morta,
a cor do tempo em um muro abandonado.
.
Em meu olhar eu perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
.
Quarto
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e sua fissuras, arranhaduras,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
seguramente virá
uma presença para tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.

Alejandra Pizarnik
Tradução de Davis Diniz
Folha de S. Paulo, 2018-02-18


alejandra em frente a estante, pegando livro

A história da poeta argentina que queria viver só em seus textos
Alejandra Pizarnik, que se matou aos 36 anos, será editada pela 1ª vez no Brasil

Sylvia Colombo, Folha de S. Paulo, 2018-02-18

Resumo A poeta argentina, até hoje inédita no Brasil, terá dois livros publicados em abril. Amiga de Julio  Cortázar e de Octavio Paz, ela se suicidou aos 36 anos e tem obra marcada por silêncio, solidão e morte. No exterior, material revelado pela Universidade de Princeton enseja novos lançamentos a seu respeito.

Fotografía en blanco y negro de Alejandra con una marioneta al fondo.

Morta há 45 anos, quando tinha apenas 36, a poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) passa por uma onda de descobrimento pelas novas gerações.
No Brasil, saem pela editora Relicário, em abril, "Árvore de Diana" (1962) e "Os Trabalhos e as Noites" (1965), dois de seus livros mais conhecidos —fazendo justiça, ainda que tardia, a uma das principais poetas do século 20, nascida num país vizinho.
No mundo, uma parte até então desconhecida de sua obra começa a ser revelada em estudos e edições feitas a partir de material inédito mantido a pedido da autora na Universidade de Princeton, nos EUA.
"Estes dois [livros que serão publicados no Brasil] são perfeitos para que um leitor que não conhece Pizarnik seja introduzido à sua obra. Aí está a essência de suas preocupações literárias e se pode perceber a excepcionalidade de sua escrita", disse à Folha Cristina Piña, autora de "Alejandra Pizarnik: una Biografía" (1991), ainda inédita no Brasil.
A biógrafa acrescenta que a abertura do arquivo de Princeton revelou "uma outra escritora, com outros 'eus literários', ao estilo de Fernando Pessoa (1888-1935), de quem era fã, além de partes íntimas de sua vida e como viu os meios literários que frequentou em Buenos Aires e Paris". Por causa dessas novas informações, Piña está reescrevendo a biografia original e prevê terminá-la ainda neste ano.
Pizarnik nasceu em Avellaneda, subúrbio de Buenos Aires, filha de imigrantes judeus de origem
russa e eslovaca, que fugiram para a Argentina no cenário pré-Segunda Guerra Mundial. Os relatos
feitos por seus parentes e por amigos de seus pais sobre os mortos em campos de concentração
marcariam a infância da escritora.
Devido à mistura de idiomas que ouvia em casa, Pizarnik cresceu falando um espanhol com forte sotaque. Tinha frustrações com seu corpo, que aparecem desde seus primeiros escritos: uma acne persistente e o fato de viver sempre um pouco acima do peso. Estava convencida de que sua família preferia a irmã, Myriam, que Pizarnik acreditava ser mais bonita e mais "normal" que ela própria — já que a irmã queria se casar e ter filhos, o que ela mesma não desejava.
Esse conjunto de elementos fez com que fosse marginalizada pelos colegas da escola, e o refúgio na literatura acabou sendo sua salvação e se tornaria sua perdição.
Pizarnik entrou em algumas faculdades (filosofia, letras e jornalismo), mas largou todas por desinteresse. "Mas tinha uma capacidade de organização para estudar e trabalhar fora do comum. Podia estar desorganizada mentalmente, ou sob efeito dos remédios psiquiátricos dos quais foi cada vez abusando mais, mas mesmo assim se organizava para trabalhar de uma maneira surpreendente.
Lia e escrevia com voracidade desde cedo", conta Piña.
Suas grandes influências ao longo da vida foram Proust, Rimbaud, Baudelaire, Apollinaire, Breton e Artaud e Pizarnik estudou francês para poder ler esses autores no idioma original. Outro favorito foi Franz Kafka (1883-1924).

CARREIRA
Aos 19 anos, em 1955, ela lança seu primeiro livro de poemas, "La Tierra Más Ajena" (a terra mais estrangeira), e, no mesmo ano, "Un Signo en Tu Sombra" (um sinal em sua sombra). Pizarnik considerava as duas obras meras experimentações adolescentes e as renegaria, depois, como trabalhos secundários.
Somente seu terceiro livro, "La Última Inocencia" (a última inocência), de 1956, viria a lhe dar mais confiança. É também nessa época que começa a fazer psicanálise e descobre que seu verdadeiro tema seria seu próprio mistério interior, a solidão, o silêncio e a morte, com os quais podia se relacionar escrevendo.
A partir daí, vem "Las Aventuras Perdidas" (as aventuras perdidas) (1958), "Árvore de Diana" (1962) e "Os Trabalhos e as Noites" (1965) que terão lançamento brasileiro— e mais seis livros até sua morte, incluindo Poseídos entre lilas (possuídos entre lilás) (1969), escrito para teatro.
Em seus diários, publicados em 2013 pela editora espanhola Lumen, Pizarnik escreve: "Nada me prende à vida. Quero anular-me a ponto de existir apenas no que escrevo". Variações sobre essa ideia de se transformar em literatura, anotando seus sonhos, pensamentos e sentimentos, aparecem ao longo das mais de mil páginas em que relata seus dias e suas preocupações. "Sonho com o isolamento. Eu sozinha, perto do mar. Sozinha. Absolutamente sozinha. Esta é minha imagem de felicidade."
"Diarios" (2013) e "Nueva Correspondencia (1955-1972)" —publicado pela mesma editora em 2012— são volumes parrudos que mostram duas faces distintas da autora.
Se os diários mostram a viagem desalentadora de Pizarnik em busca de si mesma, até cometer suicídio, nas cartas ela surge divertida, com uma verve humorística pouco conhecida do público. Afetuosa com amigos e amantes, ela usa uma linguagem mordaz que não está em sua poesia e fala de sua bissexualidade e das orgias de que participava.
As correspondências também mostram quão variadas eram as amizades da escritora. missivas corriqueiras, em que narra intimidades, joga com palavras, faz ironias com os amigos; mas também cartas estritamente literárias, que trocava com Silvina Ocampo (1903-93), Manuel Mujica Láinez (1910-84) e Adolfo Bioy Casares (1914-99), entre outros grandes autores argentinos de seu tempo.
Segundo a biógrafa, os novos documentos arquivados nos EUA permitem entender que "o que pensávamos que para ela tinha sido uma festa seu período em Paris, de 1960 e 1964, havia sido na verdade um tempo muito sofrido, sem dinheiro, fazendo trabalhos que não queria fazer".
Piña reconhece, porém, que foram anos fundamentais que zeram dela a primeira poeta latino-americana publicada na França. Ali refinou seu francês a ponto de escrever e publicar nessa língua.

A O SUICÍDIO
De volta à Argentina, ela iria novamente para o exterior depois de alguns anos: agraciada com uma bolsa de estudos Guggenheim em 1969, Pizarnik passa um ano em Nova York. Na cidade, a escritora trava mais amizades literárias, inclusive aquela que lhe traria grande projeção, com o mexicano Octavio Paz (1914-1998), vencedor do Prêmio Nobel e que viria a escrever prólogos para alguns dos trabalhos da argentina.
Depois disso, porém, não tem mais recursos para seguir no exterior e volta a Buenos Aires, cheia de nostalgia pelos meios literários que frequentou no exterior e especialmente pela relação de carinho e amizade com o conterrâneo Julio Cortázar (1914-1984), que seguia vivendo em Paris. Ela passava horas do dia trabalhando [em seu apartamento], ou ia a um café da esquina. Não viveu a cidade, não lhe interessava o que ocorria na Argentina. Estava sempre em seu mundo particular, diz Piña.
A porta de entrada para seu mundo privado está, sem dúvidas, nos "Diarios", cuja leitura revela a viagem por meio da qual Pizarnik alimentou e arquitetou, física e mentalmente, seu próprio suicídio.
Os diários haviam sido editados por uma amiga da escritora, Ana Becciú, que preparou, agora, nova edição com mais entradas de pastas e cadernos que encontrou com outra amiga de Pizarnik, Olga Orozco que havia sido escolhida pela escritora, em vida, para organizar seu legado. Esse novo material permitiu completar os diários inicialmente publicados especialmente com os primeiros meses da escritora na França.
Em entrevista à Folha, Becciú disse acreditar que os diários foram escritos com a intenção de uma publicação póstuma: "Alejandra dizia que queria uma edição similar à que Leonard Woolf fez com os diários de Virginia. E em vida demonstrava grande admiração por diários de escritores, considerava- os um gênero literário à parte". De facto, os diários têm partes reescritas e corrigidas, é uma obra retrabalhada a exemplo do que fez um de seus ídolos, Kafka.
O material narra sua vontade obstinada de se converter em sua própria literatura: "Às vezes gostaria de me registrar por escrito, em corpo e em alma, explicar como é minha respiração, a minha tosse, o meu cansaço, mas de uma maneira alarmantemente exata, que faça com que seja possível me ouvir respirar, tossir, chorar, se eu pudesse chorar."
Mas, antes de mais nada, o conteúdo sombrio dos diários revela o namoro constante da poeta com a ideia de suicídio.
Pizarnik tenta se matar duas vezes viria a morrer na terceira— usando altas doses de remédios psiquiátricos, para exasperação dos amigos, que lhe escrevem, a visitam e alertam.
Cortázar chega a mandar uma carta de Paris, enfurecido, ao saber da segunda tentativa, feita em 1971: "Só te aceito viva, assim te quero, Alejandra. Escreva-me, porra, e perdoa-me o tom."
O desespero dos amigos, porém, não consegue fazê-la mudar de ideia. Alguns meses antes de morrer, um ano depois da segunda tentativa de se matar, ela escreve um poema dedicado à cantora Janis Joplin (1943-70), que começa assim: "A cantar dulce y a morirse luego" (a cantar docemente e morrer em seguida).
Na manhã de 25 de setembro de 1972, na grande lousa que mantinha em seu apartamento ela gostava de ver os versos escritos ali, para depois passá-los para o papel, Pizarnik escreveu: "Não quero ir/ nada mais/ que até o fundo."
Nesse mesmo dia, ingeriu 50 pastilhas de Seconal Sódico —barbitúrico cuja dose letal ela passou dias estudando e morreu.

Sylvia Colombo, Folha de S. Paulo, 2018-02-18


Pizarnik (derecha), con Aurora Bernárdez y Laura Bataillon, la traductora de Julio Cortázar. http://www.elmundo.es/cultura/2016/12/23/585bbcd9268e3e46178b460f.html 
Fotografía: COL. MUSEO DEL ESCRITOR 




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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Hora da Poesia - José Carreiro

Na Hora da Poesia (2018-02-14), Conceição Lima, Duarte Luz e Rui Diniz dão voz a poemas de Chuva de Época, de José Maria de Aguiar Carreiro:

Conceição Lima entrevista José Maria de Aguiar Carreiro:



ENTREVISTA

Conceição Lima - Curta biografia. Desde quando a Poesia? A poesia foi fruto de influência de algo ou alguém ou impôs-se? O que o empurra para a escrita poética? Acha que a poesia é inerte ou traz missão? Quais os poetas que poderão ter influenciado os seus gostos na escrita poética?

José Carreiro - Nasci numa freguesia do concelho de Nordeste da ilha de São Miguel.
Aos 15 anos, sem pedir autorização aos meus pais, preenchi a pré-inscrição para o ingresso no ensino secundário na cidade situada na outra ponta da ilha. O meu pai acedeu à determinação e passei a viver durante a semana num quarto alugado em Ponta Delgada, numa casa partilhada. Os fins-de-semana passava-os em família.
Depois veio o ensino superior na Universidade de Lisboa. Conto com uma bolsa de estudo do governo regional e com o apoio possível do meu pai. Poderia cursar na ilha, mas queria ampliar os horizontes.
O Fernando Pessoa estudado no 12.º ano é determinante na descoberta da poesia. Enquanto adolescente, identificava-me com a dualidade interior do poeta.
É no décimo segundo ano que começo a escrever um diário, onde incluía alguns versos entre os derrames e reflexões sobre o dia. Os cadernos foram-se acumulando. Em 1990, já na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, faço uma pequena seleção de poemas, a maior parte abandonada na nova seleção de 1992.
No início dos anos 90, participo, em Lisboa, num I Encontro de Jovens Escritores, promovido pela Sociedade Portuguesa de Autores. Creio que, dos presentes, poucos tinham publicado alguma coisa, talvez uns três ou quatro, se tanto. Nas jornadas deram-nos conselhos, um dos quais foi não termos pressa em publicarmos.
Nesse Encontro, tivemos oportunidade de conviver com alguns autores: lembro-me de jantar com a Natália Correia e de irmos à discoteca com o Al Berto. Belos momentos.
Entretanto, a seleção de 1992 foi sendo ampliada, cortada e recortada, trabalhada até à data da publicação, em 2005, já em Ponta Delgada, para onde fui lecionar após ter terminado o curso.
Quanto a leituras, sou “um sensível e agradecido leitor”, como disse uma vez Jorge Luis Borges.  Outros poetas formaram o meu gosto pela poesia: Camilo Pessanha, Sophia Andresen, Jorge de Sena, Herberto Helder, Joaquim Manuel Magalhães são alguns dos nomes.
Chuva de Época faz parte do pasmo inicial perante a vida.
Move-me para a escrita a estilização do real: uma frase, uma sonoridade, uma pintura, uma escultura, um elemento arquitetónico, uma cena ou uma coreografia, enfim, o mundo mediado pela arte. Por exemplo, uma fotografia de Sebastião Salgado pode funcionar, para mim, como uma arte de desbloqueio.
Aprecio o apontamento caricatural, o alegórico, a metáfora. E o nonsense.
junho de 2017


2018-02-14

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

GROTTA #2

A Revista literária Grotta – Arquipélago de Escritores é editada pela Publiçor 
sob chancela Letras Lavadas. Direção de Nuno Costa Santos. Dezembro de 2017

No seu número 2 a revista Grotta aprofunda a sua vocação para reunir quem escreve no território açoriano e fora dele. Volta a juntar um respeito pela tradição literária, uma atenção à pluralidade de vozes e à comunicação com outros lugares.
O dossiê dedicado à Literatura de Porto Alegre é uma forma de celebrar, hoje, a nossa ancestral ligação com a capital do Rio Grande do Sul, com necessidade de uma boa actualização, lugar fundamental para os Açores e os açorianos.

Há uma longa entrevista com Eduíno de Jesus, que partilha com os leitores a sua vida literária e a forma como vê o mundo, em respostas pensadas e cuidadas. E inspiradoras, sempre.
Continua-se a fazer conviver respirações de tempos diferentes. Textos sobre Natália Correia de autores premiados (Carolina Bettencourt). Uma peça, de Victor Rui Dores, sobre o rico suplementarismo literário açoriano, narrativas na primeira pessoa de personagens de séries televisivas que aterram no espaço da ilha e contos ao desafio, escritos por novos autores. Poemas de nomes como Renata Correia Botelho e Rui Machado e slam poetry de Carla Veríssimo.
Urbano Bettencourt, num texto de referência aqui incluído, Escritas insulares - fragmento e derivas, trata da «condição insular como uma oscilação entre a permanência e a errância, entre o auto-centramento e a deriva que leva à descoberta». A prosa começa com uma citação de Michelet: «A Inglaterra é uma ilha». Uma ilha para a qual viajamos e que pisamos com vagar através da poesia de Ken Smith, traduzida por Hugo Pinto Santos (autor, relembre-se, da tradução dos poemas irlandeses do primeiro número da grotta).
Este número está amplamente ilustrado por dois artistas plásticos - Paula Mota e João Decq - que valorizam muitíssimo a edição, transportando-a para um território que pretende ocupar: o do diálogo entre artes, o da conversa entre linguagens diferentes e complementares. 
A revista Grotta é dirigida por Nuno Costa Santos e conta com coordenação editorial de Diogo Ourique. A edição é da Letras Lavadas.

"Sinopse" in https://www.wook.pt/livro/revista-grotta-n-2-nuno-costa-santos/21291958

***

 
a menos que pudéssemos
soletrar esta noite
desditosa
segredada
que nos range
entre os dedos e o papel

a ver se assim
decomposta
lhe encontramos
uma sílaba quente
qualquer coisa tónica
que nos acorde.

Renata Correia Botelho
Grotta n.º 2, Letras Lavadas, dezembro 2017. ISBN: 9772184166001


***

Nuno Costa Santos: "Há várias formas de se ser açoriano"

Nuno Costa Santos fotografado na Casa dos Açores, em Lisboa  |  PAULO SPRANGER/GLOBALIMAGENS

Chegou o número dois da Grotta, a "revista-livro" açoriana. O diretor Nuno Costa Santos encara os Açores como "lugar de encontros" e está confiante nos novos autores que germinam na revista literária que, esta semana, é lançada em Ponta Delgada.

Ele é escritor e guionista mas a convocatória para esta entrevista foi como diretor da Grotta, revista literária de timbre açoriano. O segundo número é lançado esta semana em Ponta Delgada, na Solmar, uma livraria cúmplice. Nuno Costa Santos não assina nenhum artigo nesta edição, mas na primeira deixou uma ponta solta em Monóculo. Saiu para comprar um pijama (faltava-lhe a inspiração para as primeiras linhas do romance que queria escrever) e descobriu nos jornais que "Lisboa é a melhor cidade portuguesa para se viver pela terceira vez consecutiva" - soube depois, segundo um ranking da Monocle. Seguiu caminho e deu de caras com a Casa Ferrador fechada. Para sempre. Após 84 anos de atividade. Sem pijama (e sem conforto), resolveu mandar um email à Monocle: "O mundo precisa de saber do fecho do Ferrador". Ainda não recebeu resposta, mas ele não tem pressa. Não surpreende. A Grotta - o nome alude, também, a um fenómeno geológico das ilhas - é, claramente, feita com vagar, contrariando o "tempo tecnológico". Ali aportam autores de vários paradeiros, idades e sensibilidades. O arquipélago como semente e marca, de quem está e de quem não está.

O que é a Grotta - não é "apenas" uma revista de literatura açoriana pois não?
A Grotta é uma revista literária que, assumindo a sua raiz açoriana, é aberta a todas as formas literárias de várias partes do mundo, desde que passem no nosso sempre subjetivo critério de pertinência editorial e de qualidade. Não temos medo de assumir o regional e até achamos que num universo que quer ser à força toda "global" e "cosmopolita" é importante atender ao local e ao regional, sem complexos. A palavra grota, que vem da designação que nos Açores se dá às ribeiras que, a partir de certa altitude, se tornam em regos longos e fundos, no território nacional só é usada no arquipélago. Sabemos que também é usada no Brasil. Como tem um duplo t - no nosso título, sob sugestão do vulcanólogo Victor-Hugo Forjaz - remete para uma formulação arcaica do termo e para a sua origem italiana. Entre os Açores e a Itália, com passagem por todo o lado. O subtítulo é Arquipélago de Escritores, que começa por ser o arquipélago açoriano, onde há, desde tempos imemoriais, muita gente que escreve e publica, mas acaba por se constituir como a família, espalhada por todo o lado, de escribas.
Entre os autores que colaboraram nas duas primeiras edições, há autores nascidos nos Açores. Mas outros com origens continentais. Na sua biografia diz-se "açoriano nascido em Lisboa". A Grotta vem, também, questionar o que é isso de ser açoriano?
Os Açores são um lugar de encontros muitos e penso que essa vocação marcará ainda mais o arquipélago nos próximos anos. Nesse sentido a Grotta é uma revista que alberga romeiros de todas as proveniências. Não direi que há um questionamento mas sim um aprofundamento de uma certa maneira. No primeiro número tivemos um diálogo com a Irlanda, através da edição em português de poemas de autores irlandeses contemporâneos. Neste número o diálogo mais evidente é com os escritores que escreveram sobre a cidade de Porto Alegre, que aqui é apresentada com diferentes temperaturas e vozes. No meu caso, essa nota representa um preciosismo biográfico. Os meus pais, açorianos, estavam a viver em Lisboa quando nasci. E depois voltaram à sua terra. Mas, sim, para nós ser açoriano é uma condição que não é exclusiva daqueles que nasceram no território das ilhas e que aí vivem. Há várias formas de se ser açoriano, cada vez mais evidentes num mundo de vasta circulação.
Encontramos novas e mais antigas gerações de escritores em vários registos - prosa, poesia, ensaio, fotografia, ilustração. São trabalhos, inéditos, que esperavam uma brecha para se mostrar?
Sim, são trabalhos que encontram aqui uma oportunidade. Este é um espaço que se abre e os pode acolher. A maior parte dos trabalhos é inédita. As pessoas têm escrito e ilustrado propositadamente para a Grotta. Também já publicámos trabalhos - no caso, ensaios fotográficos - que já estavam prontos antes da ideia de se fazer a revista. Foram convocados e aqui ganharam um sentido outro.
Victor Rui Dores, faz neste número uma breve resenha do "suplementarismo cultural dos Açores", em que saúda uma nova geração de autores empenhada na construção de um espaço cultural novo - geração essa "com mais imaginação que memória, gente que passa mais tempo nas redes sociais do que nas tertúlias dos cafés". Gente "que ainda não escreveu as suas obras maiores e de quem muito há ainda a esperar". Como vê esta nova geração?
Vejo esta nova geração como um grupo que tem o dever de estar à altura daquilo que as gerações anteriores fizeram: criar um corpo consistente de obras, diversas e representativas do esforço de uma época literária. Há que também retratar o que são os Açores hoje na sua multiplicidade, nos seus contrastes. Para isso é preciso trabalhar, pesquisar histórias, ir fazer investigação. E ler. É preciso desligar mais vezes o facebook para perseguir um exercício de disciplina diária na escrita - só esse é que poderá trazer resultados consistentes. A Grotta gostava de contribuir para que esse trabalho se faça de forma mais visível e com mais vozes.
Os Açores têm na sua biografia alguns nomes grandes da literatura portuguesa. Os autores que chegam são reféns ou herdeiros?
Uma mistura. São reféns quando estão demasiado presos à influência dos nomes do cânone. E herdeiros quando já se libertaram e, assumindo a herança, têm o seu sangue próprio. Depois há a questão, que deve ser considerada, de uma parte da comunidade de leitores e observadores ser um pouco dada à comparação fácil. É humano. É como querer comparar à força o neto ainda a mudar de voz ao avô que morreu com uma aura de qualidades. Nesses casos o melhor é, para quem ouve comparações escusadas, concentrar a atenção na sinfonia dos pássaros das ilhas.
Lançou em 2014 a Transeatlântico (Companhia das Ilhas). O que aconteceu a esta publicação?
A Transeatlântico ficou em pousio depois da primeira experiência. E com o descanso da Transeatlântico resolveu avançar-se com a Grotta, publicação de outro catálogo sediado nos Açores.
Em que consiste Açores Arquipélago de escritores, que acontecerá entre 26 e 28 de abril de 2018?
Sobre o evento, ainda não posso adiantar pormenores porque ainda há uma série de assuntos por definir. Mas posso dizer que será um gesto promovido pela Grotta e que, como encontro, manterá as características fundamentais do espírito da revista. Acolhimento açoriano, arquipélago de escritores, respeito pela tradição literária, comunicação com outras partes do mundo, diálogo entre artes.
Quando sairá a Grota n.º 3?
No final de 2018 teremos o número 3. Até lá é questão de ir tendo ideias e ir convocando os autores para enviarem textos. Leva tempo porque a Grotta é uma revista-livro com bastante conteúdo e muitos pormenores.
A Monocle respondeu-lhe ao email sobre o encerramento da Ferrador?
Ainda não respondeu. Deve estar preocupada em fazer mais um ranking. Mas eu espero. Um antigo cliente do Ferrador não tem qualquer tipo de pressa gourmet.

Marina Almeida, Diário de Notícias, 2018-02-11
https://www.dn.pt/artes/interior/nuno-costa-santos-ha-varias-formas-de-se-ser-acoriano-9115889.html

***



GROTTA . Uma adenda

(o que eu poderia ter dito ontem, se a gripe não me tivesse impedido de participar, na Livraria Solmar, na apresentação da revista Grotta). 

1. Quem conhece uma grota sabe que deve evitar a todo o custo cair numa: pelos estragos corporais, por vezes irremediáveis, a que se sujeita e pela dificuldade em ser de lá removido. Constrangimentos da geologia.
Por mim, caí muito bem nesta «Grotta» que o Nuno Costa Santos & companheiros vêm talhando desde há 2 anos. E não tenho qualquer pressa em sair.
Encontro aqui um exemplo daquela «encruzilhada» de que falava Carl Sagan e que prolonga a melhor tradição das revistas e suplementos literários açorianos. 
No final dos anos de 1930, um intelectual açoriano propunha que se implementasse na imprensa local suplementos e páginas literárias, só preenchidos com autores açorianos…A primeira parte da proposição era excelente; a segunda uma idiotice pegada, demonstrativa de que ele não aprendera nada de nada com a imprensa açoriana, que desde os seus inícios, no século XIX, sempre abriu um grande espaço à literatura, cruzando línguas e culturas, géneros e discursos heterogéneos, em diálogo com os autores locais. 

2. O meu texto incluído neste n.º 2 de «Grotta» nasceu no aeroporto de Guarulhos, na longa tarde do dia 8 de Novembro de 2016 e numa conversa com o Nuno Costa Santos, enquanto mais a norte no continente um estafermo juntava os votos que o levariam à Casa Branca. 
Em Porto Alegre, o Nuno tinha-me oferecido o n.º 1 da Grotta, eu já lera alguma parte dela (em particular o texto de Pedro Santo-Tirso), e por isso, quando ele me convidou a participar no número seguinte, pensei logo no que queria escrever (embora sem saber ainda os contornos precisos da coisa). Depois, ele trazia consigo o n.º 122 da revista «piauí» com uma reportagem/ensaio sobre Naipaul, e achei então que teria de escrever a partir dos «outros», os que sempre se mantiveram fiéis ao espaço insular, sem abdicarem do seu lugar no mundo. Das Caraíbas aos Açores e ao Mediterrâneo, há um pensamento insular em que as diferenças acabam por pôr em relevo as afinidades e as confluências. 

2.1 O resultado disso foi um texto intitulado «Escritas insulares: fragmentos e derivas». É um breve ensaio político-literário, dado que no interior da literatura se questiona a realidade histórica, concreta, da ilha e o(s) pensamento(s) sobre ela, o modo como ela ousa pensar-se (ou, por negação, se demite de pensar-se, à espera que outros o façam por ela). Tudo isso no pressuposto de que um «pensamento insular» tem de ser gerado e gerido a partir do seu interior ou segundo um ponto de vista adoptado a partir do interior da ilha. O resto é paisagem e macaquice para embasbacar incautos & desprevenidos. 

2.2 Para sossego das almas embaraçadas: «Escritas insulares: fragmentos e derivas» não é um trecho de catecismo ou de cartilha, por isso não obriga a nada nem ninguém. É apenas uma análise construída a partir de dados, que neste caso são textos. E na literatura como noutras coisas, supõe-se, os dados devem prevalecer sobre os esquemas prévios e o preconceito.
Urbano Bettencourt, Facebook, 2018-02-16

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Grotta # 1

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Um sensível e agradecido leitor - Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges, Biblioteca Pessoal
Ao longo do tempo, a nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas, cuja leitura foi uma felicidade para nós e que gostaríamos de partilhar. Os textos dessa biblioteca íntima não são forçosamente famosos. A razão é clara. Os professores, que são quem dispensa a fama, interessam-se menos pela beleza do que pelos vaivéns e pelas datas da literatura e pela prolixa análise de livros que se escreveram para essa análise, não para o prazer do leitor. 
A série que prologo e que já entrevejo quer dar esse prazer. Não escolherei os títulos em função dos meus hábitos literários, de uma determinada tradição, de uma determinada escola, de tal país ou de tal época. 
Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler”, disse eu uma vez. Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor.
Desejo que esta biblioteca seja tão diversa como a não saciada curiosidade que me induziu, e continua a induzir-me, à exploração de tantas linguagens e de tantas literaturas. Sei que o romance não é menos artificial do que a alegoria ou a ópera, mas incluirei romances porque também eles entraram na minha vida. Esta série de livros heterogéneos é, repito, uma biblioteca de preferências. 
María Kodama e eu errámos pelo globo da terra e da água. Chegámos ao Texas e ao Japão, a Genebra, a Tebas e, agora para juntar os textos que foram essenciais para nós, percorreremos as galerias e os palácios da memória, como escreveu Santo Agostinho.
Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram. “A rosa é sem porquê”, disse Angelus Silésius; séculos depois Whistler declararia “A arte acontece”. 
Oxalá que sejas o leitor que este livro aguardava.

Jorge Luis Borges, “Prólogo” in Biblioteca Pessoal, Edição Quetzal, 2014